06 Novembro 2020
"Em Portugal, Partido Socialista e Bloco de Esquerda desentendem-se no debate crucial sobre o Orçamento e abrem, em momento delicado, espaço para a direita. Como a dificuldade de compreender a conjuntura levou-os a exagerar suas divergências", escreve Boaventura de Sousa Santos, doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Outras Palavras, 04-11-2020.
Perdeu-se uma oportunidade política que dificilmente se repetirá com estes dirigentes. Acima de tudo, o desentendimento concedeu em dez anos uma segunda oportunidade de ouro à direita (e agora também à extrema-direita) para, sem grande esforço nem mérito, voltar ao poder e produzir retrocesso.
Para quem recentemente publicou um livro intitulado Esquerdas do Mundo, Uni-vos! (Almedina, 2018), as últimas semanas foram particularmente desalentadoras. Mas também foram muito reveladoras.
Tive o privilégio de acompanhar de perto as negociações entre o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Socialista (PS) sobre o Orçamento do Estado (OE). Uma análise superficial do discurso dos porta-vozes fez-me crer que provavelmente desde o início nenhum dos dois partidos quisera o acordo. No entanto, à medida que se aproximava a conclusão do processo e analisava a documentação disponível, comecei a suspeitar que a resistência vinha sobretudo dos órgãos dirigentes do BE. Pela seguinte razão. O órgão que tomou a decisão é a mesa nacional constituída por quase 80 pessoas, as quais votaram unanimemente contra a viabilização do OE, quando as sondagens indicavam que quase 70% dos eleitores do Bloco defendiam a viabilização do OE. É possível imaginar um divórcio maior entre os dirigentes de um partido e o seu eleitorado? Não é ainda mais estranho que isso ocorra no partido que defende a democracia participativa? Não houve naquele conclave uma só voz e voto que chamasse a atenção para a gravidade deste divórcio, sobretudo no período dramático de crise sanitária que o país atravessa? Uma tal unanimidade, sobretudo nas atuais circunstâncias, não pode deixar de suscitar perplexidade.
As condições de hoje são diferentes das de 2011 e a posição do BE não significa necessariamente uma crise política, embora enfraqueça a posição do partido governante. Mas não deixa de ser frustrante que, mais uma vez, o BE se una à direita para derrotar um governo de esquerda. Sobretudo, um governo de esquerda que, ao longo dos últimos quatro anos, foi melhor que o anterior governo do PS, em boa medida devido à colaboração do BE. Saliente-se que em 2011 o comportamento do bloco formado pelo Partido Comunista Português e pelo Partido Ecologis “Os Verdes (PCP-PEV) foi o mesmo do BE, o que não aconteceu desta vez. Tudo leva a crer que o PCP analisou melhor as consequências políticas do voto de 2011. Se a situação de 2011 era diferente da de hoje, isso não quer dizer que seja menor a responsabilidade política do voto do BE.
Em 2011, a crise era interna ao capitalismo (a crise financeira) e ao sistema político europeu. O BE, como partido anticapitalista, podia facilmente lavar as mãos. Ao contrário, a crise de hoje é externa, decorre da pandemia e está a atingir de modo descontrolado todos os países. Sabemos que as políticas neoliberais das últimas décadas visaram incapacitar os Estados de proteger eficazmente a vida dos cidadãos. A saúde pública, um investimento público crucial para a garantir o maior número de anos de vida saudável aos cidadãos, foi transformada em custo ou gasto público e por isso alvo das políticas de austeridade e de privatização. Pode afirmar-se que o Sistema Nacional de Saúde (SNS) estava mais bem preparado há dez ou vinte anos para proteger a saúde dos cidadãos do que agora. Mesmo assim, e considerando tudo isto, não restam dúvidas de que, dada a dimensão da pandemia atual, nenhum governo poderia estar adequadamente preparado para enfrentar o grau de emergência de saúde pública que ela representa. Este é o fato político mais decisivo da conjuntura e só por cegueira política poderia não ser levado em conta. Tragicamente, foi isto o que sucedeu.
Por coincidência, o desentendimento entre os dois maiores partidos de esquerda consumou-se no mesmo dia em que, na vizinha Espanha, o governo de coligação entre o PSOE e Unidas Podemos apresentava uma proposta conjunta e com uma lógica orçamental semelhante à portuguesa, ainda que mais corajosa. Nas entrelinhas pode ler-se como se acomodaram as diferenças para travar o passo à direita e não irritar demasiado os países do Norte da Europa. O que faltou em Portugal para que o mesmo ocorresse?
Posto isto, diga-se em abono da verdade que as exigências do BE são justas e visam proteger mais eficazmente a saúde dos portugueses e garantir-lhes uma mais robusta proteção do emprego e do rendimento dos que mais precisam dela. Tal como o PS se orgulha de ter contado entre os seus dirigentes um visionário consequente do SNS, o saudoso António Arnaut, o BE orgulha-se do mesmo, na pessoa do saudoso João Semedo, não menos visionário e consequente. Não pode pôr-se em causa que ambos os partidos defendem o SNS, mas o BE entende, e bem, que para defender a prazo o SNS são necessárias mudanças estruturais que têm a ver não só com remunerações e número de profissionais, mas também com carreiras e dedicação exclusiva. Por incrível que pareça aos portugueses depois de tanta azeda discussão, o PS pensa do mesmo modo, como aliás está no seu programa, só que entendeu, e bem, que, neste momento, as mudanças estruturais iriam causar um ruído político incompatível com a necessidade de concentrar a governação no enfrentamento da pandemia. Ambos os partidos sabem que Ordem dos Médicos está hoje na mão de forças políticas conservadoras vinculadas aos interesses da saúde privada e tem sido nesta crise a oposição mais insidiosa ao Governo. Para estes médicos (felizmente não para todos), a prioridade é a economia da saúde, não a saúde pública. Sendo tudo isto evidente, não seria fácil um entendimento se houvesse, de parte a parte, vontade de negociar?
O BE tem igualmente razão nas questões laborais, sobretudo na reversão da precarização do trabalho que ocorreu com o governo de PSD-CDS. Também aqui o PS não está longe do BE, já que ele próprio se manifestou nesse sentido no passado. Mas também aqui a resistência do PS teve uma justificação que deve ser entendida, mesmo quando não se considere convincente. As alterações podiam levar os países do Norte da Europa, ditos frugais, a dificultar a aprovação do Plano Nacional de Recuperação e Resiliência (PRR) para 2021/2026, como aliás esses países tiveram o cuidado de avisar. Aqui o PS tinha obrigação de ler melhor a conjuntura e ver que há uma UE pós-“Brexit” relativamente distinta da anterior, ainda que nem sempre por boas razões. Havia condições para arriscar mais, libertar-se da tutela e não ser refém das eleições de março próximo na Holanda. Mas sendo verdade que quem ganhou as eleições foi o PS e não BE, teria sido possível encontrar uma acomodação, por exemplo calendarizando as mudanças para uma data determinada.
A falta de visão política pode ter posto em causa o que mais se pretendia defender, a estabilidade que tornasse possível uma luta eficaz e consensual contra a pandemia e travasse tanto o avanço da direita como as facções mais dogmáticas dos dois partidos, que sempre estiveram contra entendimentos interpartidários.
Finalmente, o BE tem igualmente razão na questão do Novo Banco. O “negócio” com o fundo abutre que se apoderou de um banco importante não só é um roubo que para ser “legal” tem que ser total (extorquir até ao último centavo), como é um ataque à auto-estima de um país europeu posto na condição de república das bananas. Aqui, sim, havia uma incompatibilidade, e a única maneira de a superar seria pôr o Novo Banco fora do OE. Não era impossível mas, de novo, pressuponha vontade recíproca de pactuar, além de um pouco de sabedoria popular: vão-se os anéis, fiquem os dedos, sendo os dedos, neste caso, a estabilidade política em tempos de emergência sanitária extrema.
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Portugal: crônica de uma oportunidade perdida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU