10 Setembro 2020
"Aquele que promove o bem comum é aquele que ajuda a criar as possibilidades para uma sociedade incorporar cada um de seus membros na medida em que trabalham juntos em direção a uma vida decente a todos. Esse tem a capacidade de mobilizar e inspirar aqueles que podem vislumbrar dinamicamente as estruturas institucionais necessárias para apoiar as iniciativas sociais a fim de aumentar a confiança, solidariedade e responsabilidade mútua, bem como crescer na aptidão de reconciliar as diferenças", escreve James F. Keenan, professor da cátedra Canisius do Boston College, nos EUA, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 28-07-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Em seu artigo sobre o voto católico, intitulado “Trump ou Biden? Em quem um eleitor católico deve votar?” [1], o jesuíta Thomas Reese afirma que a maioria dos padres “não oferecerá muita orientação”. Lendo seu texto, pensei: “Ora, talvez alguns irão oferecer”. Para estes e outros que querem comentar sobre o voto católico nestas eleições, apresento alguns recursos a partir das Escrituras e da tradição sobre a misericórdia, o bem comum e a aptidão para a liderança.
Virtude alguma recebe maior endosso nas Escrituras do que a misericórdia. Tanto em Lucas quanto em Mateus, a questão toda da salvação depende dela. Em Lucas 10,25-37, quando um especialista em leis pergunta “o que devo fazer para receber em herança a vida eterna?”, Jesus responde com a parábola do Bom Samaritano, que incita o reconhecimento de que o amor ao próximo significa mostrar misericórdia. Em Mateus 25,31-46, o Juízo Final é contado na chave daquilo que mais tarde se chamará obras de misericórdia.
Os evangelhos são claros e simples: se cremos e queremos ser salvos, sejamos misericordiosos.
Na tradição, nenhuma parábola recebe atenção maior do que a do Bom Samaritano. Clemente de Alexandria, Orígenes, Ambrósio e Agostinho, todos ensinaram que essa parábola é primordialmente uma narrativa da nossa própria salvação misericordiosa. Semelhantemente, de Venerável Beda (673-735) a Tomás de Aquino (1225-1274), pregadores e teólogos afirmaram que este relato é, antes de mais nada, o Evangelho em miniatura, um relato do que Cristo por nós realizou a fim de que, em troca, possamos seguir e fazer o mesmo.
A instrução moral para demonstrarmos misericórdia apresenta-se na narrativa do nosso ser resgatado.
Esta é coerentemente a explicação prevalente, alegórica da parábola: o homem que jaz no caminho é Adão (nós) exilado, ferido (pelo pecado), sofrendo do lado de fora dos portões (do Éden). O sacerdote e o levita (a lei e os profetas) passam por ele por que estão incapazes de responder. Junto vem o Bom Samaritano (Cristo), estrangeiro, alguém de fora, que trata as feridas de Adão (nossa salvação), leva-o a uma pensão (a igreja), faz um pagamento adiantado de duas moedas (os dois mandamentos do amor), deixa-o com o dono da pensão (São Paulo/o papa) e promete voltar (a segunda vinda), quando pagará por completo (a nossa redenção) e o irá levar consigo para casa (o Reino).
A lição é simples: os cristãos são chamados a serem misericordiosos porque foi um Deus misericordioso quem nos salvou. Misericórdia, como o defino, é a disposição para adentrar o caos do outro. Assim como Cristo adentrou o nosso, nó adentramos no dos demais e os acompanhamos também.
Na história, rapidamente a misericórdia acabou se tornando a marca registrada do cristianismo. Desde o primeiro século, os cristãos agiram de acordo com Mateus 25 naquilo que mais tarde se chamaria de as obras de misericórdia. Rodney Stark atribui a ascensão do cristianismo [2] precisamente a estas obras de misericórdia que mudaram a paisagem das cidades portuárias do Mar Mediterrâneo, as quais eram densamente povoadas por estrangeiros recém-chegados em busca de trabalho, mas que foram surpreendidos pela generosidade misericordiosa dos cristãos.
Durante a Reforma, a misericórdia passou a ser mais identificada com o catolicismo, na medida em que os católicos insistiam nas boas obras de misericórdia juntamente com a fé como as bases da salvação.
Infelizmente, hoje a nossa compreensão de misericórdia empobreceu-se: ou ela se parece com atos particulares, discretamente piedosos, ou apresenta-se como algo tão superficial que ridicularizamos o seu legado com faixas e adesivos colantes que demandam justiça ao invés de misericórdia.
No entanto, ao longo da história as obras de misericórdia foram, na maior parte, coletivas, inovadoras e institucionais. Os que cuidavam dos enfermos acabaram criando hospitais; os que visitavam os prisioneiros formaram sociedades para apoiá-los, apoiar os familiares e a própria reforma prisional; vestir os nus levou à Sociedade de São Vicente de Paulo e a uma série de outros centros sociais.
Como escrevi em The Works of Mercy: The Heart of Catholicism [3], estes projetos corporativos administrados por guildas, ordens religiosas ou confraternidades respondiam a todas as necessidades, jamais temendo serem escandalizadas. Dentre uma centena de exemplos, houve, no século XVI, a Confraternidade do Amor Divino que construía enormes “hospitais para os incuráveis”, isto é, pacientes de sífilis, em Gênova, Roma, Nápoles, Palermo, Florença, Bolonha, Savona, Bréscia, Pádua e Veneza. Seiscentos anos depois e a maioria dessas estruturas ainda estão de pé, tamanho eram o seu escopo e seus fundamentos.
Da mesma forma, a misericórdia promove e não atenua a justiça. A opção pelos pobres, claramente inserida na tradição da misericórdia, nos chama a reconhecer e promover os direitos dos que estão às margens porque eles também há tempos são ignorados. Na misericórdia, nós acompanhamos aqueles cujos direitos são negados, sejam eles nascituros, sejam eles imigrantes, sem-teto, prisioneiros ou os milhões e milhões de pessoas cuja própria equidade está socialmente comprometida por causa de questões de gênero, raça, tribo, casta, religião ou status sexual. A misericórdia não se cansa na busca por justiça e, por esse motivo, a misericórdia sempre está conectada, intrinsecamente, com a promoção do bem comum.
A misericórdia nos leva a perceber que somos todos irmãos, vinculados ao bem comum. A misericórdia nos ajuda a reconhecer o próximo que está excluído; o bem comum nos dá o caminho para respondermos. A misericórdia é onde começamos; o bem comum é o que almejamos.
O bem comum nos dá a direção para o contexto político da misericórdia.
Sobre o bem comum, o Catecismo da Igreja Católica (parágrafo 1.919) instrui-nos que “é na comunidade política que se encontra a sua realização mais completa. Compete ao Estado defender e promover o bem comum da sociedade civil, dos cidadãos e dos corpos intermédios”.
Muito antes, Tomás de Aquino escrevia de maneira semelhante: “a lei [é] por excelência relativa ao bem comum” (Artigo 2, Questão 90: Da essência da lei).
O bem comum significa que o nosso próprio bem-estar se liga constitutivamente ao bem dos demais. O mundo e todos os seus bens devem ser desenvolvidos e sustentados de forma que todos possam acessá-los. Os bens para a alimentação, moradia, saúde, trabalho e segurança e educação precisam ser apropriadamente divididos, protegidos e desenvolvidos.
O bem comum então é a nossa maneira de dizer que a inclusividade é uma questão sine qua non para o florescimento humano. Promover o bem comum é, então, promover o bem-estar de todos, permitir acesso àquilo que nós como seres humanos necessitamos para viver e agirmos bem. Em um país cujos cidadãos resistem à responsabilidade de usar uma máscara facial, a nossa inclinação social para com o bem comum parece-me estar no fundo do poço. A mim, também, parece que resgatarmos o bem comum tornou-se tão urgente quanto toda questão relativa às próximas eleições.
Aquele que promove o bem comum é aquele que ajuda a criar as possibilidades para uma sociedade incorporar cada um de seus membros na medida em que trabalham juntos em direção a uma vida decente a todos. Esse tem a capacidade de mobilizar e inspirar aqueles que podem vislumbrar dinamicamente as estruturas institucionais necessárias para apoiar as iniciativas sociais a fim de aumentar a confiança, solidariedade e responsabilidade mútua, bem como crescer na aptidão de reconciliar as diferenças.
Aquino chamou de “prudência política”; hoje, chamamos de liderança católica capaz.
A capacidade ou aptidão para a liderança é alguém que entende os limites da realidade, reconhece as restrições financeiras, atenta-se aos detalhes, respeita as fronteiras, mostra apreço pela importância da lei, sabe como motivar, é capaz de tirar o melhor de si e dos outros e pode desafiar os demais a pensarem para além do autointeresse. O eleitor católico, portanto, volta-se àquele capaz de liderar com base na misericórdia para o bem comum.
Eis aquele a quem somos chamados a eleger: aqueles que dão testemunho da qualidade de misericórdia na vida que vivem; que demonstram um compromisso evidente a pôr o bem comum antes do seu próprio; e aqueles que, com algum grau de capacidade e sucesso, nos convencem de que podemos liderar sob uma forma transparente, responsável, realista e sustentável, mesmo aqueles cínicos demais para crer que isto é o que nós católicos somos chamados a fazer.
[1] Disponível aqui.
[2] Conferir o livro “The Rise of Christianity: How the Obscure, Marginal Jesus Movement Became the Dominant Religious Force in the Western World in a Few Centuries”, disponível aqui, em inglês.
[3] Conferir o livro “The Works of Mercy The Heart of Catholicism”, disponível aqui, em inglês.
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EUA. Pregação nas eleições? Misericórdia é por onde começamos; o bem comum é o que almejamos. Artigo de James Keenan,sj - Instituto Humanitas Unisinos - IHU