09 Setembro 2020
"As milícias descortinaram o lugar da política, apresentando, em vários casos com sucesso, seus quadros ou representantes como candidatos às eleições municipais. O Rio corre o risco de se perverter em Gotham City, sem ordem, sem lei e religião, salvo a de pastores que lhe recomendam a panaceia do empreendedorismo e que também já descobriram o caminho do voto", alerta Luiz Werneck Vianna, sociólogo e professor e pesquisador da PUC-Rio.
Entregues ao Deus dará vivem no nosso estado Rio de Janeiro quase 16 milhões de pessoas, boa parte delas, talvez a maioria, sem rumo e tateantes em busca de oportunidades de vida, lutando com unhas e dentes por um lugar ao sol, uma boquinha, um negócio da China, uma boa mamata, um falso brilhante, para alguns até uma côdea de pão. Mas o estado do Rio de Janeiro nem sempre foi assim, pois aqui nasceu nosso estado nacional com suas elites dirigentes empenhadas em difundir ideais civilizatórios, e sobretudo, nos anos 1930, tornou-se a sede do projeto de implantação dos alicerces da indústria pesada na cidade de Volta Redonda, que se tornou polo da siderurgia, elemento crucial para a industrialização do país. Mais à frente, outras iniciativas asseguravam essa primazia do estado na conversão do modelo agroexportador até então vigente nas atividades econômicas para o industrial, tais como, entre outras, a Fábrica Nacional de Motores, a companhia Nacional de Álcalis, a Petrobras e a Eletrobrás.
Foi sob o impulso do Estado autoritário, institucionalizado pela Carta de 1937, que tomou forma o processo de modernização autoritária que iria remodelar o Estado e suas relações com a sociedade, conduzido por uma elite forjada ainda nos anos 1920, entre os quais se destacavam nomes como Alberto Torres, Oliveira Vianna, Manoel Bonfim, entre tantos, que, críticos do liberalismo oligárquico e de sua república de fachada, preconizavam em favor de um estado forte que rompesse com o atraso do país e abrisse caminho à sua modernização. Com a criação do DASP, em 1938, dotava-se o Estado da capacidade de selecionar e treinar uma elite burocrática destinada a impor uma administração orientada para esses fins.
A democratização de 1946 não interrompeu essa trajetória que nos vinha da década anterior, apenas expurgou-a da sua ganga manifestamente autoritária, conservando sua modelagem original de primazia do Estado sobre a sociedade, principalmente quanto aos fins da sua economia. Contudo, a natureza desse Estado, manteve-se fiel à sua construção nos anos 1930 e preservou seu caráter bifronte, uma vez que não se reduzia aos elementos coercitivos, conhecendo também instituições e agendas voltadas para a produção de coesão social, muito especialmente abrigadas na fórmula corporativa. Por meio das corporações o Estado se vinculava à sociedade, em particular no mundo do trabalho, e, por meio desses nexos, seus fins e valores encontravam formas diretas de comunicação com os sindicatos e seus filiados. A Justiça do Trabalho cumpriria os fins estratégicos de extrair os conflitos do trabalho, em uma sociedade que se industrializava de modo acelerado, da órbita da sociedade para a do Estado, que os harmonizaria sob a mediação do Direito.
Ao estilo de Durkheim, sociólogo francês então em voga, referência importante na obra de Oliveira Vianna, autor chave na ideologia da modernização autoritária do período, a política do Estado não descuraria do tema da solidariedade social, recusando as concepções atomistas do liberalismo reinante na 1ª República. Nesse tipo de relação corporativa do Estado com os sindicatos, em que o primeiro, por meio da sua burocracia incutia naqueles os valores e interesses nacionais ao tempo em que amparava seus direitos trabalhistas, tecia-se uma certa eticidade no mundo do trabalho, certamente a partir da óbvia assimetria nessa relação.
Nesse cenário de empresas estatais e de organização corporativa, ordenou-se a paisagem social do Estado do Rio de Janeiro, em particular da sua capital. De fora dele restava uma imensa população vivendo de pequenos negócios e de ofícios urbanos praticados, em geral, individualmente. Esse mundo se encontra à margem da política, ocupando posições intersticiais na vida urbano-industrial em expansão. A política, enquanto tal, se fazia no interior do Estado e dos seus aparelhos, os dos maiores partidos, o PSD e o PTB, vinculados a ele. De meados dos anos 1950 a 1964, sob o registro da questão nacional, entendida em chave de desenvolvimento das forças produtivas, tal cenário, com algumas modulações, se mantém.
A principal modulação se faria presente nas classes subalternas que emergiria do afrouxamento dos controles coercitivos a partir do governo JK de índole liberal, bastante reforçado no governo Jango, um antigo ministro do Trabalho no segundo governo de Vargas, quando a questão nacional se encontra, pela via dos sindicatos, expressão popular. A cidade do Rio de Janeiro se torna o principal palco dessa mudança, e nela se constituem, na política e nas atividades culturais, novos atores sociais e políticos que vão exercer influência nacional, inclusive na vida popular, exemplar na crescente institucionalização das Escolas de Samba cujos desfiles extravasam as fronteiras da sua capital para todo o país.
O golpe militar de 1964 atalha essa movimentação virtuosa, e as mudanças que trazem consigo vão repercutir dramaticamente nos destinos do Estado, em particular da sua capital. Expurga-se o que havia de Durkheim na fórmula corporativa nas relações entre sindicatos e Estado que se orientava no sentido de favorecer elementos de solidariedade social, e o que vai restar dela se perverte em instrumento de coerção. De outra parte, o repertório que passa a ter vigência se desloca para os temas do mercado e do favorecimento da acumulação capitalista com o abandono da questão social, que, antes mesmo em plano secundário, se fazia presente em agendas dos dirigentes políticos.
A reação a esse estado de coisas ensejou nas duas décadas seguintes intensa movimentação popular e das forças do liberalismo político sobreviventes da razia operada em seus quadros pelo regime militar, que encontraram sua oportunidade na grave crise econômica que ameaçava o país. Como é sabido, a solução de compromisso encontrada para a saída do impasse que sitiava o regime militar foi o da sua auto extinção com as salvaguardas que conseguiu impor. A Constituição de 1988 nasce com o mandato de renovar a vida democrática do país, embora não venha a contar com sustentação explícita do PT, a esta altura o partido mais influente nas massas trabalhadoras, com óbvias repercussões futuras.
Os dois partidos que dominarão a cena a partir daí, o PSDB e o PT, ambos com identidades enraizadas em São Paulo, vão encontrar dificuldades de implantação na política do Rio onde a era Vargas, por meio de Leonel Brizola e do seu partido, o PDT, deixara fortes raízes. Nenhum desses partidos, entretanto, veio a demonstrar vocação de mobilização da vida popular, especialmente na imensa população das favelas que persistia à deriva da vida política, fora o esforço das Comunidades de Base da igreja católica em organizá-las, experiência virtuosa interrompida pelas elites eclesiásticas que a entenderam como de orientação simpática ao marxismo.
As classes subalternas da cidade, deixadas à sua própria sorte, se tornavam assim expostas, em particular os jovens, a atividades marginais, primeiramente do jogo do bicho e de sua corte de pistoleiros, que se convertiam em personagens tutelares das Escolas de Samba, e, depois, com a difusão milionária do comércio de drogas, das do narcotráfico como seus “soldados”. Na esteira disso, abriu-se passagem para a organização das milícias, a pretexto de proteger a população favelada da ação dos narcotraficantes, como ocorreu com a favela de Rio das Pedras, na região oeste da cidade, arregimentando para sua operação a banda podre de policiais militares e civis, que se tornam senhores dos negócios de transportes, da venda de gás, até da construção civil, praticando extorsões, em nome da proteção que alegavam fazer, da população dos seus “territórios”.
A partir desse lugar de força, controlando boa parte das favelas e regiões próximas a elas, as milícias descortinaram o lugar da política, apresentando, em vários casos com sucesso, seus quadros ou representantes como candidatos às eleições municipais. O Rio corre o risco de se perverter em Gotham City, sem ordem, sem lei e religião, salvo a de pastores que lhe recomendam a panaceia do empreendedorismo e que também já descobriram o caminho do voto.
Trazer a cidade de volta à vida e às suas melhores tradições não é tarefa fácil, cuja significação não se limita ao local, porque afeta a própria sorte da democracia no país. Tem-se à mão, nesta sucessão eleitoral que se avizinha a oportunidade de começar a virar esse jogo maléfico. Os partidos políticos de compromissos democráticos não podem ignorar o caminho das alianças que lhes abram a possibilidade de devolver a cidade aos seus cidadãos depois de tantas experiências grotescas. Sobretudo devem estar atentos aos novos personagens que vieram à tona nesta pandemia, principalmente os que souberam armar a trama da rede solidária que protegeu os mais vulneráveis, os profissionais da saúde que com espírito cívico se empenharam na defesa da vida, sem esquecer aqueles que permaneceram firmes em seus compromissos democráticos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O Rio de Janeiro não pode ser Gotham City - Instituto Humanitas Unisinos - IHU