09 Junho 2020
"Para muitos povos, era preciso entender profundamente que, ao destruir a natureza e a vida, da qual somos parte inseparável, destruímos nossa casa comum. Talvez, isso seja um assunto novo para muitos; para nós, que vínhamos tratando deste problema desde sempre, isso deu razão às nossas lutas de séculos, em defesa da vida no planeta e dos lugares sagrados como seres vivos, que são os ecossistemas em todo o mundo", escreve Patricia Gualinga, defensora dos direitos dos indígenas e líder da comunidade indígena Kichwa de Sarayaku, no Equador, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 05-06-2020. A tradução é de Benno Brod.
Segundo ela, "após sua publicação da Laudato Si', a reação à encíclica foi lenta, inclusive dentro da própria Igreja católica. Para os povos tradicionais, sempre tem sido muito claro que, como católicos, devemos aceitar, antes que seja tarde demais, que nosso habitat faz parte da criação de Deus e, portanto, é sagrado, como sempre o foi para o povo Sarayaku, do qual faço parte, e cuja seiva vital (Kawsak Sacha) é sagrada. E, como ser vivo, a criação tem seus direitos".
Faz cinco anos que recebemos, com imensa alegria e esperança, a notícia da publicação da encíclica papal Laudato Si, voltada ao meio ambiente. Enfim, um líder espiritual respeitado e escutado em todo o mundo, compreendia o que os povos indígenas tentávamos explicar sem sermos atendidos.
Laudato Si trouxe a público a importância de cuidar da natureza, respeitar a terra e seus ecossistemas; reconheceu nossas culturas milenares e seu conhecimento ancestral. Para nossos povos, isso significou que, afinal, alguém, com grande influência, tinha compreendido essas verdades eternas. Isso mostrou que todos partilhamos um mesmo espaço, e devemos questionar o consumismo que destrói e viola os direitos humanos, os direitos da natureza e os de nossa gente.
Para muitos povos, era preciso entender profundamente que, ao destruir a natureza e a vida, da qual somos parte inseparável, destruímos nossa casa comum. Talvez, isso seja um assunto novo para muitos; para nós, que vínhamos tratando deste problema desde sempre, isso deu razão às nossas lutas de séculos, em defesa da vida no planeta e dos lugares sagrados como seres vivos, que são os ecossistemas em todo o mundo.
Após sua publicação, a reação à encíclica foi lenta, inclusive dentro da própria Igreja católica. Para os povos tradicionais, sempre tem sido muito claro que, como católicos, devemos aceitar, antes que seja tarde demais, que nosso habitat faz parte da criação de Deus e, portanto, é sagrado, como sempre o foi para o povo Sarayaku, do qual faço parte, e cuja seiva vital (Kawsak Sacha) é sagrada. E, como ser vivo, a criação tem seus direitos.
Contudo, as indústrias extrativistas e a grande maioria dos governos parecem não ter compreendido nada e continuam aplicando um modelo mesquinho que envenena e depreda a natureza, gera desigualdade social e favorece a cultura do descarte. Fóruns e acordos mundiais deram um passo para trás, perdendo algumas das conquistas já antes alcançadas. Sabemos que aqueles que investem na extração de petróleo, na mineração, em indústrias madeireiras, em hidrelétricas, no carvão e nas agroindústrias, entre outras, sempre colocaram seus próprios interesses econômicos acima dos direitos humanos fundamentais, tais como a vida, a água, o ar, a terra ou um ambiente sadio, onde nossos filhos pudessem crescer e os anciãos envelhecer sem ficar doentes ou morrer.
Nem mesmo uma pandemia, como a atual, os faz refletir. Valorizam o dinheiro mais que as vidas, já que continuam avançando nos projetos extrativistas e contando com o respaldo de governos e exércitos, destruindo irreparavelmente a biodiversidade. A maioria dessas ações acelera um desequilíbrio ecológico e climático muito visível, que traz consequências graves em muitos lugares e que todos vemos e sofremos. A degradação social e a pobreza extrema em certas áreas, como as de nossa terra, onde se realiza a extração de recursos, promovem e aceleram esse processo.
Vemos também que a tecnologia de ponta fracassou. Um exemplo é o caso do Equador, onde a recente ruptura dos oleodutos, que transportam milhões de barris de petróleo, causou derrames em rios importantes como o Napo e em outros afluentes diretos do Rio Amazonas. Esse tipo de contaminação tem tido consequências graves e sequelas importantes na ictiofauna e na saúde de homens, mulheres, crianças e idosos, em centenas de comunidades, que vivem como ribeirinhos junto aos rios infestados. A tudo isso se somam as grandes inundações que acabamos de sofrer, inundações nunca vistas, que devastaram comunidades inteiras. O impacto é tão óbvio, que não podemos compreender como se pode continuar ignorando isso.
Apesar disso, a repercussão da Laudato Si é muito importante, em muitas partes do mundo, para nossos povos e também para a vida dos seres humanos como um todo. O Papa Francisco deu força e apoio às instituições eclesiásticas, no sentido de que se comprometam, finalmente e incondicionalmente, a assumir o cuidado de nossa casa comum e a apoiar os processos de preservação da natureza e seus territórios. Com este objetivo, foram realizadas várias reuniões e foram feitos estudos sobre o tema.
Poder-se-ia afirmar que, atualmente, um dos resultados diretos da encíclica foi o Sínodo da Amazônia, realizado em Roma, em outubro do ano passado. Esse sínodo ofereceu a nossos povos a oportunidade de serem escutados finalmente e de trabalhar diretamente na situação atual da Amazônia e sobre sua fragilidade. Ofereceu também a oportunidade de atuar e, sobretudo, ter consciência do papel que a Igreja deve assumir neste território tão diverso, trabalhando com diferentes povos e culturas.
Devemos ser uma Igreja que reage com força, e não de maneira débil ou para salvar as aparências. Assim, ela se torna uma aliada, uma amiga, uma instituição eclesiástica que caminha ao lado daqueles que lutam para preservar a natureza. Isso foi algo novo para todos e um grande passo para frente, por parte da Igreja.
Se se mantiver esse apoio, nós, povos indígenas, teremos a possibilidade maravilhosa e única de poder contar com uma aliada incomparável em nossa luta para defender a vida. O documento final e as decisões tomadas em Roma ajudaram a definir nosso plano para trabalhar com vigor na implementação dessas iniciativas em nosso território, o que é um trabalho de grande responsabilidade, mas necessário, num contexto urgente que nos ameaça a todos.
Apesar de se tratar de uma situação complexa, parece que os cidadãos, tomados globalmente, estão começando a reagir, se bem que em forma fraca e lenta. A encíclica também serviu como exemplo, em vários ambientes e lugares, convertendo-se num instrumento que se pode usar como argumento; uma ferramenta válida para todos, na defesa da natureza, para questionar a relação entre o homem e a criação e para refletir sobre os aspectos fundamentais da vida, em que estamos todos incluídos. Pela primeira vez parece que estamos de acordo que a criação é sagrada: cientistas, sábios indígenas e a instituição eclesial por meio do Papa Francisco.
Nesse contexto, a juventude é nossa maior esperança. Ao longo destes cinco anos, as vozes de muitos jovens, provenientes de diferentes rincões do mundo, se erguerem para questionar governos e empresas, com uma consciência, um carisma e uma visão dignos de admiração. Eles estão bem informados e apresentam argumentos sólidos sobre o futuro. Eles são a nova geração a quem passaremos este encargo; a geração que tomou consciência sobre a questão do planeta que lhes deixaremos em herança. Essa geração reconhecerá que todo o esforço nesta questão é válido, já que se trata de nossa sobrevivência. Talvez nem todos tenham lido a Laudato Si, mas todos concordam que devem lutar pelo futuro, para eles e para todos.
Temos sido testemunhas dos resultados da encíclica no trabalho árduo realizado pela Rede Eclesial Pan-Amazônica, que acompanhou nossa luta, denunciando iniquidades e violações dos direitos humanos, dos direitos da natureza e dos direitos dos povos da Amazônia. Outro passo para frente tem sido a celebração do Sínodo da Amazônia, uma iniciativa com longo caminho percorrido e um trabalho de grande responsabilidade para implantar as pautas marcadas, pelo sínodo, nestes territórios de situação delicada.
Num contexto tão complexo como este em que vivemos, a Laudato Si chegou depois de séculos de espera, para apoiar e reforçar as lutas de nossos povos, em nome de nossas florestas, das quais formamos parte, como se fôssemos um só ser.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Laudato Si ratifica séculos de sabedoria indígena em defesa da natureza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU