20 Outubro 2020
Com a Fratelli tutti, Francisco tentou mostrar que a Igreja tem algo a dizer ao mundo contemporâneo, não em termos confessionais, mas para responder a um problema que está diante dos olhos de todos, crentes e não crentes, evidenciando que a fraternidade, central na mensagem cristã, é também um valor humano, e que um mundo que não a desconhece – como o nosso – é desumano.
A opinião é de Giuseppe Savagnone, professor do Instituto de Formação Política “Pedro Arrupe”, em Palermo, e do Instituto Teológico S. Tommaso de Messina, na Itália.
O artigo foi publicado por Settimana News, 19-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Provavelmente, a novidade da última encíclica do Papa Francisco, Fratelli tutti, deve ser buscada mais na sua forma do que nos seus conteúdos. Não porque estes últimos sejam irrelevantes, ou pelo menos considerados óbvios, como alguns críticos defenderam, mas porque a sua carga – que eu não hesitaria em definir como “revolucionária” – é liberada com toda a sua força explosiva precisamente por causa das modalidades novas com as quais é comunicada.
Até agora, com o termo “encíclica”, entendia-se uma carta pastoral do papa aos bispos da Igreja Católica e, por meio deles, a todos os fiéis. Ainda na Lumen fidei (2013) – a primeira encíclica do atual pontífice (declaradamente inspirada, porém, em um texto já elaborado pelo seu antecessor) – essa abordagem havia se mantido. O documento se dirigia “aos presbíteros e aos diáconos, às pessoas consagradas e a todos os fiéis leigos”, e partia dos temas da Revelação. Bento XVI, na sua encíclica social Caritas in veritate (2009), havia acrescentado, aos destinatários citados, também “todos os homens de boa vontade”.
Em todo o caso, o ponto de partida era a fé que unia os membros da Igreja. Por isso, as encíclicas normalmente começavam com uma exposição dos fundamentos bíblicos e magisteriais da mensagem que queriam comunicar, passando, depois, às aplicações aos problemas da comunidade cristã e da sociedade.
Já com a Laudato si’ (2015), o Papa Francisco mudou essa estrutura tradicional. A encíclica sobre a crise ecológica começa com um capítulo dedicado à resenha dos fenômenos negativos que marcam a nossa relação com a terra. E explica o motivo disso: “As reflexões teológicas ou filosóficas sobre a situação da humanidade e do mundo podem soar como uma mensagem repetida e vazia, se não forem apresentadas novamente a partir dum confronto com o contexto atual no que este tem de inédito para a história da humanidade” (n. 17).
Somente no segundo capítulo, intitulado “O Evangelho da Criação” e que começa com uma seção dedicada ao tema “A luz que a fé oferece” é que entram em jogo a Revelação e o seu ensinamento. E o fato de que isso não pode ser assumido como evidente é destacado pela interrogação com que essa seção começa: “Por que motivo incluir, neste documento dirigido a todas as pessoas de boa vontade, um capítulo referido às convicções de fé?” (n. 62).
Duas respostas são dadas a essa pergunta. A primeira que, “se quisermos, de verdade, construir uma ecologia que nos permita reparar tudo o que temos destruído, então nenhum ramo das ciências e nenhuma forma de sabedoria pode ser transcurada, nem sequer a sabedoria religiosa com a sua linguagem própria” (n. 63); a segunda, que, “embora esta encíclica se abra a um diálogo com todos para, juntos, buscarmos caminhos de libertação, quero mostrar desde o início como as convicções da fé oferecem aos cristãos – e, em parte, também a outros crentes – motivações altas para cuidar da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis. (...) Por isso é bom, para a humanidade e para o mundo, que nós, crentes, conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas convicções” (n. 64).
Fica claro que o discurso deve falar a todos os homens e mulheres, mesmo fora da Igreja, não deixando de lado a perspectiva cristã, mas a mantendo presente como uma “forma de sabedoria”, portanto nas suas implicações humanas; e aos fiéis, fornecendo-lhes “motivações altas” ligadas à fé, que deveriam torna-los mais diretamente protagonistas na luta pela proteção da criação.
Na nova encíclica de Francisco, essa intenção de falar a todos os homens e mulheres do planeta, e não só aos cristãos, é ainda mais evidente. Aliás, o papa declara isso expressamente no início: “Embora a tenha escrito a partir das minhas convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade” (n. 6).
Não por acaso, na Fratelli tutti, a referência explícita à perspectiva religiosa e à mais especificamente evangélica aparece apenas no capítulo oitavo, o último. Nele, Francisco enfatiza que, “quando se pretende, em nome duma ideologia, expulsar Deus da sociedade, acaba-se adorando ídolos, e bem depressa o próprio homem se sente perdido, a sua dignidade é espezinhada, os seus direitos violados” (n. 274). Uma reivindicação do primado da transcendência, comum a muitas religiões, que tem um desdobramento ainda maior no esclarecimento de que, para o cristão, o “manancial de dignidade humana e fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo” (n. 277).
A referência reiterada ao documento assinado em Abu Dhabi com o Grande Imã Ahmad al-Tayyeb é coerente com essa abertura às outras religiões. Embora, como o próprio Francisco lembra, quem o inspirou na redação da Laudato si’ havia sido o Patriarca Ortodoxo Bartolomeu – não católico, mas cristão –, agora o ponto de referência é o seu diálogo com um renomado representante do Islã (cf. n. 5).
Não é de se estranhar que a encíclica tenha aparecido aos olhos de uma parte do mundo católico que, há muito tempo, acusa o atual pontífice de heresia e de sincretismo como “o manifesto ideológico do bergoglismo”.
Quem escreveu isso no jornal La Verità (06-10-2020) foi um conhecido intelectual de direita, Marcello Veneziani, defendendo que “a fraternidade aludida pelo Papa Francisco é o terceiro princípio da Revolução Francesa, depois da liberté e da égalité”, e que, com essa encíclica, “a ideologia de Bergoglio busca um lugar para a Igreja pós-cristã na modernidade laica em nome da fraternidade (...) inserindo a Igreja no mundo moderno, ateu e laicista, decorrente da Revolução Francesa e buscando inspiração também em outras religiões como o Islã”.
Na realidade, se tentarmos decifrar essa mensagem, descobrimos que, no fundo, Veneziani capta muito bem a intenção fundamental do papa: tirar a Igreja e o seu anúncio do Evangelho do gueto em que a cultura do mundo moderno os relegou há muito tempo e apontar para os valores que essa mesma cultura acolheu e celebrou, para mostrar as suas raízes cristãs e denunciar a incoerência da sociedade atual em relação a eles.
O fato de isso se tornar uma acusação pode ser compreendido à luz do urgente e recorrente pedido, por parte de expoentes políticos de direita, de que os pastores da Igreja “cuidem dos seus próprios assuntos”, isto é, que fiquem bem fechados dentro dos muros dos seus templos falando de uma fé sem a mínima influência sobre a vida real dos homens e mulheres, começando pelos próprios fiéis.
É interessante, porém, que essa também seja a pretensão de intelectuais de sinal oposto, como Paolo Flores d’Arcais, que, em um artigo escrito há alguns anos, sublinhava a necessidade de combater “a ideia criticamente insustentável de que tem algum fundamento a pretensão da ‘fides’ de ser também ‘ratio’, a pretensão do magistério da Igreja, com as suas próprias doutrinas morais, de ser também o guardião da natureza humana como razão”.
Porque, “se a ‘fides’ em questão é (...) ‘loucura para a razão’ (...), nenhuma Igreja poderá pretender que essa sua ‘loucura’, que pode até pedir que os seus fiéis a pratiquem, se torne regra da convivência civil. Parceria doméstica". Em vez disso, advertia Flores d’Arcais, ‘uma religião que pretender ser uma coisa só com a razão, em vez de ser o cumprimento da razão, inevitavelmente se volta (...) ao pedido de fazer valer erga omnes, crentes e não crentes (...) seus próprios preceitos morais”.
De fato, se se aceitasse essa lógica, “toda norma em contraste com a ‘lei natural’ da razão, englobada na fé, seria irracional e desumana, e ninguém pode querer que a convivência civil se autodestrua com leis positivas desumanas” (Micromega, 3/2007, pp. 14-215).
Ora, é precisamente isso que o Papa Francisco tentou fazer, ainda na Laudato si’, mais decididamente na Fratelli tutti: mostrar que a Igreja tem algo a dizer ao mundo contemporâneo, não em termos confessionais, mas para responder a um problema que está diante dos olhos de todos, crentes e não crentes, evidenciando que a fraternidade, central na mensagem cristã, é também um valor humano, e que um mundo que não a desconhece – como o nosso – é desumano.
É um desafio. A parábola do Bom Samaritano – longamente analisada na encíclica como modelo de fraternidade, mas que, no Evangelho, é o relato do humano feito por Deus – assegura-nos que não é só a ideologia de Bergoglio que levanta esse desafio.
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Fratelli tutti: a Igreja fora do “gueto” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU