Peritos deixam mais confuso o caso dos Chiquitanos chacinados na fronteira

Chiquitana chora perda de seus familiares e exige justiça | Foto: Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana do Estado de Mato Grosso – CEDPH-MT e do Fórum de Direitos Humanos e da Terra de Mato Grosso – FDHT-MT

27 Outubro 2020

"Os quatro Chiquitanos não estavam no pé do gonçaleiro quando foram alvejados, os locais do sangue escorrendo é em outro lugar e isso não é mencionado. As conclusões do laudo da perícia feita no local são prejudicadas pelo tempo que passou sem que tenha sido feito com objetividade o trabalho. Mas o mais grave é apontar para confronto armado, o que parece mais ridículo que o trabalho mal feito, pois não existe como chegar a essa conclusão de modo algum e fica feio querer acusar os Chiquitanos, pois parece que foi feito para absolver os policiais, ou seja, fica evidente a simulação", escreve Aloir Pacini, padre jesuíta, antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.

 

Eis o artigo. 

 

Os laudos periciais, exames de necropsia e no local do crime, deixam mais confuso e não elucidam o caso dos Chiquitanos chacinados na fronteira. Talvez o resultado da eleição presidencial na Bolívia venha em benefício da apuração desse massacre e outros. Depois do duro golpe que a democracia sofreu na Bolívia no ano passado, o povo indígena majoritário teve a resiliência histórica e voltou à eleição presidencial para dar uma vitória esmagadora a Lucho Alberto Arce Catacora (55.1% de votos no primeiro turno), no domingo dia 18 de outubro de 2020, isso devido ao grande esforço do povo, em plena pandemia. [1] Desde La Paz, Lucho Arce foi ao ponto:

 

“Todos los bolivianos hemos dado pasos importantes. Hemos recuperado la democracia y la esperanza con una jornada pacífica, tranquila, en la que gran parte de los bolivianos han respondido con su voto. […] vamos a gobernar para todos los bolivianos, vamos construir un gobierno de unidad nacional, vamos unir al país.”

 

A vitória de Lucho Arce auxiliará a elucidar o caso dos Chiquitanos chacinados na fronteira. Fica para o Movimento ao Socialismo(MAS) a responsabilidade de responder com a solidariedade compartilhada a caminho da Abya Yala. Isso tem a ver com o nosso caso na Fronteira, pois é com tristeza que acionávamos os órgãos na Bolívia para atuarem a favor dos quatro Chiquitanos covardemente assassinados somente tinham propaganda contra Evo Morales. As instituições na Bolívia não estavam cumprindo suas funções em defesa do seu próprio povo, somente sabiam dizer que queriam manter boas relações com o Brasil e a paz na Fronteira. Agora eles vão ter que atuar no fim para o qual foram criados, ou seja, penso que isso auxilia a termos mais pressão da Bolívia pela solução do caso dos Chiquitanos de San José de la Frontera.

 

Na Carta de Martinho de Mello e Castro para Luiz de Albuquerque e Melo Pereira Caceres já temos a forma como o governo brasileiro trabalha com espiões, traficantes, mascates e pensa a Bolívia:

 

“Esta carta [1957], sendo escrita ainda no tempo em que os jesuítas residiam e dominavam na América, um dos seus objetos é instruir o Governador de Mato Grosso sobre as cautelas que deve tomar contra as infestações daquela perniciosa sociedade. E como, porém, os castelhanos substituíram os jesuítas, não só nas terras, mas nas máximas, particularmente naquelas que nos dizem respeito às mesmas cautelas e prevenções que então se apontaram a respeito de uns, devem, presentemente, tomar-se com muito para diferença a respeito de outros.[...] Da mesma carta e nos Parágrafos 11 e 12 dela verá V.Sª os motivos que então havia para embaraçarmos a comunicação e entrada de castelhanos nos Domínios portugueses pela via de terra, permitindo-se-lhe somente a do Rio. Como, porém, os ditos motivos têm cessado com a extinção dos jesuítas, e nos é muito conveniente o comércio com as Aldeias Castelhanas [...] porém, e com tal disfarce, que não pareça que V.Sª o promove [...] agasalhar e receber com agrado os habitantes das Aldeias Castelhanas confinantes dessa Capitania, particularmente os Passadores de Fazendas [...]. E destes poderá V.Sª também haver notícias de tudo quanto se passar nos Domínios de Castela.” [2]

 

Aloir, Tadeu Curvo, Inácio Werner, Pastor Teobaldo e Lúcio, ouvidor das polícias, trabalho em equipe para elucidar e alcançar justiça para os Chiquitanos. (Fotos enviadas pelo autor)

 

O tempo passa e as saudades de Pablo Pedraza (38), Ezequiel Pedraza Tosube (18), Arsino Sunbre García (53), Yona Pedraza Tosube (26) transformam-se em saudades inomináveis e lembranças incontidas. As noites são longas, e as pessoas mais próximas dos falecidos não conseguem dormir diante do drama vivido e não solucionado, querem somente a honestidade dos policiais do Gefron. As famílias dos Chiquitanos que foram assassinados vivem de pequenos serviços em fazendas da região, de pequenas plantações, criação de alguns animais domésticos e da caça (que era também uma fonte de alimento). Sempre recordam que saíram para caçar e chegaram em caixões...

 

A dor da morte violenta causada por policiais do Grupo Especial de Fronteira (Gefron) na divisa entre Brasil e Bolívia clama por justiça! A chacina dos quatro Chiquitanos está sob investigação da Polícia Civil.

 

Os desdobramentos são inesperados e disponibilizar os laudos de necropsia é algo muito sofredor para os familiares das vítimas da chacina na fronteira com a Bolívia, pois os corpos feridos daquela forma deixam a todos destroçados, e o quão é pesado imaginar como as vítimas sofreram na mão daqueles militares. Todos sentem a falta deles, e a comunidade pede para que não caia no esquecimento o acontecido, para que nunca mais se cometa uma injustiça tão grande como esta.

 

No domingo, dia 11 de Outubro de 2020, ao completar dois meses do trágico acontecido, uma reportagem bem feita pela Gazeta [3] trouxe nossa memória à tona.

 

Aqui queremos trazer as recordações dos passos dados e mostrar o caminho que temos pela frente. Foi entregue o laudo da necropsia que apontou que os Chiquitanos morreram de choque hipovolêmico, ou seja, perda excessiva de sangue. O exame pericial no local do crime foi realizado na sexta-feira (dia 09 de Outubro de 2020), e os apontamentos repassados para a Polícia Civil parecem um jogo de cartas marcadas. Estes documentos emitidos não foram disponibilizados para as famílias Chiquitanas, pois alegam que corre em segredo de justiça, talvez para a Justiça não chegar até eles.

 

A Ordem dos Advogados do Brasil sediada em Cáceres (OAB) foi atrás para disponibilizar o material, e finalmente tivemos acesso ao laudo da necropsia que apontou a causa das mortes, como a perda excessiva de sangue e o exame pericial no local do crime que foi realizado quase dois meses depois do ocorrido, ou seja, teria sido bem diferente uma perícia no local logo depois do ocorrido. E pior, o perito tira conclusões precipitadas, parece que está sendo acompanhado pelos policiais para dizer o que eles desejam a respeito do acontecido. Os documentos anexados no Inquérito Policial são claramente parciais.

 

Outro caso é o que os policiais que fizeram o Boletim de Ocorrência (BO) falaram: “após informação do Núcleo de inteligência do Gefron de que haveria vários indivíduos armados transportando entorpecentes na região da BR-070 [...] a equipe visualizou vários indivíduos em região de mata portando arama de fogo em punho” (Anderson dos Santos Mello). Não é possível que o Serviço de Inteligência dê conta de detalhes como saber se estavam armados, por exemplo. Ou seja, os policiais estavam convictos de que “encontraram” uma nova modalidade de tráfico, segundo o que consta no inquérito policial: “Que os mulas mudaram o módus operandi, onde uma equipe armada e com cães [4] vão à frente batendo o caminho, enquanto outra equipe vem à retaguarda transportando o entorpecente em mochilas ou cangas.” (Marcos Aurélio Espinosa Pereira, do Gefron). Também os policiais Cristiano Konzen e José Silvio Cardoso de Oliveira dizem algo semelhante. Contudo, estão equivocados, tratava-se de um acontecimento isolado e os indígenas caçavam. Como não tinham droga, parece que a tortura foi ao extremo para que falassem onde estava a droga, até chegar à morte com execução sumária para não testemunharem o ocorrido.

 

Além das lesões dos tiros, os corpos apresentam vários outros sinais de violência que podem ser caracterizados como tortura. Os Chiquitanos buscam auxílio nos Direitos Humanos que pensam além dos individuos, no coletivo da aldeia e da etnia e aparecem muitas pessoas solidárias. Eles pedem a intercessão a Deus e aos Santos para conseguirem manter a perseverança, pois cansam demais esses processos jurídicos perversos e demorados de sempre novamente ter que voltar ao assunto de forma nua e crua. Por vezes os olhos se perdem no horizonte, noutros momentos fixam as fotografias dos falecidos, noutros momentos vão à sepultura rezar ou na cruz que levam os nomes das vítimas.

 

O Ministério Público do Estado de Mato Grosso, a Comissão de Direitos Humanos e a Subseção de Cáceres da Ordem dos Advogados do Brasil, representado por Daniel Bretas Fernandes, seguem acompanhando o caso, para que a conclusão do inquérito policial resulte em ação penal, pois não há nenhum processo de morte de Chiquitanos pelos policiais que prosperou até os dias de hoje. Os Chiquitanos estão com medo do que a polícia pode ainda fazer e perguntam-se: Se fizeram isso com os inocentes e, depois ainda acusaram que eram mulas humanas levando drogas, o que o Gefron pode ainda fazer para encobrir seus erros?

 

Os familiares clamam por Justiça porque vidas humanas foram interrompidas... E não precisava ser assim, se os policiais não tivessem as costas quentes e fossem mais prudentes, tivessem compreensão que se fizerem algo errado também seriam punidos. A chacina é investigada pela delegada de Fronteira (Defron) que é esposa de um comandante do Gefron. Muitos dizem que não vai dar em nada. A Corregedoria da Polícia Militar acompanha os procedimentos para apuração da conduta dos policiais militares envolvidos na ocorrência, mas um sinal é que os 4 militares envolvidos continuam na ativa.

 

Gabriel Cardoso, Leandro Cardoso, Soilo Urupe Chue, Tobias Costa em 14 de Outubro de 2020.

 

Em 14 de Outubro de 2020, os repórteres do projeto chamado Solos (projetosolos.com) [5] encontraram-se com Soilo Urupe Chue (FEPOIMT) e carregaram cestas básicas e foram para a Comunidade Indígena Chiquitano San José de la Frontera, onde foram assassinados os quatro Chiquitanos no dia 11 de Agosto de 2020. Dona Melania Pedraza Chore e seu esposo João Ramiro Vargas fizeram questão de oferecer almoço aos ilustres visitantes e depois seguir com eles. Foram dias de intensas atividades e uma pesquisa jornalística relevante para esse caso tão emblemático na busca de justiça no campo minado.

 

Para o filho menor de Yona, a ausência traz sensações difíceis de expressar. Teve um momento em que chorava sem parar e deram banho de folha de pototó e água benta para conseguir dormir. Mas surpreendeu a todos, pois com somente um ano de idada, quando viu a cruz no local da chacina, correu e abraçou a cruz chamando pelo pai: papá, papá! Todos os presentes foram às lágrimas, até os repórteres, lembrou Dona Melania.

 

Pablo sendo crismado (à esq.) e com a família (à dir.)

 

Na identificação do laudo de necropsia os nomes de Pablo e Yona estão trocados, algo compreensível, pois não estavam identificados os quatro Chiquitanos. Chequei a identificação com as fotos com que os familiares tinham e, no laudo, está primeiro Pablo. [6] As fotos deles que são encontradas no laudo de necropsia são chocantes, seus corpos foram estraçalhados com as armas potentes que os policiais possuem, por isso as famílias concluem que foram massacrados cruelmente, pois uma perícia independente mostrará que receberam vários tiros nos braços procurando defender seus rostos (as dentaduras e bocas de Yona e Pablo não foram mencionados como lesões, mas socialmente e culturalmente é relevante).

 

Da folha 97 até 125 temos a análise do corpo de Pablo, não do Yona. Pablo tem 12 lesões mostradas no laudo de necropsia, mas o maxilar inferior com duas perfurações que podem ser balas de fuzil 556, e a orelha rocha, o que pode ser que estas balas estejam alojadas ali, não foram mencionados. Um tiro entrou de lado (fl 109), outro de lateral (fl 110), não são tiros de frente, como se houvesse confronto, ou nas costas, como se estivesse em fuga. Mas o mais grave é que os tiros nos braços (munição 762), antebraço e mãos, são indicativos claros que eles tentaram cobrir o rosto para se defender e se proteger, indício claro de tortura. Outro indicativo de que foi arrastado pelo chão é que tem as costas e os pés esfolados (fl 119).

 

Ezequiel tem 14 lesões no exame necrológico (fl 126 a 151). As lesões de 1 a 5 são de outra natureza, como se ele estivesse com a cabeça no chão e alguém tivesse forçando-o para pressionar a falar. Os Chiquitanos disseram que estava afundada a parte detrás da cabeça. Ou pode ser que bateram com algo na cabeça, ou pisaram sobre o rosto dele enquanto estava no chão. A entrada do tiro na orelha que vai para o ombro indica que o tiro vem de cima, então ele estava deitado, ou agachado. Tem um tiro nas costas que fez sair parte da carne na frente. Novamente um tiro no braço, sinal de defesa. Arranhou a barriga no chão talvez, estava de costas então rasgou, há indicação de um objeto fincado de frente.

 

Arsino (fl 152 a 171) tem 11 lesões no seu corpo, nenhum aparentemente mais grave no tronco ou na cabeça que levasse imediatamente a óbito. A entrada de tiro descendo, de cima para baixo, indica que estava deitado ou ajoelhado (a bala 762 não muda a direção); tem dois tiros nas costas. A cabeça inchada não é analisada, será que recebeu socos. Arsino tem mais sinais nas costas de que foi arrastado do que os outros.

 

Isqueiro do Arsino encontrado no local da chacina (03/10/2020)

 

Yona (fl 172 a 191), com 8 lesões, entre as quais não é mencionado o olho direito e a face esquerda, pode ter sido um tiro que entrou ali e parou no olho. A lesão no braço (lesão 6 e 7) é significativa porque mostra que ele tentou se defender levantando os braços diante do rosto. Também o tiro da perna indica que ele estava deitado ou ajoelhado (lesões 2; 3; 4), pois o tiro de 766 entrou abaixo do joelho e saiu na coxa. O tiro na coxa (lesão 9) também tem um roxo em torno que não é explicado pelo laudo.

 

As conclusões mais ou menos iguais no laudo de necropsia para os quatro casos, indica superficialidade de análise, ou seja, as lesões são muito diferentes. Por isso precisa de um trabalho mais profundo de perito isento. Parece que tudo foi feito para não mostrar o crime de tortura e morte por execução depois de rendidos. Três dos Chiquitanos chacinados têm tiros nos braços, indícios de que estavam tentando se proteger com as mãos dos tiros que provavelmente os policiais deram de perto, essa posição de defesa dos Chiquitanos com as mãos indica que estavam indefessos, sem armas nas mãos e, os indícios todos são que foram executados com resquícios de crueldade.

 

Provavelmente os quatro já estavam mortos quando o gerente da fazenda chegou e foi afastado pelos quatro que já estavam próximo do carro esperando as viaturas chamadas, ou seja, já tinham feito o serviço sujo. Na volta para a sede da fazenda, o gerente viu que chegaram mais 4 viaturas. Provavelmente trouxeram os 4 revolveres para colocar na mão das vítimas para deixar as digitais e também dar os tiros na porteira como indicado no BO dos policiais interessados no caso. Levaram as cápsulas deflagradas quando é obrigatório fazer a perícia no local e, depois de feita a perícia, que se levam os corpos mortos do local e os comprovantes do que ocorreu levam à verdade dos fatos. Agora compreendo que não levam os corpos para o hospital porque algum deles possa ter socorro, mas retirar os corpos do local é a tática da polícia para que não se possa ver como foram mortos. O serviço perverso é completo e justifica simplesmente a matança.

 

O perito deveria ir aos fatos encontrados e dar os dados de evidência para ver se confere com o que as pessoas dizem. Inclusive foi feito pelo perito Clementes Cruz Nunes, que recebeu a requisição da perícia feita pela delegada no dia da ciência dos fatos, e postergou a realização da perícia sem explicação plausível. Estava no local dos fatos com os que deram a versão dos fatos para ele confirmar: “perito e pelos agentes de segurança policial e do Exército Brasileiro” (p. 4). Os quatro Chiquitanos não estavam no pé do gonçaleiro quando foram alvejados, os locais do sangue escorrendo é em outro lugar e isso não é mencionado. As conclusões do laudo da perícia feita no local são prejudicadas pelo tempo que passou sem que tenha sido feito com objetividade o trabalho. Mas o mais grave é apontar para confronto armado, o que parece mais ridículo que o trabalho mal feito, pois não existe como chegar a essa conclusão de modo algum e fica feio querer acusar os Chiquitanos, pois parece que foi feito para absolver os policiais, ou seja, fica evidente a simulação.

 

Saber quem atirou na árvore (não é gonçaleiro, mas catinguinha ou fedebosta) e na porteira ou postes da cerca é incerto, teria que ver se de pistola ou de revólver. Os 3 sinais de bala que teriam sido disparados pelos Chiquitanos e que teriam desencadeado a reação dos policiais não está provado. Perito não pode supor que sejam tiros dos Chiquitanos na porteira sem ter feito o exame residuográfico nas mãos dos Chiquitanos e dos policiais envolvidos, para ver os resíduos de pólvora nas mãos de todos. Também não aparece no laudo pericial nem uma referência quanto às armas dos policiais, para constatar se realmente os tiros saíram dessas armas ou de outras (do grupo de inteligência).

 

Outro detalhe é que perito afirmou serem os buracos na árvore de “gonçaleiro” ação de larvas. Os Chiquitanos afirmam que trata-se de uma árvore chamada fedebosta ou catinguinha, e que os furos indicados não podem ser feitos por larvas, pois não têm o farelinho que solta para fora quando é a larva que faz esse serviço, além do mais, esse tipo de árvore não é apetitosa como a aroeira, ou seja, tratam-se de tiros. As fotografias e filmagens da árvore cravejada de bala são inequívocas de diferentes ângulos. Nem no lugar de espera dos animais ele foi, pelo menos não menciona ali no laudo da perícia as armadilhas da espera. Não fala dos muitos momentos em que as pessoas mudaram as cenas do crime nesses dois meses, inclusive pelos policiais no dia, levando as cápsulas supostamente deflagradas pelos Chiquitanos. Necessita um exame de balística para demonstrar que não correspondem aos dados. O perito justifica no final os corpos serem arrastados e não fala do sangue dos falecidos em lugar limpo.

 

Foram encontradas pelos familiares de Yona a platina onde estava encaixada a ponte móvel (dia 27/09/2020) e depois a própria ponte móvel de dentes parte da dentadura no local do crime (dia 03/10/2020). Então, como antropólogo, estava olhando esse detalhe dos dentes quebrados de Pablo, em cima e em baixo (ver na fotografia fl 107) e de Yona, que foram encontrados no local do massacre. Eses “dois tiros” no queixo do Pablo não foram marcados como lesão no laudo, insisto que devem ser analisados por um perito para dizer se são dois tiros dados no queixo ou estilhaços, pois dá para ver na fotografia (fl 106). A imagem (fl 124), segundo a nomeação da família, identificado como Pablo (no laudo está Yona), não marca a lesão dos dois pontinhos, no lado direito do queixo que pode ser também ferimento de estilhaço de tiro e não marca o lado esquerdo da boca como lesão. O fato de estar mascando coca prejudica a percepção, mas o laudo deveria esclarecer esses detalhes. Não está confirmado no laudo a lesão na boca do Pablo, mas os Chiquitanos dizem que estava quebrado o queixo e quebrada a dentadura de Pablo.

 

Platina da ponte móvel de Yona no local da chacina (27/09/2020)

 

Porém, as famílias encontraram os dentes quebrados e dizem que é sinal evidente de tortura. A dentadura na parte de cima de Pablo era inteiriça e parece que foi quebrada, como os dentes de baixo no lado esquerdo e não sai assim no mais. Uma observação da face esquerda é que está rocha e inchada (fl 106 e 108). Também foi arrancada a platina e dentadura de Yona, o que não acontece por acaso. Isso significa que nem todos os dentes foram quebrados, mas um tiro ou soco no local fez com que a ponte móvel quebrasse e se soltasse dos dentes permanentes. Isso no caso de Yona, provavelmente também seria tortura.

 

Esposa de Pablo encontra os dentes quebrados do Yona (27/09/2020).

 

Como no Cântico dos Cânticos, a busca pelo amado ou amada faz milagres. A esposa de Pablo encontrou parte da dentadura de Yona quebrada no local da Chacina. Quando eles mandaram o gerente da Fazenda do Japonês embora para casa porque iria haver confronto, eles já tinham feito, em duas vezes, rajadas de tiros. Será que as “mulas” iriam ficar esperando para um confronto com a polícia com todo o seu poderio bélico? Provavelmente eles já tinham apreendido os quatro na primeira vez que atiraram, já tinham torturado, ameaçado matar com tiros e, na segunda vez que se ouviu os tiros, deram os “tiros de misericórdia” para não haver testemunhas do ocorrido. O terceiro momento de tiros escutado pelo gerente, provavelmente foi somente simulação para montar o quadro “para inglês ver”, pois “cantaram a bola” para o gerente dizendo que iria haver confronto.

Aqui somente trago alguns dados que me pareceram relevantes, numa visão panorâmica, não desejo distrair dos fatos que mostrem a verdade. A investigação da delegada é que vai escutar as pessoas para ver se seus testemunhos batem com o que os peritos conseguiram constatar. Os Chiquitanos precisam sentir confiança e segurança que não vão ser enganados ou massacrados novamente. O fazendeiro não liberou o gerente na outra vez e pode ser que haja alguma pressão sobre ele, mas o gerente da fazenda São Luiz era quem conhecia o Yona fazia uns 20 anos, pois ele trabalhava lá na fazenda para diversos serviços e a esposa dele é que autorizou a vinda dos 4 para a caçada. Está sentindo-se culpada e deprimida com o acontecido.

 

 

Fedebosta ou catinguinha, árvore cravejada de balas do Gefron (02/09/2020).

 

Lindo é o testemunho dessa mulher sofrida neste caso dos Chiquitanos, Melania. Seu nome ficará gravado na história destas vidas cruelmente tiradas, por isso falam massacre. Ela é clara quando diz que não se trata de indenização, de dinheiro. Se trata da polícia reconhecer que errou, de todos saberem que eles não estavam traficando. As famílias querem um pedido sincero de perdão dos policiais e, quando falam de Justiça, o reconhecimento do erro cometido. A indenização é importante, mas é secundária nesse processo perverso da fronteira porque a honra do povo Chiquitano também foi maculada, como fazem as polícias há séculos sem que haja reação adequada. Lucia Palma recomenda o documentário Manoel Chiquitano Brasileiro (abaixo) para quem quer compreender a fronteira Chiquitana com a Bolívia com essas palavras:

 

“Essa tríade Aluizio Azevedo-Glória Álbues e Aloir Pacini, constroem um documentário extraordinário tecendo o roto destino dos povos Chiquitanos. Se por um lado este povo trás, em sua história, precioso legado sócio-cultural, por outro, foram e são tao explorados, perseguidos através dos tempos. Resistem, como povos dignos q sao, mas é inaceitável q barbaridades como o assassinato dos 4 líderes Chiquitanos aconteçam, impunemente. Este filme, Manoel Chiquitano Brasileiro tem a direção de Aluizio Azevedo e Gloria Albues, com a imprescindível colaboração do jesuíta e antropólogo Aloir Pacini. Neste momento de imensa dor quero dedicá-lo a todo povo Chiquitano que vive na fronteira entre o Brasil e a Bolívia, expressando toda a minha indignação diante dos crimes que contra eles são praticados. É necessário e urgente que se faça JUSTIÇA!”

 

 

Os cânticos de "uma igreja em saída" como deseja o Papa Francisco são tão diferentes dos cânticos intimistas, individualistas e pobres de letra e música que temos visto! Por isso o Padre Pedro Arrupe no final da vida dizia que no tempo presente a gente deve dizer amém, e para os tempos futuros aleluia. Vamos colocar nossos pés firmes no chão pois temos muito caminho pela frente, e só será salvo quem perseverar! Os cânticos da igreja libertadora, conhecidos como Utopia, Lutar e Crer, Pai Nosso dos Mártires, De repente nossa vista clareou etc. trazem saudades. Em tempos de crise ética no Brasil precisamos ter senso crítico também diante das instituições que foram criadas para proteger os cidadãos como o Gefron. Porém, como homens fardados, possuem carta branca dada pelo governo para fazerem o que quiserem que não serão acionados judicialmente. Todo o esforço de busca da Justiça feito pelas famílias das vítimas como dos Direitos Humanos virá em benefício também dos policiais que buscam ser honestos.

 

Notas: 

[1] Lucho, candidato pelo MAS-IPSP, é economista, natural de La Paz, foi ministro de Economia e Finanças durante 13 anos de Evo Morales, considerado um dos responsáveis pelo chamado “milagre econômico”, quando a Bolívia foi o país que mais cresceu na América Latina durante quatro anos consecutivos. Acesse aqui.

[2] Extrato das instruções para Rolim de Moura até 25 e João Pedro da Câmara (26-34) falando do sistema do Gabinete de Pombal que estava sendo posto em prática desde 1757 (Palácio de Belém, 13 de agosto de 1771): Sistema Fundamental que hoje forma o Governo Político, Militar, e Civil de toda a América Portuguesa, aplicado a cada uma das Capitanias daquele Continente, segundo a situação e circunstâncias de cada uma delas. in MENDONÇA, Marcos Carneiro de. Paraguai. Primeiras Fronteiras Definitivas do Brasil. Carta Instrução. Arquivo do Cosme Velho. Biblioteca Reprográfica Xerox. 1986.

[3] Em 03/09/2020; Natália Araújo in Família de indígenas mortos pelo Gefron ainda vive choque da execução e cobra justiça. Acesse aqui.

[4] Mandar na frente pessoas com cachorros não tem lógica nenhuma, os cachorros são barulhentos e quem leva droga quer passar despercebido.

[5] A articulação entre os indígenas é importante. Soilo foi contactado por Leandro Barbosa, repórter. “A Eliane Xunakalo me passou o seu contato. Soilo: Sou de um projeto chamado Solos (Um site de jornalismo independente que trabalha com audiovisual, somente com pautas de direitos humanos e meio ambiente.” Eles vieram de São Paulo para tratar entrevistar sobre os incêndios no Pantanal e as mortes dos quatro Chiquitanos da comunidade San José de la Frontera, ligados ao Intercept Brasil.

[6] Era proibido tirar qualquer fotografia no necrotério e as que foram tiradas num momento de distração do agente do necrotério, não são detalhadas como no laudo.

 

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