05 Janeiro 2021
"São José nos lembra que todos aqueles que estão, aparentemente, escondidos ou em segundo plano, têm um protagonismo sem paralelo na história da salvação", escreve Andrea Monda, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 23-12-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Jesus, o Verbo de Deus encarnado, nasce numa gruta. Em poucos dias, comemorando o Natal de 2020, isso será lembrado por mais de dois bilhões de cristãos em todo o mundo. O número impressiona, mas não se deve cair na armadilha de uma visão "muscular" da fé, o Cristianismo nunca teve boas relações com os grandes números. Em Belém, Jesus nasceu "fora de casa" porque o imperador Augusto, na época o homem mais poderoso do mundo, havia promulgado um censo, ou seja, queria contar todos os seus súditos. É sempre a lógica de Babel: os homens como tijolos, súditos que "contam" somente se podem ser contados, calculados, medidos (e eventualmente descartados). É a lógica exatamente oposta daquela do Deus da Bíblia que se debruça sobre cada um de seus filhos, que deixa o grande número 99, para ir em busca daquela única (e insubstituível) ovelha que se perdeu. Aquela ovelha é pequena, é difícil vê-la, encontra-se como num cone de sombra, mas é precisamente ela quem impele o Senhor da História a mover-se, a operar maravilhas, a realizar o milagre da salvação.
Este pequeno e escondido estilo de Deus também brilha na cena de Belém, uma imagem cheia de sombras, como convém a uma gruta. Foi aí que Deus escolheu nascer, tornar-se homem, aliás, criança, para repercorrer todas as experiências que tornam a existência verdadeiramente humana: verdadeiro Deus e verdadeiro homem. E se o homem viveu neste mundo habitando em cavernas por milhares de anos, então é certo recomeçar justamente daí, da sombra fria e inóspita de uma gruta. Tudo naquele episódio revela o estilo discreto de Deus que não mostra os músculos no centro da cena, mas aparece pequeno e frágil nas margens da história, nas periferias do mundo. A Palestina, uma pequena província à beira do império, Maria, a jovem virgem de Nazaré ("pode vir alguma coisa boa de Nazaré?" exclama o apóstolo Natanael) e agora Belém, "a menor entre as capitais de Judá" (Mt 2, 6) e depois os pastores, os primeiros a encontrar Jesus e por último a pequena família, Maria e, sobretudo, José, o mais à sombra de todos. Um homem que sabe fazer duas coisas: ficar calado e sonhar (e confiar em seus sonhos).
Há cento e cinquenta anos o Papa Pio IX declarou São José padroeiro da Igreja universal e no último dia 8 de dezembro, por ocasião do aniversário, o Papa Francisco publicou e doou ao mundo uma intensa e profunda carta apostólica, intitulada Patris corde, “com coração de pai”, um texto que deve ser lido e aprofundado porque revela muito do fenômeno da paternidade mas, mais ainda, explica aos homens, através da figura do carpinteiro de Nazaré, muitos aspectos do mistério da existência humana. O Papa diz isso claramente no início da carta, quando escreve que quer compartilhar com o leitor "algumas reflexões pessoais sobre esta figura extraordinária, tão próxima da condição humana de cada um de nós". Esse desejo, diz o Papa, cresceu durante os meses da pandemia e, citando o discurso que proferiu no dia 27 de março durante a Statio Orbis na Praça de São Pedro, Francisco nos lembrou como pudemos experimentar, precisamente nestes tempos dramáticos, que “as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns (habitualmente esquecidas), que não aparecem nas manchetes dos jornais e revistas, nem nas grandes passarelas do último espetáculo, mas que hoje, sem dúvida, escrevem os acontecimentos decisivos da nossa história: médicos, enfermeiras e enfermeiros, trabalhadores dos supermercados, pessoal da limpeza, cuidadores, transportadores, forças policiais, voluntários, sacerdotes, religiosas e muitos – mas muitos – outros que compreenderam que ninguém se salva sozinho. (…) Quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e infundem esperança, tendo a peito não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas rezam, se imolam e intercedem pelo bem de todos”. Todas essas pessoas são "como São José" e, diz o Papa, no pai putativo de Jesus "podem encontrar o homem que passa despercebido, o homem da presença quotidiana, discreta e escondida, um intercessor, um amparo e um guia nos momentos de dificuldade. São José nos lembra que todos aqueles que estão, aparentemente, escondidos ou em segundo plano, têm um protagonismo sem paralelo na história da salvação”.
Este tema da "santidade na casa ao lado", ou "da classe média da santidade", expressão que o Papa toma emprestada do romancista francês Joseph Malègue (e de sua obra-prima Augustin) é muito caro para Francisco, que o menciona com frequência, mas precisamente de forma discreta, nas entrelinhas de seus discursos e gestos. Na volta da viagem de fevereiro de 2019 a Abu Dhabi, falando com jornalistas, ele destacou que não havia sido uma viagem "histórica", um "grande" momento da história, porque toda vida humana é grande, mesmo aquela do último da terra, e possui uma dignidade imensa e imortal. O fato é que o Papa Bergoglio está convicto de que a história dos homens é movida e elevada não pelos "grandes" da história, mas pela "gente comum e das pequenas coisas", como diria Manzoni ou como Edith Stein intui no coração do momento mais sombrio da século XX quando escreve: “Na noite mais escura surgem os maiores profetas e santos. No entanto, a corrente vivificante da vida mística permanece invisível. Certamente, os eventos decisivos na história do mundo foram essencialmente influenciados por almas sobre as quais nada é dito nos livros de história. E quais são as almas a quem devemos agradecer pelos acontecimentos decisivos da nossa vida pessoal, é algo que saberemos só no dia em que tudo o que está escondido for revelado”.
O filme mais lindo deste difícil 2020 que está chegando ao fim é sem dúvida Uma vida oculta de Terrence Malick dedicado à figura de Franz Jagerstatter, um fazendeiro austríaco, beatificado em 2007, um "São José" do século XX que pagou com a vida a sua pessoal, silenciosa, resistência ao nazismo. O título do filme é tirado de uma frase do escritor inglês George Eliot que expressa de forma eficaz esse pensamento de que o verdadeiro bem é o que muitas vezes não se vê, não causa clamor, mas existe e resiste: “O bem que virá ao mundo - escreve Eliot - depende em parte de ações que não são de dimensão histórica; e se as coisas para você e para mim não estão tão ruins quanto poderia ter sido, devemos isso em parte a todos aqueles que viveram com fé uma vida escondida e descansam em túmulos que ninguém visita”.
É a lógica dos Hobbits da obra-prima de Tolkien, O Senhor dos Anéis, onde o pequeno Merry, um personagem aparentemente "menor" do romance, em certo ponto afirma: “O solo no Condado é profundo. No entanto, ainda existem coisas mais profundas e superiores; e se não fosse por elas, um jardineiro não poderia cuidar de seu jardim no que ele chama de paz", intuindo que a paz no mundo é garantida não pelas grandes potências, mas pelo trabalho oculto de muitas pequenas mãos, as mesmas mãos que um outro personagem do livro, Elrond, celebra com as seguintes palavras: "Muitas vezes este é o curso dos acontecimentos que movem as rodas do mundo: são as pequenas mãos que os põem em movimento, porque são obrigadas a fazê-lo, enquanto os olhos dos grandes ficam virados para outro lado”. Herodes o Grande procurava no lugar errado porque seu coração estava distorcido e cegado pela lógica da força e do poder, enquanto o olhar dos pastores e dos magos se deixa guiar pelas estrelas e encontra “a grande alegria" (Mt 2, 10) em uma pequena gruta nos portões de Belém.
Existe uma rede misteriosa do bem que sustenta o mundo e ainda que de vez em quando aconteça que em torno de alguns personagens ou acontecimentos essa rede aflore e se mostre, por um instante, visível, na realidade na maior parte do tempos se dissolve e atua na escuridão, ao contrário do mal que sempre é estrondoso e precisa de clamor, mas acaba não resistindo e se consome no momento em que se mostra. É um discurso que põe em evidência a grande responsabilidade que pesa sobre os ombros de quem é chamado à delicada tarefa da informação, sobretudo no mundo contemporâneo, sempre à procura de “eventos” que, como tais, acabam se engolindo uns aos outros. Qual rede entre as duas, a do bem ou a do mal, é certo divulgar, ilustrar, iluminar? Qual noticiário teria enviado uma equipe para relatar o nascimento de Jesus na gruta de Belém? A "grandiosa" rede do mal de fato parece mais fácil de mostrar, ela se impõe por si só, enquanto o bem deve ser intuído, buscado, descoberto. O problema é que a esperança é certamente mais laboriosa do que o desespero.
O caminho da esperança é mais exigente, exige criatividade, mas é também o caminho que permite uma leitura e uma narração mais correta da realidade, como recordou o Papa no discurso à Cúria de 21 de dezembro: “Uma leitura da realidade sem esperança não pode ser chamada de realista", isso pode se chocar com a mentalidade de tanta informação segundo a qual "os problemas acabam imediatamente nos jornais, isso é o normal de todos os dias, enquanto os sinais de esperança só virarão notícia depois de muito tempo, e nem sempre". O bem deve, portanto, ser intuído como um lampejo que resiste mesmo no escuro; é preciso esperança e consciência de que mesmo a crise se desenvolve dentro da ação do Espírito Santo; então, diz o Papa, “mesmo diante da experiência das trevas, da fraqueza, da fragilidade, das contradições, da desorientação, não nos sentiremos mais esmagados, mas manteremos constantemente uma confiança íntima de que as coisas estão prestes a assumir uma nova forma, nascida exclusivamente da experiência de uma Graça escondida na escuridão”.
Escondida na escuridão da gruta de Belém, brilha a graça do Natal, os cristãos têm a tarefa de se alimentar daquela luz e transmiti-la, contá-la, possivelmente sem que perca seu frescor, sem degradar a sua força, sem desperdiçar o seu perfume. Edith Stein falava de profetas e santos. Talvez a estes possamos acrescentar os poetas: precisamos destas pessoas, humildes instrumentos de "algo" maior, para captar o bem que opera no mundo e contá-lo, colocando-o de volta em circulação. Assim fez São José, o escondido carpinteiro, poeta e sonhador de Nazaré.
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O bem escondido. Sobre São José - Instituto Humanitas Unisinos - IHU