03 Dezembro 2020
“Nem todas as pessoas são chamadas a seguir a mensagem do Evangelho e o exemplo de Jesus, mas os cristãos certamente são. Será uma grande bênção para os cristãos ter a Igreja reivindicando publicamente a não-violência do Evangelho”, escreve Terrence Rynne, professor de Estudos da Paz na Marquette University, EUA, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 02-12-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Quão perto está o papa Francisco de proclamar a não-violência do Evangelho como um ensinamento central de como confrontar a maldição da guerra? Quão perto ele está de remover a teoria da guerra justa de posição proeminente – fazendo da guerra justa apenas uma nota de rodapé na história do ensino moral da Igreja? Quão perto ele está de tornar a postura proativa e assertiva para cristãos optarem primeiramente por processos de paz não-violentos ao confrontarem a opressão, violência e guerra?
Parece que sua recente encíclica, Fratelli Tutti, já deixou de lado a postura passiva da teoria da guerra justa. Então, quando ele apresentará com autoridade o caminho da não-violência cristã para o mundo aprender e praticar?
Em Fratelli Tutti, Francisco inclui alguns parágrafos, 256-262, que são extremamente severos com a teoria da guerra justa: “Nas últimas décadas, todas as guerras foram ostensivamente ‘justificadas’” (mesmo as guerras preventivas). Observe as aspas de ironia.
Ele prossegue dizendo que, com o desenvolvimento das armas nucleares, químicas e biológicas, “não podemos mais pensar na guerra como uma solução, porque provavelmente seus riscos serão sempre maiores do que seus supostos benefícios”.
Em outras palavras, Francisco não entende que o critério da teoria da guerra justa, “proporcionalmente”, possa ser cumprido. Ele também não acredita que o critério de “imunidade de não-combatentes” possa ser observado nas guerras modernas. “As possibilidades enormes e crescentes oferecidas pelas novas tecnologias”, escreve ele, “concederam à guerra um poder destrutivo incontrolável sobre um grande número de civis inocentes”.
O mais revelador, em uma nota de rodapé, ele escreve: “Agostinho, que forjou um conceito de ‘guerra justa’, que não defendemos mais em nossos dias, também disse que ‘é uma glória maior ainda manter a própria guerra com uma palavra, do que matar homens com a espada e obter ou manter a paz pela paz, não pela guerra’”.
Francisco pode estar rebaixando a teoria da guerra justa de seu lugar proeminente no pensamento cristão, mas isso significa que ele está abraçando a não-violência do Evangelho como a postura alternativa? Não se pode concluir isso, a menos que também se leia sua mensagem do Dia Mundial da Paz de 2017, “Não-violência: um estilo de política para a paz”.
Nesse documento, ele toca quase todas as bases de uma compreensão abrangente da não-violência do Evangelho e começa a expor o que uma encíclica sobre a não-violência poderia expor de forma ainda mais completa e vigorosa.
Primeiro, ele entende que, de acordo com o Novo Testamento, a não-violência é o que Jesus modelou e ensinou como a forma de confrontar e superar a opressão e a violência. A teoria da guerra justa, por outro lado, não é ensinada por Jesus. É uma parte da filosofia do direito natural que nos veio do classicista Cícero por meio de Agostinho.
Francisco observa: “Jesus traçou o caminho da não-violência. Ele percorreu esse caminho até o fim, até a cruz, por meio da qual se tornou a nossa paz e pôs fim à hostilidade... Ser verdadeiros seguidores de Jesus hoje também inclui abraçar seu ensino sobre não violência”.
"Em uma encíclica, Francisco poderia elaborar ainda mais como a vida de Jesus exemplifica do início ao fim a práxis de uma resistência não-violenta. Por exemplo, ele poderia mostrar como no capítulo 3 do Evangelho de Marcos quando Jesus resiste à forma distorcida como os fariseus estão praticando o descanso sabático. Ele corajosamente cura o homem com a mão atrofiada. No início de sua vida pública, ele tem os líderes no comando prontos para matá-lo por enfrentá-los e mostrar, sem violência, um caminho diferente a seguir.
Em segundo lugar, Francisco reconhece que muitas pessoas confundem a não-violência com pacifismo ou com uma resposta passiva ao mal e à violência. “A não violência é às vezes considerada como significando rendição, falta de envolvimento e passividade, mas este não é o caso”, ele escreve na mensagem do Dia Mundial da Paz. Francisco cita o papa Bento XVI, que disse que a não-violência “não consiste em sucumbir ao mal... mas em responder ao mal com o bem, quebrando assim a corrente da injustiça”.
Em uma encíclica, Francisco seria capaz de explicar mais completamente como a ação não-violenta funciona no estilo jiu-jitsu, usando armas como a não-cooperação, resistência civil, boicotes e o poder do sofrimento próprio para superar a violência e a opressão.
Terceiro, nesta breve mensagem de paz ao mundo, Francisco já começa a apresentar algumas das surpreendentes vitórias políticas alcançadas por meio de ações não violentas. Ele cita o papa João Paulo II, que escreveu que pensava que a divisão entre Oriente e Ocidente levaria a outra guerra, mas em vez disso, o Muro de Berlim caiu e um país após o outro foi libertado – por meio do Solidariedade na Polônia, a manifestação das velas na Alemanha Oriental, a longa marcha não-violenta na Lituânia.
“Esta transição política pacífica foi possível em parte ‘pelo compromisso não-violento de pessoas que, embora sempre se recusando a ceder à força do poder, conseguiram repetidas vezes encontrar formas eficazes de dar testemunho da verdade’”, Francisco escreve, citando João Paulo II.
Em uma encíclica, Francisco será capaz de dramatizar muitas das outras mudanças políticas importantes provocadas pela não-violência ativa nos últimos 80 anos, como a resistência do povo dinamarquês que resgatou seus irmãos e irmãs judeus das mãos dos nazistas, a Revolução do Poder Popular que superou o ditatorial Ferdinando Marcos nas Filipinas e os jovens que planejaram a remoção não violenta de Slobodan Milosevic na Sérvia.
Muitas pessoas pensam que a única proteção real que as pessoas têm contra a opressão e a violência é a violência. Poucas pessoas ouviram as histórias momentosas da não violência e não têm ideia de suas realizações. Trazer essas histórias adiante em um importante documento de ensino do papa trará alguma credibilidade e esclarecimento.
Em quarto lugar, Francisco está bem ciente dos muitos heróis individuais da não-violência, de todos os lugares do mundo e de todas as tradições religiosas. Ele menciona quatro exemplos em sua mensagem para o Dia Mundial da Paz: Mahatma Gandhi e Khan Abdul Ghaffar Khan na libertação da Índia; Dr. Martin Luther King no combate à discriminação racial; e Leymah Gbowee e as milhares de mulheres liberianas que ajudaram a terminar a segunda guerra civil na Libéria.
Em uma encíclica, o Papa poderá descrever os muitos heróis atuais, especialmente os católicos, que estão resistindo com sucesso à violência e à opressão em todo o mundo, os novos heróis da pacificação. Ele poderia compartilhar as histórias do grupo de 80 conselheiros com os quais se reuniu em 2016 e 2019, que contaram suas histórias de resistência à violência em seus países de origem com a não-violência.
Finalmente, o Papa evidencia na mensagem de paz um claro senso de como a virtude da não-violência como estilo de vida e como forma de ação passa a ser praticada. Ele fala sobre o importante papel da família em fundamentar e nutrir a virtude da pacificação e da não-violência.
“Se a violência tem sua origem no coração humano, então é fundamental que a não-violência seja praticada antes de tudo dentro das famílias... A família é o recinto indispensável no qual esposos, pais e filhos, irmãos e irmãs, aprendem a se comunicar e mostrar uma preocupação generosa uns com os outros, nos quais as fricções e mesmo os conflitos devem ser resolvidos não pela força, mas pelo diálogo, pelo respeito, pela preocupação pelo bem do outro, pela misericórdia e pelo perdão. De dentro das famílias, a alegria do amor jorra para o mundo e irradia para toda a sociedade”, escreve.
Imagine uma encíclica na qual Francisco vai além do conselho para a família e convoca toda a Igreja para aprender e praticar a não-violência. Hoje, os seminários não treinam seminaristas na não-violência. Consequentemente, poucos padres podem pregar sobre a não-violência em suas comunidades.
O Papa poderia convocar toda a Igreja Católica – todas as paróquias, dioceses, escolas, universidades e agências da Igreja – para aprender e praticar a não-violência evangélica. Imagine se todos os 1,2 bilhão de católicos do mundo aprendessem e praticassem a pacificação criativa e não-violenta. Um tsunami.
Então, por que Francisco deveria publicar uma encíclica sobre o assunto se ele já o ensinou? A resposta é que há uma grande diferença entre um documento oficial de ensino confiável e bem elaborado, emitido para todo o mundo, e um discurso de 15 minutos de uma sacada no Vaticano. O poder de uma encíclica é exemplificado pelo impacto da Laudato Si', sobre o cuidado da Casa Comum.
Por que o Papa não publicou uma encíclica sobre a não-violência? Talvez ele esteja esperando por um movimento de base pela não-violência para melhorar as chances de uma recepção positiva. Talvez ele não saiba que quanto mais aumenta o azedume, pelo menos nos EUA, mais a população está em guerra. As últimas quatro guerras escolhidas pelos Estados Unidos – Coreia, Vietnã, Afeganistão e Iraque – terminaram com uma perda total ou como fiascos de desperdício e imprudência. Talvez ele ainda não reconheça a fome que as pessoas têm de uma alternativa à violência e à guerra, algo que já foi provado continuamente.
Nem todas as pessoas são chamadas a seguir a mensagem do Evangelho e o exemplo de Jesus, mas os cristãos certamente são. Será uma grande bênção para os cristãos ter a Igreja reivindicando publicamente a não-violência do Evangelho.
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O Papa já ensinou sobre a não-violência. Que coloque em uma encíclica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU