11 Novembro 2020
Enquanto avançam, pelo mundo, estudos para chegar a um imunizante, agência brasileira paralisa, de maneira suspeita, testes do Instituto Butantan. Mais uma sabotagem do governo? E mais: como funciona a vacina de RNA.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outras Palavras, 10-11-2020.
A Anvisa determinou a interrupção do estudo clínico da vacina CoronaVac. Publicado ontem à noite, o comunicado fala que a decisão foi tomada depois que a agência foi informada sobre a ocorrência de um evento adverso grave. E, sem dar detalhes, lista alguns desses efeitos: mortes, invalidez, etc.
A notícia já chamava atenção por ser a agência reguladora e não a empresa patrocinadora dos testes da vacina a anunciar a interrupção, diferentemente do que aconteceu quando as candidatas da Johnson & Johnson e da AstraZeneca tiveram seus ensaios paralisados. Mas ficou ainda mais estranha quando se soube que o Instituto Butantan, responsável pela CoronaVac no Brasil, sequer foi avisado pela Anvisa.
Em nota, o órgão paulista disse “que foi surpreendido na noite de segunda-feira” pela decisão da agência. Em entrevista à TV Cultura, o diretor do Butantan foi além. Segundo Dimas Covas, “a Anvisa foi notificada de um óbito, não de um efeito adverso”. Ele sustenta que a morte não tem relação com a vacina. “Ou seja, como são mais de dez mil voluntários nesse momento, pode acontecer óbitos. Nesse momento, [o voluntário] pode ter um acidente de trânsito e morrer. Ou seja, é um óbito não relacionado à vacina. É o caso aqui“, disse, defendendo que não há motivo para a interrupção do estudo clínico.
A imprensa apurou que o voluntário morreu no dia 29 de outubro, tinha 33 anos e era morador de São Paulo. Não se sabe ainda se recebeu placebo ou vacina. Ele era monitorado pelo Hospital das Clínicas, um dos 16 centros de pesquisa parceiros do Butantan na realização do ensaio clínico.
A notificação desse óbito teria seguido o trâmite normal. O HC comunicou a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, a Conep, por meio de um sistema de informação que é alimentado com dados sobre a evolução clínica dos pacientes. E, de acordo com o coordenador da Conep, Jorge Venâncio, coube ao Butantan a tarefa de comunicar a Anvisa.
Ao Estadão, Venâncio reforçou a hipótese de que a morte não está ligada à CoronaVac: “É bastante improvável que o evento que ocorreu tenha qualquer relação com a vacina, mas está sendo investigado. Acredito que rapidamente vai ser esclarecido”. A reportagem explica que mesmo casos como acidentes de trânsito devem ser investigados para apurar se o imunizante causou ou agravou o episódio – uma tontura ao volante, por exemplo.
A investigação, porém, poderia acontecer sem a interrupção dos testes. O UOL lembra que, em 19 de outubro, morreu um voluntário brasileiro que participava dos testes da vacina de Oxford/AstraZeneca, que é a principal aposta do governo federal. Na ocasião, a Anvisa decidiu pelo prosseguimento do estudo, seguindo a sugestão do Comitê Internacional de Avaliação de Segurança.
O estudo patrocinado pela AstraZeneca já foi paralisado sim, mas por conta de outro caso. Aconteceu por decisão da própria farmacêutica em 6 de setembro, depois que uma voluntária do Reino Unido foi diagnosticada com mielite. A investigação feita pelo comitê independente do estudo concluiu que a síndrome inflamatória não tinha a ver com a vacina. No dia 12 daquele mês, a Anvisa deu autorização para que o ensaio prosseguisse por aqui.
A comparação dos casos alimenta o medo de que a Anvisa possa estar usando pesos e medidas diferentes para as duas vacinas que podem estar disponíveis mais rapidamente para a população brasileira – e, não por acaso, foram envolvidas na disputa política entre Jair Bolsonaro e João Doria.
Para integrantes do governo paulista ouvidos pela Folha, houve “boicote” da Anvisa ao fazer a suspensão sem informar o Butantan antes. Isso porque, embora esse aviso não seja uma obrigação, é inédito que a agência tome uma decisão dessa natureza sem consultar o patrocinador de uma vacina, no caso, o centenário instituto de pesquisa.
Como era de se esperar, o caso chama atenção internacional e coloca o Brasil nos holofotes, não só pela expectativa em torno da imunização mas também por se tratar da primeira paralisação nos testes clínicos de uma candidata à vacina chinesa, como destaca a Bloomberg. A Indonésia, um dos países em que a fase 3 da CoronaVac está acontecendo, já se pronunciou sobre o assunto: resolveu não seguir a decisão da Anvisa. Por lá, há 1,6 mil voluntários. Por aqui, são 13.060.
A suspensão será tratada hoje às 11h pelo governo de SP, em uma entrevista coletiva à imprensa que acontece na sede do Butantan.
A decisão da Anvisa aconteceu horas depois que o governo de São Paulo chamou toda a imprensa para anunciar o início das obras de ampliação da fábrica do Instituto Butantan e antecipou mais informações sobre o cronograma da CoronaVac. Ontem pela manhã, o governador João Doria (PSDB) participou da cerimônia e divulgou que a reforma vai permitir que a capacidade de produção de vacinas chegue a cem milhões de doses por ano. O tucano também aproveitou para divulgar que São Paulo deve receber no dia 20 de novembro as primeiras 120 mil doses importadas da CoronaVac e que o local desse estoque será mantido em segredo pelas autoridades.
Depois, em entrevista à Rádio Gaúcha, alfinetou o governo federal, afirmando que o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, havia prometido investir R$ 84 milhões nas obras, mas nenhum centavo havia sido depositado até aquele momento.
A agenda do dia, claramente construída para ser politicamente vantajosa para Doria, foi suplantada pelo anúncio de paralisação dos testes clínicos. Aliados do governador chamaram atenção para o timing de divulgação observado pela agência reguladora. Segundo eles, a publicação da nota – às 21h – casou com o horário dos noticiários de televisão.
Falamos ontem por aqui da última pesquisa Datafolha que mostrou queda da adesão da população de quatro capitais em se vacinar. Pois bem: a resistência é ainda mais expressiva quando os entrevistados são perguntados se topariam receber um imunizante desenvolvido na China – e a xenofobia é maior entre quem aprova o governo de Jair Bolsonaro. Entre os cariocas, por exemplo, 68% dos apoiadores do presidente recusariam as doses chinesas.
Na população em geral, os índices também são baixos. Em Recife, só 42% tomariam um imunizante criado pelos chineses; mas 65% pretendem se vacinar quando a nacionalidade da vacina não é colocada em pauta. Os índices ficam em 52% contra 73% no Rio; 52% contra 74% em Belo Horizonte; e 57% contra 72% em São Paulo.
A Pfizer anunciou ontem que sua vacina BNT162b2, desenvolvida com a empresa de biotecnologia BioNTech, apresentou eficácia de mais de 90% na fase 3 dos testes clínicos. Isso significa que, de cem pessoas que tomam a vacina, 90 ficam efetivamente protegidas. Mas essa é apenas uma análise preliminar dos ensaios, e os resultados ainda não foram publicados nem analisados por pares. De todo modo, a notícia é tão animadora quanto surpreendente, porque a expectativa geral era de ter uma eficácia de algo entre 50% e 70% nas primeiras vacinas aprovadas – essa é a faixa em que os próprios fabricantes estão apostando.
O estudo conta com mais de 40 mil voluntários e vai terminar quando forem registradas 164 infecções, incluindo quem tomou a vacina e o placebo. Essa primeira análise foi feita quando se chegou a 94 casos de covid-19 confirmados. Pode ser que, até o fim do ensaio, a eficácia mude um pouco, mas provavelmente vai ficar bem acima de 50%.
E o alto percentual não foi a única surpresa no anúncio. Inicialmente, a Pfizer tinha previsto fazer uma primeira avaliação quando houvesse apenas 32 voluntários infectados, o que foi altamente criticado por especialistas no mundo todo. Depois de conversas com a FDA (a Anvisa dos EUA), o número subiu. Com 98 infectados, a força estatística dos resultados é bem maior do que a inicialmente esperada, como explica a matéria do STAT.
A Pfizer e a BioNTech disseram que já planejam enviar um pedido de aprovação emergencial à FDA após a terceira semana de novembro. Até lá, as empresas planejam ter conseguido avaliar metade dos voluntários em relação a possíveis problemas de segurança – haveria, para isso, a necessidade esperar dois meses após o recebimento da segunda dose.
Há muitas razões para otimismo, mas é sempre preciso ter alguma cautela com as boas notícias. Como tem acontecido bastante durante a pandemia, o comunicado à imprensa foi feito no site da Pfizer, faltando a necessária publicação dos dados. Sem eles, é difícil ter uma avaliação mais completa.
Ainda há muito que não se sabe. Até agora, nenhum dos 94 infectados (incluindo os que tomaram placebo) desenvolveram covid-19 grave. Não tem como avaliar, então, se a vacina impede que uma pessoa contaminada tenha formas graves da doença. “Quero saber o espectro de doenças que a vacina previne. Gostaríamos de ver pelo menos um punhado de casos de doença grave no grupo placebo”, diz à Nature Paul Offit, professor da Universidade da Pensilvânia e membro do comitê consultivo da FDA.
Os voluntários no estudo só foram testados para covid-19 quando desenvolveram sintomas, então não dá para saber quantos pegaram o vírus e se mantiveram assintomáticos. Isso pode ser um problema quando pensamos na possibilidade de essas pessoas transmitirem a doença – nesse caso, a vacina funcionaria muito bem para proteger individualmente quem tomou, mas não necessariamente para proteger a comunidade. E essa deve ser uma dificuldade para qualquer das vacinas que estão em ensaios clínicos, porque envolveria testar regularmente todas as dezenas de milhares de participantes.
Outras questões em aberto: quanto dura a imunidade, se a eficácia é alta em idosos e se as crianças são protegidas em alguma medida.
Em geral, as vacinas envolvem injetar um patógeno inativado ou atenuado no nosso corpo para que o organismo o identifique e aprenda a se defender. Em alguns casos, uma parte específica desse patógeno (como uma proteína) é produzida em laboratório e utilizada no imunizante. Não é assim que a vacina da Pfizer funciona. Ela só envolve uma parte do código genético do vírus, o RNA mensageiro, para induzir o corpo a produzir uma proteína do SARS-CoV-2.
A matéria da BBC explica: “Os cientistas identificam a parte do código genético viral que carrega as instruções para a fabricação dessa proteína e a injetam em nós. Uma vez absorvida por nossas células, ela funciona como um manual de instruções para a produção da proteína do vírus. A célula fabrica essa proteína e a exibe em sua superfície ou a libera na corrente sanguínea, o que alerta o sistema imune”. A proteína codificada é a que o vírus usa para invadir as células e se replicar. Com a vacina, o sistema imunológico aprende a reconhecê-la e bloqueá-la, interrompendo a infecção quando um contato com o vírus verdadeiro acontece.
Há algumas vantagens nesse processo: ele não demanda o cultivo de grandes quantidades de vírus para usar como matéria-prima, o que torna a estrutura de produção mais enxuta, com custo provavelmente menor. Mas é uma tecnologia relativamente recente e nenhum produto de RNA mensageiro foi aprovado pelas agências reguladoras até hoje. Esses resultados são animadores porque mostram que há viabilidade no processo.
Aliás, as notícias de ontem não são boas só para a Pfizer, mas para outras empresas que apostam no mesmo tipo de tecnologia. É o caso da Moderna, que pretende lançar seus primeiros resultados de eficácia ainda este mês.
O maior problema é que o RNA se degrada muito fácil, e a vacina da Pfizer precisa ser mantida a cerca de -70°C. Obviamente, isso gera grandes desafios para o armazenamento e transporte, sobretudo em países de baixa renda. A Vox lembra que, segundo a OMS, hoje mais da metade de todas as vacinas do mundo vão para o lixo, principalmente porque estragam devido a falhas no controle de temperatura.
Em coletiva de imprensa, o presidente da BioNTech disse que a empresa está pesquisando formas de manter a vacina por cinco dias em uma temperatura de 4°C, o que facilitaria as coisas. Ainda não há nada conclusivo. Nesse aspecto, o imunizante da Moderna tem uma pequena vantagem: sua temperatura de armazenamento é de -20°C – longe do ideal, mas menos ruim.
Há outro grande porém. Junto com o anúncio sobre os resultados, a Pfizer e a BioNTech disseram que estão tentando aumentar sua produção para chegar a 50 milhões de doses até o fim do ano e 1,3 bilhão durante o ano que vem. É pouco: como a vacinação se dá em duas doses, a quantidade só daria para imunizar 650 milhões de pessoas.
O ano de 2020 está ‘dominado’ pelos EUA, que firmaram em julho um acordo para comprar cem milhões de doses – ou duas vezes mais do que a produção esperada. Também foram fechados acordos com a União Europeia (200 milhões de doses), além de outros com o Reino Unido, Canadá e Japão. E as empresas consideram também um possível fornecimento do imunizante ao consórcio global Covax Facility.
O Brasil não se interessou por garantir nenhuma dose da Pfizer, embora parte dos estudos de fase 3 da vacina estejam acontecendo em São Paulo e na Bahia.
Em SP, como sabemos, os investimentos foram direcionados para a CoronaVac. Já a Bahia fechou um acordo com o governo russo para ser o único responsável pela comercialização da Sputnik V no Brasil. Ontem, o governador Rui Costa (PT) comentou os resultados divulgados pela Pfizer. Segundo ele, o obstáculo para adquirir o imunizante seria o custo, “mais que o dobro das vacinas de outras nacionalidades“. Por isso, defendeu que o governo federal deve tomar a dianteira por ser “historicamente” quem compra e distribui vacinas para os estados.
A empresa chegou a enviar uma proposta ao governo federal em meados de agosto, mas não obteve resposta – o que, segundo a Folha, foi interpretado como um sinal de pouco interesse na compra. Segundo a Pfizer, há apenas contatos com alguns estados para negociar a compra de doses.
Agora isso ficou chato. O Ministério da Saúde divulgou uma nota ontem dizendo que “todas as vacinas com estudos avançados no mundo estão sendo analisadas, inclusive a do laboratório Pfizer” – o que foi ecoado por Jair Bolsonaro em suas redes sociais. Já a Pfizer disse que “continua em contato com o governo brasileiro” e “ofereceu a possibilidade de encaminhar uma proposta atualizada de fornecimento de sua potencial vacina, sujeita à aprovação regulatória”.
Depois do anúncio da Pfizer, um representante do Ministério da Saúde da Rússia afirmou que a vacina Sputnik V também teria mais de 90% de eficácia. Não foi publicado nenhum informe, porém, e ele disse que os dados se referem à vacinação do público (já liberada em parte no país), e não aos testes em andamento.
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Vacinas: Anvisa decreta uma estranha interrupção - Instituto Humanitas Unisinos - IHU