09 Novembro 2020
"Os Chiquitanos que são acusados de serem 'mulas' ou traficantes e são considerados meio cidadãos porque são ditos bolivianos, são acusados como bugres [2] sem voz e sem vez na terra de santa cruz. No fim, queremos somente sua força de trabalho, seu território e, quando seus corpos estão cansados e mortos, jogamos na vala comum, sem dignidade, como se não fossem pessoas humanas", escreve Aloir Pacini, padre jesuíta, antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.
Estamos com uma chaga aberta de luto no coração do Brasil, por causa da Pandemia. Poderíamos amenizar as dores das pessoas, evitando todos os tipos de contágio, e nossa ação também deve ir na direção de diminuir as violências que são institucionais. Quando não podermos voar, corremos. Se não podemos correr, andamos. E se não podemos andar, gatinhamos. Sem poder gatinhar, nos arrastamos para chegar onde queremos. Mas melhor mesmo é ir com a mente e a imaginação onde nosso corpo não dá conta de ir. O importante é não parar de sonhar que a Justiça é possível, mesmo aqui na terra.
A comunidade Chiquitana de San José de la Frontera (San Matías, Bolívia), mas especialmente os familiares das 4 vítimas da chacina ocorrida no dia 11/08/2020 na Fazenda São Luiz (Cáceres – MT) falam com desejo de que se faça Justiça, pois foram caçar e foram mortos pelo Gefron (GRUPO ESPECIAL DE FRONTEIRA) de forma cruel. Os Direitos Humanos de Cuiabá e Cáceres (MT) foram ao local no dia 02/09/2020, momento em que foram recolhidas imagens do local da chacina, as poças de sangue ainda podiam ser encontradas no chão seco e aberto de pastagem para o gado. Nesse caso, não foram periciadas e ficam a uns 15 metros distantes da árvore cravejada de balas chamada catinguinha ou fedebosta que recebeu na sua sombra uma cruz com os nomes de Arsino, Pablo, Yona e Esequiel esculpido na sua madeira de ipê roxo. Nesse dia da celebração eucarística presidida pelo bispo de San Ignácio de Velasco foram gravadas as falas que foram disponibilizadas com o objetivo de compreender o ocorrido nessa situação de violência que aumentou muito na Fronteira depois que o governo fascista tomou o poder no Brasil.
A Delegada do Defron de Cáceres, Dra. Cinthia Gomes da Rocha Cupido, marcou OITIVA de TESTEMUNHAS no caso dos CHIQUITANOS e as pessoas tiveram dificuldade de vir. Foi remarcada para o dia 05.11.2020 às 10h no âmbito do Inquérito Policial e Daniel Bretas Fernandes (Advogado - OAB/MT 24.180) enquanto presidente da Comissão de Direitos Humanos da 3ª Subseção da OAB/MT confirmou a presença de familiares e testemunhas para a oitiva designada e saliento que as testemunhas estarão acompanhadas, pelo Presidente da Comissão de Direitos Humanos da 3ª Subseção da OAB/MT, e outras autoridades: Soilo Urupe Chue - Representante da FEPOIMT e do povo Chiquitano; Dr. Renan Vinicius Sotto Mayor de Oliveira - Presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos e Defensor público federal na função de defensor regional de direitos humanos do MT; Dr. Roberto Vaz Curvo - Presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos; Sr. Inácio José Werner, Coordenador do Fórum Estadual de Direitos Humanos e da Terra e Relator ad hoc no acompanhamento das situações violadoras de direitos humanos do povo indígena Chiquitano na fronteira Brasil-Bolívia perante o CNDH; Sr. Lúcio Andrade Hilário do Nascimento - Ouvidor Geral de Polícia do Estado de Mato Grosso; Sr. Edson Penha Mendes - Coordenador Executivo do Centro de Direitos Humanos Dom Máximo Biennés; Dr. Aloir Pacini, antropólogo da UFMT.
Edson, Soilo, Aloir, Daniel, Curvo, Renan, Inácio, Lucio (Foto: Augusto Pereira)
A Delegada respondeu que não poderia honrar seus compromissos agendados por ela, porque, segundo ela, o inquérito (físico) estaria com o MP, e ela também não estaria na cidade. Resolvemos manter a pauta, dado que estava tudo encaminhado para todos estarem presentes. E nos encontramos na OAB.
(Imagem enviada pelo autor)
Daniel Bretas buscou saber onde estaria o inquérito (físico) e o MP informou que devolveria o mesmo um dia antes por saber da oitiva, conforme resposta da assessora do Dr. José Vicente, promotor responsável. Foi pensado outras formas de colher esses depoimentos agendados talvez com outro delegado ad hoc, pois consideramos importante seguir com o propósito dos depoimentos e, caso a delegada não queira considerar os depoimentos no inquérito, então que envide esforços e condições para que os Chiquitanos e gerente venham em segurança, para que tais depoimentos sejam realizados.
A fronteira onde aconteceu a chacinagem dos Chiquitanos (Imagem do Google Earth do dia 08/07/2019 baixada em 15/10/2020, perícia no local, p. 3)
O local aproximado (coordenadas planas: 21 K 361.696,0 m E, 8.193.332,0 m S) onde Arsino Sumbre Garcia (11/07/1968), Pablo Pedraza Chore (03/06/1980), Yona Pedraza Tosube (23/07/1993) e Esequiel Pedraza Tosube (06/03/2002) estavam caçando quando foram abordados cruelmente pela Guarnição de policias do Gefron, distante a 3.495,0 metros da BR 070, com acesso pela fazenda São Luiz, segundo as linhas vetorizadas em vermelho. A seta e a linha amarela indicam o limite da fronteira seca entre o Brasil e a Bolívia (1.153,0 metros da divisa entre esses dois países em linha reta). A comunidade boliviana de San José de la Fronteira fica a cerca de 2 quilômetros do local da chacina. O círculo sob a cor azul indica a localização do Serviço Brasileiro de Aduaneira e as Bases Policiais no Brasil e Bolívia (barreiras fronteiriças) antes de chegar na cidade de San Matías (Bolívia), local de intenso comércio com brasileiros que lá buscam as vantagens dos câmbios.
Do local onde houve a chacina os caminhos são por dentro de fazendas e sítios, abrindo e fechando porteiras se de carro ou de moto. Mas os dois grupos estavam a pé, por isso poderiam abaixar-se para cruzar os arames. O gerente encontrou com os quatro policiais do Gefron próximo do local do crime e foi impedido de se aproximar. Mas quando estava retornando para a sede da Fazenda São Luiz, encontrou mais 4 viaturas chegando, uma delas descaracterizada como carro do Gefron. Depois disso escutou mais um monte de tiros, provavelmente para criar o ambiente que desse álibi à versão narrada no BO. Questionável é que não foi apreendida nenhuma droga e, diante da gravidade do caso e da fuga de “9 mulas” todos carregando mochilas bem longe da fronteira pelo campo aberto, por que não foi acionado o AGUIA (helicóptero) da polícia para dar apoio, sendo que isso é procedimento padrão em situações dessa natureza. Retiraram os corpos do local e se deslocaram 3,5 km até a BR 070 em estrada com pavimento de terra e, deste ponto na BR, se deslocaram mais 80,5 km até a ponte de concreto sobre o Rio Paraguai e na Cidade de Cáceres deslocaram-se por mais 5 km até o Hospital Regional de Cáceres para desovar os corpos mortos de forma a não ligar com o local da chacina.
No caso as filmagens já feitas e dos depoimentos poderiam servir como indícios de prova para a instauração da ação penal. De qualquer forma, instaurada a ação penal, essas pessoas que gravaram os vídeos serão ouvidas novamente perante o(a) juiz(a).
Melania e seu esposo foram conversar com o gerente no dia anterior e ele afirmou que viria trazendo o Matheus e o José, o pai do Yona.[1] Os que foram ao local o local da chacina no dia seguinte e viram como tudo estava, disseram que viriam com o gerente da fazenda São Luiz. Contudo, informaram que não viriam mais porque não possuem segurança em suas vidas. As viúvas, mães e irmãs dos chacinados vieram em peso e afirmaram claramente que eles saíram para caçar, falam que eles não são “mulas” instrumentalizadas pelo tráfico e mostraram que sabem os trabalhos que seus maridos, filhos, irmãos tinham para ganhar o seu dinheiro e sustentar as famílias. Fabíola, uma das viúvas, confidenciou-me que o falecido a deixou grávida.
Assim passamos a manhã na presença do Dr. Bernardo Meyer Cabral Machado, Procurador da República do Ministério Público Federal (MPF-Cáceres) e as falas de todos foram contundentes: a questão é que o Gefron está matando sem critério na Fronteira, e os Chiquitanos são as maiores vítimas. Eles estavam caçando como trabalho tradicional deles, por isso a mãe de Esequiel perguntou: onde está o facão, a foice, o enxadão e a 22 que eles levaram? Provavelmente queriam que eles dissessem onde estava a droga, mas eles não tinham. Como o caso foi para a Segunda Câmara e o MPF voltou a atuar no caso do massacre dos Chiquitanos, está sujeito a haver conflito de competências, porém claramente trata-se de um caso que deve ser julgado na Justiça Federal. Os Chiquitanos (homens) não tiveram coragem para vir para depor porque as ameaças aconteceram de fato para eles não pisarem mais no Brasil e geralmente são eles as vítimas, mas as mulheres vieram e foi muito bom o conjunto da obra.
O ícone vermelho sinalizado por um círculo da mesma cor indica o local aproximado onde os Chiquitanos foram mortos pela Guarnição de policiais do GEFRON quando vinham pela estrada de chão batido até o local da ceva dos animais.
“A seta vermelha determina o acesso dentro da Fazenda São Luiz, perpassando área de pastagens artificiais – trajeto este desenvolvido pelo Perito e pelos agentes de segurança policial e do Exército Brasileiro. Inclusive, a Sede dessa Fazenda situava ao lado da divisa seca entre esses dois países. As linhas tracejadas em amarelo determinam a existência de uma trilha de chão batido e compactado que contornava a área coberta com vegetação nativa primária com característica de Cerradão com intenso processo de caducifolia (perdas das folhagens), quando da realização dos exames periciais. Apesar desse ambiente ser coberto com muitas árvores de médio porte, tem-se facilidade para deslocamento no interior dessa cobertura vegetacional, devido a existência de um extrato inferior pouco adensado, coberto com vegetação arbustiva.” (LAUDO PERICIAL Nº 400.2.0 6.2020.011489 -01 p. 4).
Diante dessa perícia no local da chacina quase dois meses depois, ficou a dúvida: Será que a polícia técnica do Mato Grosso seria autônoma ou subordinada à polícia civil do Estado? E foi respondido que o Departamento técnico-científico atua em cooperação com as polícias estaduais e é subordinado à Secretaria de Segurança Pública do Estado. Ou seja, é possível a parcialidade em laudos e perícias destinados à averiguação dos assassinatos na fronteira Mato Grosso e Bolívia.
As campanhas contra os Direitos Humanos impulsionadas pelos bolsonaristas afirmavam claramente que estes defendiam bandido e eu ficava estranhando aquilo, porque gastar tempo com essa conversa torta que não procede e não tem sentido, pois os DH auxiliam a tirar parte dos preconceitos contra os que estão na classe mais baixa da sociedade, mas tinham um objetivo. E agora fica mais claro que isso tudo sustenta essa maneira truculenta das polícias agirem. Ficou muito fácil para o Gefron fazer o trabalho sujo: possuem o poder do Estado, as armas e o aparato jurídico do seu lado e estoura no lado fraco da sociedade, os Chiquitanos que são acusados de serem “mulas” ou traficantes e são considerados meio cidadãos porque são ditos bolivianos, são acusados como bugres [2] sem voz e sem vez na terra de santa cruz. No fim, queremos somente sua força de trabalho, seu território e, quando seus corpos estão cansados e mortos, jogamos na vala comum, sem dignidade, como se não fossem pessoas humanas.
A delegada formalmente costuma fazer o pedido de perícia no local do crime quando chega mais um BO, isso para não ser acionada por improbidade administrativa, mas os peritos não executam, pois consideram que são mulas mesmo que são mortos, e nenhum inquérito policial prospera quando envolve os pobres, os bolivianos, os bugres nessa Fronteira. Quem vai devolver a dignidade humana a essas pessoas que foram vítimas desses massacres, mas também aos policiais para que estejam a serviço da Justiça?
O Secretário de Segurança Pública de Mato Grosso, inquirido a respeito da chacina dos Chiquitanos, simplesmente responde fazendo uma cópia do BO e colando como se fosse essa a voz oficial. Não teve nem o trabalho de elaborar um texto. Chega a ser vergonhoso tentar abafar o caso usando o Órgão para acobertar este e outros casos graves que aconteceram na Fronteira. O apoio jurídico para encontrar a justiça, após ouvidas as famílias e amadurecer a situação atual, está chegando de forma voluntária com Renan como o CNDH e os demais que estamos atuando de forma conjunta e coordenada, o que se faz necessário devido à gravidade dos fatos. Assim vamos unificando os diálogos e encaminhamentos da chacina dos Chiquitanos.
Comissão dos Direitos Humanos apreciando uma peixada de Cáceres, em 05/11/2020. (Foto enviada pelo autor)
Na reunião do dia 9 de setembro na prefeitura de Cáceres com as autoridades, policiais e alcaldía de San Matías procuraram costurar por cima, e o delegado afirmou que o inquérito estava adiantado: "Está bem avançado!". Contudo isso é superficial pois até os Chiquitanos das famílias vitimadas foram impedidas de entrar naquela reunião e saíram dizendo que a Delegada estava em Brasília buscando indenização para as famílias das vítimas. Falaram que iria acontecer outra reunião mas não fiquei sabendo se aconteceu.
Daniel Bretas esteve em reunião com o observatório, especificamente com a Professora Vivian e o Prof. Luciano. Fez os informes sobre o caso, e o prof. Luciano apontou Cláudia Peiz de São Paulo, especializada em medicina legal antropológica que poderia fornecer uma segunda opinião a respeito dos laudos de necropsia. Daniel Bretas também falou com o jornalista Leandro a respeito das gravações dos depoimentos e a reportagem deve ser publicada no dia 16/11. Os encaminhamentos foram os seguintes:
1. O Dr. Renan Vinicius Sotto Mayor de Oliveira da DPU tornar-se o procurador das famílias Chiquitanas para defendê-las no Processo em curso;
2. Trata-se de um caso de competência da Justiça Federal, pois são indígenas mortos em contexto de tradição cultural de caça, o BO fala que são bolivianos, então são pessoas da nação vizinha que foram mortos pelo Gefron em território brasileiro, um caso internacional etc.
3. Oficiar ouvidoria a respeito dos dados sobre as mortes ocorridas na fronteira em decorrência de confronto com a polícia nos últimos 5 anos. [3]
[1] O gerente já havia dito que não fora liberado na oitiva passada, mas é pessoa muito importante para falar o que ele ouviu e viu, os três momentos de tiros e também como ele viu os policiais no local do crime. Diante do fato do gerente ter medo de depor, pensamos formas de ir até a Fazenda e gravar com ele, na presença das autoridades para que seja aceito no inquérito.
[2] Chamar os Chiquitanos de bugres para dizer que eles não são indígenas e nem brancos, uma “mistura deplorável”, foi a estratégia para não lhes garantir a posse do território tradicional que ocupam, direito constitucional.
[3] Desde julho próximo passado para cá são no mínimo 17 (dezessete) óbitos, a maioria deles relacionados à "Operação Hórus/Vigia" ligada ao "Programa Vigia" do Ministério da Justiça e Segurança Pública - MJSP.
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A chacina dos Chiquitanos na fronteira com a Bolívia é assunto Federal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU