05 Outubro 2020
Em 1966, a ativista Charlotte Keyes escreveu um artigo na revista McCall’s intitulado “Se eles nos dessem uma guerra e ninguém viesse?”. Keyes era a mãe de um filho objetor de consciência da Guerra do Vietnã, foi presa por se recusar a responder ao seu aviso de convocação, então o artigo tinha um toque pessoal e ressoou amplamente. Hoje em Assis, eu estava comovido a perguntar, “E se eles fizessem uma viagem papal e ninguém viesse?”.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 03-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Normalmente quando o Papa visita o local de nascimento de São Francisco, as praças e ruas dessa pequena cidade umbriana suspiram humanidade, enquanto milhares se rebanham para ver o Papa e visitar os locais associados com o Poverello, ou o “pobrezinho de Assis”. Hotéis e restaurantes lotam, taxis e ônibus circulam apressados, lojas vendem bugigangas e a economia local tem um impulso massivo.
Hoje, ao contrário, Assis parecia uma cidade fantasma.
Era possível deslocar-se pelo centro da cidade quando o papa Francisco chegava para assinar a sua nova carta encíclica, Fratelli Tutti, dedicada ao tema da fraternidade humana, sem esbarrar em ninguém, sem ouvir os gritos habituais de “Viva il Papa!” e ver as habituais multidões de peregrinos brandindo bandeiras papais, sem nem mesmo se preocupar com filas em lojas ou restaurantes.
Havia pôsteres celebrando a visita do Papa pela cidade, mas talvez ademais de algumas centenas de pessoas que foram à Basílica de São Francisco para acenar quando o Papa chegou, ninguém teria a sensação de que o líder religioso mais conhecido do mundo estava aqui.
Na maior parte, o silêncio surreal é porque o papa Francisco queria manter esta visita estritamente privada, não querendo representar riscos desnecessários à saúde ou à segurança relacionados ao coronavírus. Embora a pandemia permaneça relativamente contida na Itália em comparação com grande parte do resto da Europa, ontem o país registrou um total de 1.900 novas infecções, o maior total desde que o lockdown nacional terminou no início de junho, e há temores de uma nova onda de casos, pois isso poderia colocar o país em uma segunda quarentena.
Em parte, o tom contido em Assis hoje também está relacionado ao fato de que toda a região da Úmbria foi atingida por fortes chuvas e ventos, deixando as pessoas em casa e as desencorajando de vir.
Na verdade, porém, o silêncio de hoje não foi nenhuma novidade: as coisas estiveram estranhamente silenciosas em Assis por meses, desde o surgimento da pandemia do coronavírus e dos limites rígidos para viagens internacionais. Recentemente, a prefeita da cidade, Stefania Proietti, publicou uma carta aberta dos cidadãos da Úmbria ao parlamento italiano, implorando ajuda financeira de emergência para Assis, pois, segundo ela, a região perdeu a maior parte dos cerca de um milhão e meio de visitantes que recebeu no ano passado.
“Assis é uma cidade em sofrimento”, escreveu Proietti. “É uma cidade que, mais do que outras, sentiu e ainda está sentindo os efeitos da Covid”.
“Aqui há muitos hotéis que nunca reabriram, muitas lojas que nunca abriram seus portões porque, apesar dos pequenos sinais de recuperação, a situação socioeconômica aqui é verdadeiramente dramática”, escreveu Proietti.
Em uma entrevista ao Crux pouco antes da chegada do Papa, o arcebispo de Assis, Domenico Sorrentino, disse que a igreja local entende por que o Papa queria manter sua viagem privada.
“Esta foi uma decisão muito rígida do papa Francisco... ele não quer criar problemas, ele quer resolvê-los e nós apreciamos isso”, disse ele.
“Esperamos que ele possa voltar a Assis de uma forma mais oficial, com a participação de pessoas”, disse Sorrentino.
Filho tipicamente gregário da região italiana de Nápoles, Sorrentino disse que, embora o papa Francisco não tenha conseguido trazer uma grande multidão com ele para dar um apoio à economia local, ele trouxe algo de valor ainda maior no sábado.
“Hoje, esta é uma jornada durante uma pandemia”, disse Sorrentino. “Isso é importante para o tema da encíclica que ele vai assinar, porque o tipo de fraternidade de que ele está falando é uma fraternidade de amor”.
“No momento, estamos vivenciando uma fraternidade da dor em todo o mundo”, disse Sorrentino, “uma dor que atinge até mesmo as pessoas mais poderosas do mundo. Sentimos nossa fragilidade, que somos todos frágeis. ”
Nesse contexto, ele disse, que a mensagem que Francisco vem entregar em Assis é especialmente valiosa.
“Nós estamos experienciando como irmãos e irmãs a fragilidade e a dor. Por que não deveríamos também ser irmãos e irmãs em amor?”, perguntou.
“Esse é o desafio da encíclica de hoje, um desafio do amor evangélico. O papa Francisco está dizendo que nós teremos um futuro difícil, mas nós podemos ter esperança de ser salvos pela graça de Deus e através do nosso amor mútuo, nossa fraternidade”, falou Sorrentino.
“Fraternidade”, disse, “é o novo nome de esperança para o mundo”.
Essa retórica ainda não pode trazer ônibus de turistas para as estreitas ruas de Assis, ao menos não ainda. Mas em uma cidade que, de muitas maneiras, está de joelhos, e sem mudanças à vista, a maioria das pessoas a maioria das pessoas aqui parecia pensar que nenhum raio de esperança é indesejável – especialmente em um dia cinzento e chuvoso que parecia complementar perfeitamente as dificuldades.
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A Assis vazia reflete a “fraternidade da dor” que papa Francisco vem para curar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU