17 Setembro 2020
"O ser feito de corpo e alma vira estátua petrificada e o monumento exprime a falta de dinamismo da vida. Disso resulta a necessidade de 'um pouco mais de calma', 'de um pouco mais de alma', 'do sono e do silêncio'. Somente essa parada, em meio à travessia que nos arrasta e nos atropela, será capaz de escutar profundamente 'os sinais dos tempos'. Somente esse refúgio na casa de Deus, mesmo que tenha a brevidade e a rapidez de um raio, acende uma chama viva para iluminar os projetos e o caminho a seguir", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais e vice-presidente do SPM – São Paulo.
Não há tempo a perder! As horas e os dias são pequenos para tudo o que projetamos realizar. Uma corrida veloz, febril e frenética toma conta de nossas ações e emoções. O importante é preencher todos os momentos da existência com coisas, pessoas e sensações que dão prazer. Comida e bebida, riso e festa, euforia e espetáculo! Nisso se resume o foco central de nossas preocupações. O imediatismo rouba o lugar de toda reflexão, a esperança cede espaço à expectativa, o sucesso se impõe sobre cada decisão a ser tomada. Navegamos nas ondas do “aqui e do agora”, dos modismos, daquilo que é transitório e efêmero. Bens materiais, poder, honras e privilégios – mercadorias que, tal como moedas, se podem tocar com as mãos, ver om os olhos e sentir com os dedos – substituem qualquer anseio pelos bens eternos. A sede do infinito e o vazio do finito se camuflam com a abundância diária de novidades. A mídia, o esporte e as redes sociais nutrem o tempo e eliminam o tédio. O conceito de carpe diem se vulgariza, tornando-se um prazer pelo prazer, um desfrute individualista do tempo.
A sede e o vazio, porém, persistem implacável e irremediavelmente. O coração resseca, a mente resseca, o espírito resseca. Sempre com mesma pressa alucinada e endiabrada, seguimos a via que tem o presente como único foco. A isso se reduz o objetivo da existência: fazer do presente um gozo sem limites. Por que, na noite obscura do passado, buscar lembranças amargas? Por que pintar o horizonte do futuro com as tintas sombrias dos maus agouros? Não, nada disso! O que importa é viver com intensidade o dia que se escoa. Embriagar-se do “agora”, pois tanto o peso da memória quanto a ânsia pelo porvir se revelam incertos e nebulosos. De nada adianta cobrir o “hoje” com esse lamaçal indefinido do ontem e do amanhã.
Semelhante atitude se faz imperativa “mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma” ou “até quando o corpo pede um pouco mais de alma”. Pois, “o tempo acelera e pede pressa”, “a vida não para” e é preciso “um pouco mais de paciência” – de acordo com a conhecida canção de Lenine! Música que, em tempos de pandemia e de quarentena, pode servir de reflexão. Por outro lado, combina bem com o pensamento da escritora francesa George Sand. Vejamos o que ela escreve: “Essas horas de um repouso alheio são bem necessárias ao homem ativo e corajoso, no sentido de retemperar suas forças; quanto mais o vosso coração é devorado pelo zelo da casa de Deus (que não é senão a humanidade), mais estareis dispostos a apreciar alguns instantes de isolamento para reentrar em possessão de vós mesmos. O egoísta o será sempre e em toda parte. Sua alma jamais se cansa de perseguir algo, de sofrer e de perseverar; ela é inerte e fria, e não tem mais necessidade de sono e de silêncio do que um cadáver. Mas aquele que ama raramente está só e, quando o está, ele se encontra bem e sereno. Sua alma pode bem saborear uma suspensão da atividade, que é como o sono profundo de um corpo vigoroso. Esse sono não é outra coisa senão o testemunho das fadigas passadas, e o precursor de novas provas para as quais ele se prepara” (SAND, George, Consuelo, la comtesse de Rudolstadt, Editions Gallimard, Paris, 2004, Vol. II, pág. 206, tradução livre do francês).
Nenhuma mercadoria preenche a sede e o vazio da alma. Uma sociedade reduzida à mera troca de bens de compra e venda logo se fossiliza. Os sonhos e as expressões artísticas convertem-se em nada mais do que objetos de museu. O ser feito de corpo e alma vira estátua petrificada e o monumento exprime a falta de dinamismo da vida. Disso resulta a necessidade de “um pouco mais de calma”, “de um pouco mais de alma”, “do sono e do silêncio”. Somente essa parada, em meio à travessia que nos arrasta e nos atropela, será capaz de escutar profundamente “os sinais dos tempos”. Somente esse refúgio na casa de Deus, mesmo que tenha a brevidade e a rapidez de um raio, acende uma chama viva para iluminar os projetos e o caminho a seguir. Somente a parada e o silêncio, além da serenidade, podem nos ensinar passos novos, com uma luz que nos chega ao mesmo tempo de dentro e do infinito.
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Habitar a casa de Deus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU