28 Outubro 2020
A última Encíclica lançada pelo Papa Francisco, “Fratelli tutti”, tem sido motivo de muitos debates enriquecedores, ganhando ampla cobertura da mídia e sendo, por alguns, classificada como a “Encíclica laica”. Para compreendê-la a partir de uma perspectiva ecumênica, conversamos com o pastor metodista Claudio Ribeiro, que também é doutor em Teologia pela PUC-Rio e professor de Teologia e Ciências da Religião.
A entrevista é publicada por Conselho Nacional de Igrejas Cristãs - Conic, 16-10-2020.
Recentemente, o papa Francisco escreveu a Encíclica “Fratelli tutti”. Nela, propõe que as religiões estejam a serviço da fraternidade no mundo. De que modo isso é inovador nos dias de hoje, onde temos cada vez mais grupos defendendo justamente o oposto?
Como pastor evangélico, fiquei, mais uma vez, profundamente impressionado e grato pelos conteúdos apresentados pelo Papa Francisco na Encíclica Fratelli Tutti. Já tinha tido esse mesmo sentimento por ocasião da promulgação da Encíclica Laudato Si’. Naquela oportunidade, tive o prazer de organizar um livro com reflexões e depoimentos de lideranças evangélicas do Brasil, de diferentes ramos, incluindo pentecostais; o espírito de acolhida e gratidão deu o “tom” das avaliações contidas na obra. Trata-se de Evangélicos e o Papa: olhares de lideranças evangélicas sobre a Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco (Ed. Reflexão, 2016). A preocupação com a sustentabilidade da vida constitui uma base ecumênica singular.
Agora, de forma similar, Fratelli Tutti, ao apresentar uma ampla visão sobre o diálogo e a justiça no mundo, incluindo as dimensões da economia, da política, das comunicações e das religiões, reforça a dinâmica ecumênica já apresentada no século 20 no contexto das comunidades evangélicas e ortodoxas que integram o Conselho Mundial de Igrejas e de diversos grupos católicos precursores de uma variedade de movimentos pela paz, justiça e libertação social. Neste sentido, parece-me que a palavra-chave é que Fratelli Tutti é necessária, oportuna e importantíssima, especialmente em função da polarização vivida no mundo fruto da violência de grupos que não aceitam os processos democráticos, nem o empoderamento dos pobres, das mulheres e demais grupos que anseiam por condições justas e que fecham os olhos para as injustiças sociais. O fato de o Papa valorizar outras fés na elaboração e na apresentação da Encíclica é um elemento que renova nossas esperanças e utopias.
Em um dos trechos do documento é dito o seguinte: “Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria” – uma clara alusão às mídias sociais. De algum modo, tais mídias sociais contribuíram para dificultar “o confronto entre as diferenças”?
O Papa Francisco tem nos dado exemplos de comunicabilidade e amabilidade. Isto é um excelente testemunho! Considero que a violência que marca as comunicações interpessoais, diretas ou pela Internet, hoje, são causadas pelo sistema econômico excludente e gerador de injustiças. As mídias, assim como outros espaços como as diversas instituições e até mesmo comunidades religiosas, reproduzem essa violência criada pelo sistema econômico. Por isso, uma educação para o respeito é sempre necessária e urgente. A internet pode ser um bom espaço para isso. Milhões de pessoas seguem o Papa Francisco pelo Twitter. Isso é ótimo! Mas, penso que é possível avançar rumo a uma comunicação mais dialógica. Por exemplo, o Papa Francisco não segue ninguém no Twitter, diferentemente de outras personalidades destacadas no mundo, como o ex-presidente dos EUA Barack Obama, que, pelo mesmo canal, têm milhões de seguidores e seguem outros tantos.
Fazendo gancho com a pergunta anterior, como a Igreja (comunidades cristãs) poderia ser um antídoto a esse distanciamento que não propicia o encontro dos diferentes? E por qual motivo não tem tido êxito?
As comunidades cristãs, historicamente, sempre foram um espaço privilegiado de comunicação e diálogo. Isto se dá tanto no nível das bases quanto em espaços institucionais. É fato que ambiguidades e contradições não faltaram e estão aí cada vez mais presentes. Fratelli Tutti vem reforçar as iniciativas do próprio Papa Francisco desde o início do seu pontificado na direção do encontro, da alteridade, da crítica social e do amor. Eu não diria que as comunidades cristãs não têm tido êxito nesta tarefa. Talvez não estejam tendo a visibilidade devida. Ou estejamos em uma transição de etapas nesta luta dificílima entre “Davi e Golias”.
Pode ser que precisemos de um olhar mais apurado: ver o que as mulheres negras estão fazendo nas áreas mais pobres das cidades, tanto em comunidades católicas quanto evangélicas, mas também no conjunto das religiões e da sociedade, ver os posicionamentos dos grupos LGBT+, olhar com atenção as ações das juventudes, sobretudo nas áreas periféricas. As atitudes do Papa Francisco têm sido excelentes, mas é preciso olhar o mundo de maneira mais ampla. A solidariedade vivida por esses grupos, em comunidades religiosas, cristãs e não cristãs, e por agrupamentos não religiosos, se fronteiriza com a Fratelli Tutti.
Nela, o Papa chamou a atenção de que “encontramo-nos mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses individuais e debilita a dimensão comunitária da existência. Em contrapartida, aumentam os mercados, onde as pessoas desempenham funções de consumidores ou de espectadores. O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes econômicos transnacionais que aplicam o lema ‘divide e reinarás’”.
Na encíclica, Francisco também usa o termo “dogma de fé neoliberal”. Podemos dizer que o neoliberalismo é, de algum modo, uma "religião"?
Vários estudiosos têm feito esta comparação, especialmente a partir dos pensamentos dos filósofos Walter Benjamim e Giorgio Agamben e do teólogo Paul Tillich. É fato que o neoliberalismo econômico hoje tem mais força na organização e mobilização da vida das pessoas dos que todas as religiões juntas. Daí a importância de se criticar o sistema capitalista, como fez o Papa Francisco, ao dizer que “o mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre, repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que surja. O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à mágica teoria do ‘derrame’ ou do ‘gotejamento’ – sem a nomear – como única via para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta redistribuição não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas de violência que ameaçam o tecido social”.
Outro ponto do documento faz referência às estratégias políticas de “semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante” entre os povos como estratégia de dominação e conquista, tendo como consequência nações cada vez mais polarizadas. Mas essas estratégias não são, necessariamente, novidades. Então, por qual motivo, na sua opinião, o papa fez questão de frisar isso?
O Papa Francisco é um líder espiritual de profunda sensibilidade humana e atento aos sinais dos tempos. Ele se sente bem ao lado de outras lideranças que buscam a justiça e a paz neste mundo e não sabe disfarçar o constrangimento quando precisa receber outras que investem na cultura do ódio e nas formas de dominação. Recentemente, tornou-se muito popular na Internet a divulgação de fotos do Papa Francisco onde este quadro comparativo era bastante visível. Não é à toa que na Fratelli Tutti ele afirme que “a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais”.
Alguns movimentos criticaram o título da Encíclica, afirmando que ela tinha um viés machista por não ter usado uma linguagem inclusiva (Fratelli tutti = todos irmãos). Na sua visão, tal crítica está adequada?
Tempos atrás, o líder de uma destacada banda de rock disse com certo humor e saudável ironia que: “se a pessoa mais progressista que temos hoje no mundo é o Papa é porque este mundo está mal mesmo”. Se isso for um fato, talvez tenhamos que admitir que, considerando o fechamento pelo qual as igrejas passaram nas últimas três décadas, as grandes demandas da sociedade no plano das desigualdades econômicas e os limites que as esferas eclesiásticas têm, a Encíclica não ter um título mais inclusivo pode não ser tão grave assim. Eu ficaria mais feliz se fosse uma expressão que articulasse a sororidade e a fraternidade. Acho que homens e mulheres que acreditam no diálogo e no valor do pluralismo devem(os) trabalhar nesta direção. Penso que as eventuais críticas ao título da Encíclica são adequadas se considerarem os aspectos que descrevi acima. O conteúdo e o espírito da Encíclica são inclusivos e, sobretudo neste momento de crescimento de visões que nos lembram práticas fascistas e violentas, eles devem ser valorizados.
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“Como pastor, fiquei impressionado com a Encíclica Fratelli Tutti” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU