30 Outubro 2020
Como a rejeição generalizada da sociedade ao decreto privatização obrigou governo a retirá-lo em 24horas. Resposta sugere: Saúde Pública entrou no imaginário político e afetivo da população; há ambiente para futuras mobilizações.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por Outras Palavras, 29-10-2020.
O governo levou sua pior surra nas redes sociais ontem. Segundo a consultoria Arquimedes, 98,5% das mais de 150 mil menções feitas no Twitter sobre o tema foram desfavoráveis ao decreto assinado por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes na terça para fomentar “modelos de negócios” nas unidades básicas de saúde. Antes disso, o episódio com pior repercussão havia sido a falha na correção da prova do Enem, em janeiro deste ano, quando 90% das menções foram negativas à administração federal – o que dá a dimensão da atual popularidade do Sistema Único.
Manifestações no Instagram e no Facebook aconteceram ao longo de todo o dia. Anitta divulgou para os seus quase 50 milhões de seguidores uma notícia sobre os planos de “desmonte do SUS”. Outros famosos que influenciam as redes se posicionaram, como Bruno Gagliasso, Emicida, Marcelo Adnet e Taís Araújo. A hashtag #DefendaOSUS dominou.
Iniciativas organizadas também ganharam tração muito rapidamente. Um abaixo-assinado contra o decreto somava até o início da noite de ontem mais de 50 mil assinaturas. No Congresso, ao menos oito projetos de decreto legislativo – medida capaz de sustar a decisão presidencial – foram apresentados. Os secretários estaduais de saúde reunidos no Conass se posicionaram, por unanimidade, pela revogação urgente do decreto.
E a revogação aconteceu. Na noite de ontem, foi publicada em edição extra do Diário Oficial.
Antes de falar sobre o governo que, ao longo do dia de ontem, tentou rebater críticas para evitar o recuo – e do recuo em si –, é importante analisar essa mobilização em defesa do SUS.
Uma interpretação corrente entre sanitaristas é que o Sistema Único não ganhou corações e mentes como aconteceu com outros sistemas públicos universais, sendo o NHS britânico o bom exemplo nesse sentido. Seria assombrado pelo “fantasma da classe ausente”, tendo muitos defensores nas universidades, por exemplo, e poucos entre as massas de trabalhadores que têm contato com todas as dimensões do SUS, incluindo a assistencial. Confrontados com a escolha entre SUS e planos de saúde, optariam sempre pela segunda alternativa. Os sindicatos representam muito bem o dilema já que, depois de 1988, continuaram lutando por cestas de benefícios que têm como cereja do bolo os convênios médicos.
Há quem concorde com a análise, e quem a rebata no âmbito acadêmico. Mas, a despeito da posição que se adote nesse debate, um cavalo selado parece estar passando. A pandemia teve o condão de despertar o orgulho pelo SUS em uma parcela significativa da população. É visível que, hoje, há muito mais ‘formadores de opinião’ dispostos a se mobilizar em favor do direito à saúde do que antes. As entidades da reforma sanitária que, por muito tempo, gritaram sozinhas contra os ataques ao Sistema hoje têm aliados nos recônditos mais inusitados. Não seria má ideia aproveitar essa onda de popularidade e fazer uma campanha nacional pelo SUS público, universal e de qualidade.
O governo pode ter revogado o decreto 10.530, mas ao que tudo indica não desistiu da ideia que motivou sua edição. De acordo com o Estadão, a determinação “agora é que o texto seja revisto”. Ao anunciar o recuo, Jair Bolsonaro afirmou que se houver “entendimento futuro dos benefícios” o texto “poderá ser reeditado”.
O presidente também fez uma defesa da medida incluindo elementos que aparentemente não estavam no escopo do decreto – o que pode sinalizar que há um plano mais amplo de mudanças no SUS em gestação.
Disse, por exemplo, que o “espírito do decreto” ia no sentido de “permitir” que usuários do SUS buscassem “a rede privada com despesas pagas pela União”. Se o decreto visava o fomento de parcerias público-privadas apenas para unidades básicas de saúde, isso não faz muito sentido. Mas se a gente lembrar de uma proposta do seu programa de governo – o “credenciamento universal” dos médicos, o que permitiria às pessoas “maior poder de escolha” – e uma ideia de seu ministro da Economia – os vouchers dados pelo Estado para consultas privadas – as coisas se encaixam um pouco melhor.
No mais, o presidente e alguns de seus correligionários trataram a ampla reação ao decreto como fruto de “fake news”. Segundo Bolsonaro, “em momento algum” o texto “sinalizava para a privatização do SUS”.
O Ministério da Economia divulgou uma nota que buscava atenuar a investida privatizante, garantindo que os serviços seguiriam “sendo 100% gratuitos para a população”. E há mesmo uma confusão entre privatização e desembolso direto do cidadão para usar a assistência no SUS. A primeira pode acontecer sem a segunda. Já acontece, aliás.
E foi justamente nesta tecla que os membros da equipe econômica bateram, defendendo o decreto à luz do atual grau de privatização do Sistema – que, convenhamos, é avançado (mas não terminal como gostaria o governo).
O secretário de Advocacia da Concorrência e Competitividade no Ministério da Economia, Geanluca Lorenzon, afirmou que “a maior parte dos procedimentos do SUS já são executados pelo setor privado (Santas Casas)” e que as PPPs em saúde “já existem”. No caso do atendimento hospitalar, o SUS de fato herdou do Inamps a cultura de compra de procedimentos. Notamos, porém, que as Santas Casas recebem bilhões em empréstimos do governo federal justamente por se venderem não como ‘setor privado’, mas como filantrópicas.
À coluna Painel, gente da equipe econômica também lembrou que a gestão privada de unidades básicas existe na cidade de São Paulo, “onde o Sírio-Libanês e o Einstein administram parte da rede com recursos públicos”. Isso é verdade – mas há outra inconsistência que revela mais um nó atado no SUS. O Sírio tem uma Organização Social (OS) e o Einstein é qualificado como uma. E é via OSs que a gestão de algumas unidades paulistanas foi terceirizada, como acontece em diversas outras cidades. Além disso, ambos os lucrativos hospitais foram considerados pelo Ministério da Saúde como ‘filantrópicos de excelência’ e não pagam impostos.
Já Martha Seillier, secretária especial do PPI, escolheu fazer propaganda das parcerias público-privadas citando Belo Horizonte e o Hospital do Subúrbio, na Bahia. “Não estamos inventando nada novo. Tudo já existe, mas em raros exemplos. Queremos multiplicar no Brasil todo“, declarou ao Estadão. Ela também deu detalhes de para onde caminhariam os estudos sobre criação de “modelos de negócios” nas unidades básicas. A PPP poderia ser “bata cinza”, o que inclui construção da infraestrutura, manutenção, operação, limpeza e segurança. Ou “bata branca”, quando há contratação de profissionais de saúde.
Diante da repercussão negativa, o Ministério da Economia divulgou que a ideia de incluir as unidades básicas no PPI partiu do Ministério da Saúde. Quem conhece as posições de Erno Harzheim, ex-secretário da Atenção Primária da pasta, não se surpreendeu.
A Anvisa finalmente autorizou a importação da matéria-prima para o Butantan produzir a CoronaVac. Não faltou pressão: o diretor do instituto, Dimas Covas, havia reclamado publicamente do atraso na liberação, já que o pedido foi feito formalmente ainda em setembro. Uma liberação que ocorre em dois meses deixa de ser excepcional“, chegou a afirmar. Covas disse ontem que a demora vai impactar o cronograma de produção da vacina, que era para ter começado na segunda quinzena de outubro. Segundo a Folha, esse atraso deve ser de 20 dias, jogando para janeiro a finalização do primeiro lote, no melhor dos casos – e, de quebra, enterrando em definitivo a promessa de João Doria (PSDB) de vacinar as pessoas ainda este ano.
É claro que fica a pergunta sobre o quanto a demora da Anvisa pode ter a ver com a bronca do governo federal em relação a essa vacina. Também à Folha, o diretor da agência, almirante Antonio Barra Torres, negou o problema. Disse que o pedido tinha informações que precisavam ser esclarecidas, como dados sobre o volume a ser importado. “Dizer que deu entrada no dia 23 de setembro é a informação mais importante? Não. O processo não entra perfeito e passa pelas áreas internas da Anvisa para ser analisado. Não estamos falando de uma lista de compras que vamos fazer em alguma loja, mas de produtos que serão injetados em seres humanos, e a análise tem que ser bem feita”.
Os governadores devem ter uma reunião com Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Davi Alcolumbre (DEM-AP) na próxima semana, para tratar das futuras vacinas. São duas as questões principais: um consórcio para comprar e distribuir a CoronaVac e a definição da obrigatoriedade (o presidente da Câmara já disse que o Legislativo e o Executivo precisam chegar a um entendimento). Segundo Ronaldo Caiado (DEM), governador de Goiás, há expectativa de que Pazuello também participe. A ver.
Um grupo de 133 médicos e professores assinaram uma carta aberta contra a vacinação compulsória e a enviaram ao Congresso e ao STF. Não bastasse o número diminuto de signatários, há um problema grave: alguns são falsos. Segundo a apuração da Folha, ao menos nove médicos e especialistas levaram um susto ao ver seus nomes no tal documento. “Não assinei e nem concordo com ela [a petição]! Denuncio o uso indevido do meu nome. Nunca concordei com o uso político da ciência! Não admito que usem o meu nome com este fim!”, escreveu nas redes sociais Jorge Kalil, professor de Medicina da USP e um dos afetados. A infectologista Rosana Richtmann, cujo nome também apareceu na lista sem sua autorização, estuda a possibilidade de fazer uma denúncia formal ao Cremesp.
As farmacêuticas Regeneron e Eli Lilly anunciaram ontem resultados aparentemente positivos de suas drogas contra a covid-19; em ambos os casos, são tratamentos com anticorpos monoclonais. A Regeneron não publicou um artigo em revista científica, e sim um comunicado à imprensa. Afirmou que, entre os pacientes não-hospitalizados, 57% tiveram menos probabilidade de precisar de cuidados médicos do que os que tomaram placebo, e o efeito foi mais forte em voluntários com alta carga viral, resposta imunológica ineficaz e fatores de risco pré-existentes. As ações da empresa subiram 3,1%, e, no acumulado de 2020, o aumento foi de nada menos que 51%.
Já a Lilly havia anunciado nesta segunda o encerramento de seus ensaios em pacientes hospitalizados, porque os objetivos esperados não foram alcançados. O estudo publicado no NEJMontem, porém, é diferente, e envolveu pacientes com casos leves a moderados. Os resultados parecem menos animadores do que os da Regeneron: das três doses avaliadas, uma correspondeu a um declínio da carga viral, mas a redução dos sintomas foi apenas apenas modesta.
Os tratamentos têm mais em comum do que a sua tecnologia: grandes acordos com os Estados Unidos, que podem comprar toda (ou quase toda) a produção. Ainda em julho, país assinou um acordo com a Regeneron para comprar 300 mil doses por US$ 450 milhões – só que, no início deste mês, a empresa avisou que só tinha 50 mil prontas para distribuição. E ontem o governo Trump firmou um acordo com a Lilly para garantir 300 mil frascos por US$ 375 milhões, com a possibilidade de estender a compra para mais 650 mil doses. Segundo a farmacêutica, sua capacidade de produção é de um milhão de doses até o fim do ano.
Vale notar que, embora gerem muita expectativa, esses tratamentos estão sendo usados experimentalmente e não receberam aprovação para uso em nenhum país; as duas empresas já entraram com pedidos na FDA (a Anvisa americana) e aguardam resposta.
Há não muito tempo, os Estados Unidos usaram a estratégia de comprar quase todas as doses possíveis do remdesivir quando ele ainda se mostrava muito promissor. Mais tarde, o maior estudo randomizado mostrou que, afinal, o remédio não fazia tanta diferença assim para o tratamento da covid-19. Agora a fabricante Gilead reduziu sua previsão de receita para 2020, por conta da demanda abaixo do esperado e da dificuldade de vender a droga. Isso não quer dizer que os negócios estejam indo tão mal: o medicamento rendeu US$ 873 milhões no terceiro trimestre (contra a expectativa de US$ 970 milhões).
Às 14h acontece a reunião da Comissão Intergestores Tripartite, que reúne Ministério da Saúde e secretários estaduais e municipais. Depois de dias tão movimentados, a discussão promete ser boa. Dá para acompanhar ao vivo por aqui.
De olho nas eleições municipais, a Abrasco lançou ontem um documento com análises sobre a situação do SUS, indicando possíveis soluções para os problemas.
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SUS: governo bateu em retirada. E agora? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU