12 Setembro 2020
"Há cinco anos, governo da “Geringonça” mostrou que a Europa não estava fadada à direita. Agora, em novo ponto de virada, será preciso ir muito além — e firmar, em meio à pandemia, a opção pelo Comum. Será difícil, porque é possível…", escreve Boaventura de Sousa Santos, doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Outras Palavras, 10-09-2020.
Iniciaram-se, em Portugal, as negociações para o orçamento de 2021, que tem um duplo caráter especial. É o primeiro orçamento em contexto pandêmico e é um orçamento de tipo plurianual em face da gestão dos fundos europeus emergenciais e do plano de recuperação econômica e social. As decisões que agora se tomarem e o modo como forem executadas condicionarão a vida dos portugueses por muitos anos. Com boas razões, tem-se comparado o período que agora começa ao período inicial da entrada de Portugal na União Europeia (UE), ainda que as condições agora sejam bem diferentes. Têm, no entanto, duas características comuns e daí ser ajustada a comparação. Por um lado, vão estar envolvidos avultados e excepcionais financiamentos e, por outro, vão ser necessárias mudanças estruturais. À luz destas mudanças, rever os trinta e poucos anos que nos separam de 1986 faz todo sentido no atual contexto.
As primeiras mudanças estruturais ocorreram entre 1986 e 1996 e foram dominadas por forças políticas de direita. As mudanças, que são hoje parte da nossa vida, foram significativas (do desenvolvimento econômico à consolidação da democracia) mas deixaram um sabor amargo: muita corrupção, muito despreparo e desperdício na gestão da despesa pública, e sobretudo uma obediência cega à norma europeia, com um desprezo total pelas especificidades da economia e da sociedade portuguesa (na agricultura, na pesca, nas obrigações com o mundo da lusofonia). Ao fim de quinze anos Portugal continuava na cauda da Europa, só à frente da Grécia e só em alguns indicadores.
Na década seguinte, devido ao euro, aumentou a competição na Europa e no mundo. Nesta fase, descontados dois curtos períodos de governos de direita (Durão Barroso e Santana Lopes), dominaram governos do Partido Socialista (PS) com uma governação centrista (António Guterres e José Sócrates). Os resultados não foram famosos. Em 2011 estalou a crise financeira e, com ela, a intervenção da Troika. Entramos então no segundo período de forte ajustamento estrutural, mas neste caso num contexto de austeridade e dominado por um governo decididamente de direita (Passos Coelho). Um governo que, tal como no primeiro período (1986), foi dominado pela obediência cega à UE e mesmo pelo impulso de o governo querer ser mais papista que o Papa.
A partir de 2016, iniciou-se um novo período, muito condicionado pelo anterior, mas caracterizado por uma dupla novidade. Abandonava a tradicional obediência cega à ortodoxia europeia e, com a moderação que faltara à Grécia, explorava a flexibilidade das diretivas europeias para recuperar dos estragos do período anterior. Por outro lado, voltou-se a um governo socialista, embora, desta vez, fora da sua tradicional zona de conforto centrista. Ou seja, em coligação com os partidos à sua esquerda, o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista (PCP). Foi uma aposta pragmática que teve êxito, reabilitou o nome do país no contexto internacional e despertou a curiosidade sobretudo numa Europa crescentemente dominada por forças de direita e de ultradireita. Foi, no entanto, um período de ambições limitadas, dadas as condições criadas pelo período anterior.
O êxito desta política foi sufragado pelos portugueses nas eleições de 2019. Tudo levava a crer que ela se mantivesse no período seguinte, tanto mais que os êxitos em política vão sendo cada vez mais raros, dada a atual arquitetura predatória do capital financeiro global. Foi isto o que pensou o BE, honra lhe seja. O PCP fez os seus cálculos e preferiu fechar-se neles. O PS, inchado pelos resultados eleitorais, quis ter mãos livres para uma eventual maioria absoluta e preferiu não se comprometer por escrito, apesar de prometer a continuidade do curso menos centrista. Além disso, não quis dar destaque a uma coligação com um partido dotado de uma capacidade técnica e política, o BE, que, por enquanto, não tem a expressão eleitoral a que tal capacidade devia dar direito. Nestas condições, era de prever o regresso ao centrismo, quer por via da maioria absoluta, quer por via de coligação com o Partido Social Democrata (PSD) [de centro-direita].
Veio a pandemia e tudo mudou. Até a UE mudou, talvez tão assustada pela pandemia quanto pelo Brexit. A nova situação tem duas características contraditórias. Por um lado, avizinha-se uma crise econômica e social grave; por outro, há avultados recursos financeiros inesperados para lhe fazer frente se não se cometerem os erros do passado. Porque vamos entrar num período longo, que não será pós-pandêmico mas antes de pandemia intermitente, vão ser necessárias reformas estruturais de tipo novo.
Apenas três exemplos. A pandemia mostrou que em tempos de crise grave os cidadãos procuram a proteção do Estado, não a dos mercados, os quais, aliás, desaparecem como que por encanto. Mas que Estado? Certamente não o Estado neoliberal que nos últimos trinta anos se foi incapacitando intencionalmente para proteger os cidadãos, reconfigurando-se para entregar essa proteção ao setor privado, de que são expressão o desinvestimento no Serviço Nacional de Saúde (SNS), a privatização da saúde (as mais que problemáticas parcerias público-privadas), da educação, da segurança social (de que os lares são um espetáculo macabro ainda longe de terminar). É, pois, necessário pensar numa reforma política e administrativa do Estado e dos serviços públicos que os capacite para a centralidade que o novo período vai exigir. O segundo exemplo são as mudanças na matriz energética, nos transportes públicos, na relação campo-cidade, na política alimentar, mudanças tornadas urgentes em face da iminente catástrofe ecológica e da relação, hoje reconhecida, entre esta e a recorrência das pandemias. O terceiro exemplo é a necessária mudança na legislação do trabalho. A pandemia mostrou que a precariedade da relação laboral cria formas de vulnerabilidade agravadas. De repente, um abismo de incerteza total desaba sobre as famílias. Reforçar a contratação coletiva e combater a precariedade são as condições para requalificar não só a nossa economia como a nossa cidadania e a nossa democracia.
O novo período de mudança estrutural é, pois, mais ambicioso. Estarão as forças políticas à altura dele? Os dois períodos anteriores de mais forte mudança estrutural, ainda que em contextos muito diferentes (1986-1996 e 2011-2015) foram dominados por forças de direita. Entre eles houve períodos de centrismo socialista sem grandes ambições. Agora, a ambição é grande e a necessidade de inovar ainda maior. Quem estará em melhores condições para lhes corresponder? Em função do razoável êxito do período 2016-2020, estou certo que muitos portugueses esperarão que um governo de esquerda é quem estará em melhores condições para não desiludir as suas expectativas. Penso, aliás, que foi isso o que o Primeiro Ministro teve em mente quando fez a proposta no parlamento de um orçamento alinhado à esquerda. Ele sabe que os conservadores fora e dentro do PS são bons para conservar e não para sair das zonas de conforto que as rotinas lhes propiciam. Portugal terá de sair da zona de conforto com conta. peso e medida. Isso não será possível em nenhuma das variantes do centrismo: coligação PS-PSD ou PS com maioria absoluta. Resta-nos um governo de esquerda com provas dadas. Mas como o contexto é agora mais exigente, para que isto seja possível também a esquerda terá de sair da sua zona de conforto.
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A encruzilhada de Portugal e de sua esquerda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU