Fraternidade difícil: a tensão entre evidência e autoridade em "Fratelli tutti". Artigo de Andrea Grillo

Foto: Capa/Divulgação

14 Outubro 2020

"É muito oportuno que a FT proponha uma análise do "mundo fraterno" não como uma "consequência da autoridade da Igreja" e nem mesmo como um "produto do mercado", mas como diferentes formas, mediadas e temperadas, de experiência de paternidade e de filiação. Não é por acaso que o terreno sobre o qual a FT floresceu foi preparado por relações "inter-religiosas" - sobretudo com o mundo islâmico e o mundo judaico - que representam, de fato, experiências de autoridade de amor no coração da sociedade plural. Uma aliança entre tradições religiosas torna-se, assim, o caminho para uma elaboração também política e econômica do "governo do mundo" que não seja confiado nem aos bandos de lobos nem aos paternalismos dos soberanos. E isso vem do mais soberano dos soberanos (por opinião comum), mas que é chamado antes de tudo a ser um servo dos servos", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano, no blog Come se non, 11-10-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.

 

Eis o artigo.


“Recuso-me a admitir o fim do homem”: assim se manifestou W. Faulkner em 1949, no ato de entrega do Prêmio Nobel. A frase foi retomada em 1982 por Gabriel Garcia Marquez, novamente em Estocolmo, quando foi sua vez de receber o prêmio. “Fratelli Tutti (= FT), a grande encíclica sobre a fraternidade, também nasce da urgência de uma grande resposta ao “drama do nosso tempo”. Que é um drama ambiental, claro, mas um drama do "antropoceno", da dignidade do ser humano, ao mesmo tempo exaltado e cancelado, tornado super senhor e, ao mesmo tempo, super servo. Um Papa que vem da América Latina, justamente como Gabo, trouxe a Roma uma língua e um pensamento marcados pelos "cem anos de solidão" dos povos do sul do mundo, que têm uma demanda diferente de fraternidade, justamente porque veem melhor as carências da liberdade e da igualdade, quando deixadas a si mesmas.


Assim, a fraternidade aparece, inexoravelmente, como "a" questão. E não se entenderia o texto de "Fratelli Tutti" - como muitos intérpretes mostram não o entender - se fosse abstraído não só do "contexto" de que surge, mas também da "nova demanda" que o Papa Francisco ao mesmo tempo assume e formula. Como primeiro papa "filho do Concílio", Francisco está "além" e "fora" das velhas e asfixiadas formulações da questão "fraterna". E a censura, que alguns lhe dirigem grosseiramente, de ter "abandonado o terreno seguro da doutrina social", de ter "falado renunciando à identidade", esquece que fraternidade, com liberdade e igualdade, são palavras que há 200 anos mudaram de significado, mesmo na doutrina eclesial. Vamos tentar analisar rapidamente os pontos salientes desse "novo significado".

 

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Fraternidade de baixo e de cima

 

A teoria que está no cerne da FT busca uma mediação refinada entre dois polos opostos que hoje são os mais populares: por um lado, a ideia de que a fraternidade consiste na "evidência do humano universal" e, por outro lado, que a fraternidade só é garantida pela "autoridade de determinada tradição". E não raramente os crentes, os católicos, os pastores e até mesmo os teólogos são tentados a simplesmente se identificar com o segundo lado da alternativa: e postulam a fraternidade como o resultado de uma autoridade.

 

A FT não segue esse caminho. Em vez disso, busca uma mediação sapiencial entre esses opostos. Porque sabe muito bem que tanto a via da evidência quanto a via da autoridade conhecem facilmente o fracasso. A fraternidade se manifesta como desastrosa tanto na história bíblica quanto no mito civil: Caim e Abel, por um lado, e Rômulo e Remo, pelo outro, são um tremendo aviso: as formas de evidência "genética", "tradicional", "social" da fraternidade não são realmente consistentes. Aliás, precisamente por se apresentarem como "parciais", os irmãos tornam-se princípio de guerra e não de paz. Sem vocação - seja religiosa ou civil, inspirada ou pensada - a fraternidade pode tornar-se um desvalor: não só os assassinatos entre irmãos, mas também os excessos de favores aos irmãos podem violar a comunhão.

 

No entanto, falar de uma “vocação à fraternidade” significa superar a suposta evidência e confiá-la a autoridades como a palavra, a lei, a família, a geração e a educação. E o ato de mediação entre determinação particular da fraternidade e experiência universal da fraternidade está no centro do trabalho cultural e também do trabalho teológico. Há um desafio aqui para que o pensamento seja assumido como um todo. Se fizermos da teologia simplesmente a inimiga das evidências modernas, nós a desfiguramos irremediavelmente. Na verdade, justamente a teologia católica deveria ser a mais interessada em compreender a universalidade do tema.

 

A complexa relação com a liberdade e a igualdade

 

Este primeiro ponto se completa em um segundo: não apenas no "lema" da Revolução Francesa, mas na experiência que descendeu daquele lema em nossa vida cotidiana, a liberdade e a igualdade não garantem a fraternidade. Se a liberdade não for fraterna (ou seja, de alguma forma originariamente relacionada) e se a igualdade não for fraterna (ou seja, de alguma forma estruturalmente diferenciada), ambas perdem a si mesmas. Assim descobrimos, hoje, com muito mais clareza do que há 100 ou 50 anos, que a inexistência de fraternidade corresponde à inexistência de liberdade e de igualdade.

 

Poderíamos dizer que o discurso franco e direto com que a FT desnuda a pretensão de "imediatismo" com que nos colocamos frente à liberdade e à igualdade não só recupera o "papel da fraternidade", mas desliga a "laranja mecânica" com a qual simplificamos demais nossa experiência civil. A simplificação é uma novidade política da modernidade tardia que parece útil, mas que distorce o olhar. Não é a "apologética do ancien régime" que fala aqui, mas uma "fenomenologia do humano" mais exigente. É a cidade como tal que medita sobre si mesma. A esse olhar correto parece que:


a) A liberdade de cada sujeito e a sua dignidade, que devemos poder pensar abstratamente como um começo confiável, em termos concretos é sempre também uma tarefa e um dom. Uma liberdade absoluta colocada na origem não é apenas “afirmação da dignidade do ser humano”, mas também “corrupção do lobo”. O animal está no começo de si mesmo, enquanto o homem é "um" começo colocado por outros e aberto ao outro de si.

 

b) A igualdade entre todos os sujeitos, que deve ser preservada e promovida, se não for atravessada pela “paixão pela diferença”, pela escuta da diversidade, torna-se homogeneidade, uniformidade, homologação, achatamento, perda de si.

 

c) A fraternidade como "relação de comunhão radical entre os diferentes" é, portanto, condição de liberdade iniciada e de igualdade entre os diferentes. Mas, para isso, deve ser ao mesmo tempo determinada concretamente e afirmada como um universal. E aqui as categorias começam a se complicar e as práticas são colocadas em risco.

 

A longa sombra da paternidade e da filiação

 

Cada um dos pontos que aqui abordei rapidamente corresponde a uma "linha de resistência" do discurso eclesial contra o mundo moderno. Ouvimos o eco disso por pelo menos dois séculos: a liberdade originária como "negação de Deus", a igualdade como "negação da societas inaequalis" e de toda autoridade, a fraternidade universal como a ruptura de toda paternidade e de toda filiação são, efetivamente, lugares-comuns da polêmica "antimodernista" que atravessou todos os séculos XIX e XX. Vítimas dessa polêmica - que se torna o princípio da incompreensão do texto - não são apenas aqueles que da direita acusam Francisco de "falar como um maçom", mas também aqueles que o censuram por ter adotado uma "postura iluminista" muito acentuada e pouco eficaz. Na realidade, penso que a originalidade “não europeia” da abordagem da FT depende do aparecimento, na mens do magistério eclesial, de novas linguagens e novas experiências. A universalização da fraternidade, portanto, é fruto de uma "tradição menos universal" que a europeia. É como se o “trauma” da perda de autoridade que a Igreja viveu na Europa, e que condicionou tantos juízos e tantas escolhas de ontem e também de hoje, fosse relido por Francisco com outras chaves e com prioridades diferentes.


Por isso, parece-me muito oportuno que a FT proponha uma análise do "mundo fraterno" não como uma "consequência da autoridade da Igreja" e nem mesmo como um "produto do mercado", mas como diferentes formas, mediadas e temperadas, de experiência de paternidade e de filiação. Não é por acaso que o terreno sobre o qual a FT floresceu foi preparado por relações "inter-religiosas" - sobretudo com o mundo islâmico e o mundo judaico - que representam, de fato, experiências de autoridade de amor no coração da sociedade plural. Uma aliança entre tradições religiosas torna-se, assim, o caminho para uma elaboração também política e econômica do "governo do mundo" que não seja confiado nem aos bandos de lobos nem aos paternalismos dos soberanos. E isso vem do mais soberano dos soberanos (por opinião comum), mas que é chamado antes de tudo a ser um servo dos servos.


O desafio tremendo, mas decisivo

 

Esse projeto implica um desafio radical: repensar a tríade da Revolução Francesa até o fim. Isso não significa “assumi-la iluministicamente”, mas também não significa “rejeitá-la antimodernisticamente”. Mediar a liberdade com o reconhecimento das “autoridades libertadoras”, mediar a igualdade com “diferenças irrenunciáveis” e mediar a fraternidade como assunção da paternidade e da filiação que não só nos antecipa, mas também nos é exigida. Não aceitando tomar partido “de um lado contra o outro”, mas mantendo aberta uma mediação profética e dialógica, a FT pede a todos os irmãos que sigam caminhos corajosos tanto no plano prático quanto no plano teórico. Tanto o mundo como a Igreja podem elaborar "estratégias de fraternidade" não de cima, mas sondando as diferentes genealogias da liberdade, da igualdade e da fraternidade, que são sempre "de baixo".

 

“Não admitir o fim do homem” - como dizia Faulkner - implica elaborar e assumir uma redefinição realista e ambiciosa. Não de um lobo, não de um pai, não de um filho, não de um senhor ou de um servo podemos dispor imediatamente: podemos nos reconhecer como irmãos e irmãs, respondendo a uma vocação que pode habitar não só as igrejas ou os templos, mas também as ruas e as cidades.

 

Mas esses “irmãos e irmãs” precisam acertar as contas, aberta e serenamente, com o lobo, com o pai/filho e com o senhor/servo que neles vive e que repousa no seu próximo, como irmão esperado, como irmã sonhada. É uma complexidade a ser assumida e salvaguardada, que não pode ser simplificada demais sem causar danos maiores. Essa complexidade, que certamente é também uma complicação assustadora, permanece antes de tudo como uma complicação maravilhosa, estrutura original daquele animal que tem a palavras e as mãos.

 

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