22 Julho 2020
"Scorsese e Bergoglio, ligados não apenas por problemas respiratórios comuns, mas também por uma relação de profunda estima e grande afeto, sentimentos tangíveis também em seu último rápido encontro em outubro, durante o Sínodo para a Amazônia, quando o Papa e o diretor conversaram sobre o filme O Irlandês e, depois, sobre Dostoiévski, paixão literária comum", escreve Andrea Monda, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 21-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Nunca estive em nenhum outro lugar além de doente. Em certo sentido, a doença é um lugar, mais instrutivo do que uma longa viagem à Europa, e um lugar onde ninguém pode te seguir. A doença antes da morte é uma coisa muito oportuna e quem não passa por ela perde uma bênção do Senhor. Quase da mesma forma isola o sucesso, e nada destaca a vaidade tão bem”.
As palavras usadas, com a costumeira precisão cirúrgica, pelo escritor Flannery O'Connor, contêm de maneira extremamente eficaz o sentido da intensa entrevista concedida pelo diretor Martin Scorsese ao diretor de "La Civiltà Cattolica", Antonio Spadaro. Entre os dois já se consolidou uma verdadeira e profunda amizade, que também transparece nas entrelinhas dessa última conversa que apareceu no número da revista dos jesuítas publicada em 18 de julho com o título significativo A asma e a graça.
Entre esses dois polos, já evidenciados pelas palavras de O'Connor, que falava de doenças e de bênção, desenvolve-se uma reflexão às vezes tocante e vertiginosa, que parte de uma meditação sobre o período que está atravessando o mundo atingido pelo "furacão" do Covid-19, período em que apareceu, afirma Scorsese, "uma nova forma de ansiedade. A ansiedade de não saber de nada. Nada. Tudo estava em suspenso, adiado ninguém sabia para quando, como em um sonho em que você corre sem parar, mas nunca atinge a meta. Até certo ponto, ainda é assim. Quando isso terminaria? E então uma pergunta específica: se eu não tivesse conseguido gravar meu filme, quem eu seria?”.
A viagem para dentro do polo negativo (a doença, a asma) é feita até o fim: “A ansiedade foi crescendo e, com ela, a consciência de que eu poderia não sair vivo dela. Eu sofro de asma a vida toda, e esse vírus ao que parece ataca os pulmões com mais frequência do que qualquer outra parte do corpo. Percebi que realmente podia dar meu último suspiro naquele quarto da minha casa que havia sido um refúgio e agora se tornara uma espécie de fortaleza, e eu estava começando a senti-la como a minha prisão. Eu me vi sozinho, no meu quarto, vivendo de uma respiração à outra”.
A leitura dessas palavras quase automaticamente faz pensar no papa Francisco, que, como se sabe, aos 21 anos de idade devido a uma forma grave de pneumonia foi submetido à remoção cirúrgica de parte do pulmão direito e que frequentemente usou a metáfora do pulmão, da respiração, do batimento. Por exemplo, na recente publicação A oração. O respiro da vida nova (publicado pela Editora Vaticana) afirmou: “Existem algumas funções essenciais no corpo humano, como o batimento cardíaco e o respiro. Gosto de imaginar que a oração pessoal e comunitária de nós cristãos seja o respiro, o batimento cardíaco da Igreja, que infunde a sua força no serviço de quem trabalha, de quem estuda, de quem ensina (...). Nem sempre se tem consciência de respirar, mas não se pode parar de respirar”.
Scorsese e Bergoglio, ligados não apenas por problemas respiratórios comuns, mas também por uma relação de profunda estima e grande afeto, sentimentos tangíveis também em seu último rápido encontro em outubro, durante o Sínodo para a Amazônia, quando o Papa e o diretor conversaram sobre o filme O Irlandês e, depois, sobre Dostoiévski, paixão literária comum.
Estimulado pelas perguntas do padre Spadaro, o diretor ítalo-americano vinculou aquele momento de crise vivido durante a pandemia a uma crise anterior, vivida há cerca de 40 anos, na época do grande sucesso de Touro Indomável, um momento dramático em que Scorsese praticamente encarnou o pensamento de Pascal de que "toda a infelicidade dos homens deriva de uma única causa, de não saber ficar sozinho em um quarto" e se viu pensando: "Nunca poderei ficar sozinho em um quarto, sozinho comigo mesmo? Eu serei capaz apenas de ser? E eis que, muitos anos depois, de repente, aqui estou eu, sozinho no meu quarto, vivendo o instante, cada instante precioso de meu estar vivo. Obviamente, foi uma situação pesada, mas aqui está”.
O momento crítico foi vivido até o fim, sem descontos, mas então algo acontece: “Então, algo ... chegou. Pousou em mim e dentro de mim. Não consigo descrever de forma diferente. De repente, vi tudo de um ponto de vista diferente e melhor. Sim, eu ainda não sabia o que iria acontecer, mas ninguém o sabia. Eu poderia ter ficado doente e nunca mais sair daquele quarto, mas se tivesse acontecido, eu não poderia ter feito nada a respeito. Tudo ficou mais simples e senti uma grande sensação de alívio. E essa consciência me trouxe de volta aos aspectos essenciais da minha vida. Aos meus amigos e às pessoas que amo, às pessoas de quem tenho que cuidar. Às bênçãos que recebi: aos meus filhos, a cada momento que passamos com eles, a cada abraço, a cada beijo e a cada saudação ... a minha esposa, e a sorte que tenho por encontrar alguém com quem consegui crescer e criar juntos uma menina e ao próprio tempo ... poder fazer o trabalho que amo”. Palavras usadas por Scorsese que possuem aquela força simples que impede que acrescentar qualquer forma, mesmo a mais discreta, de comentário.
Desse discurso tão simples e essencial, emerge a consciência de ter recebido um dom: “E então algo nos foi revelado, foi-nos dado. As velhas perguntas habituais: ‘Como você está?’, ‘Você está bem?’ se tornaram imediatas e cruciais. Tornaram-se vitais. Descobrimos que estamos realmente todos juntos, não apenas na pandemia, mas na existência, na vida. Nos tornamos realmente um”.
O idoso diretor envia um pensamento aos jovens e aqui volta à memória outro encontro entre Scorsese e o Papa, quando, durante o Sínodo dos jovens, em 2018, foi apresentado o livro A sabedoria do tempo, editado pelo Padre Spadaro, em um momento de encontro entre gerações e houve um bom diálogo entre o papa e o artista que hoje, através dos microfones da Civiltà Cattolica, diz aos jovens: “Que sorte eles têm de estarem vivos em um momento tão iluminador. Muitos de nós pensam que tudo voltará como antes, mas obviamente nunca é assim: tudo sempre muda, e justamente esse período nos lembra isso com força. Isso pode nos inspirar a reconhecer a nossa capacidade de mudar para melhor. De fato, é isso que está acontecendo, no momento, com os protestos em massa em todo o mundo: os jovens estão lutando para melhorar as coisas".
O final da entrevista é sobre arte, cinema, literatura. Aparece Dostoiévski e seus irmãos Karamazov e depois Steinbeck e Kipling e, por fim, um filme de Ken Burns dedicado à figura de William Segal. Tocantes as palavras com as quais Scorsese comenta esse filme, concluindo a sua entrevista, e também nesse caso, são palavras tão verdadeiras e poéticas que não é conveniente tentar comentá-las: “Há uma cena em que Segal convida, com a experiência de sua calma e de sua meditação, para focar a nossa atenção sobre o que é essencial, sobre o que acontece justamente agora, entre um respiro e o outro. Ser. Respirar. Aqui. Agora. Tudo isso não é justamente graça?
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“Respirar. Aqui. Agora”. Doença e bênção, o diretor, o papa, o jesuíta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU