05 Mai 2020
"Uma igreja pode sofrer muito com a interrupção forçada da celebração da missa. Mas sabe que o Senhor se oferece no rito comum - por enquanto impossível para a comunidade – para estar no coração de todo homem e na vida do mundo. Com a impossibilidade de frequentar a missa, não é tirado de nós o Senhor que alimenta nossa fé e nosso serviço, mas é suspensa a linguagem mais elementar e mais poderosa para falar de sua ação no mundo e nos corações", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 01-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Contudo, a liturgia é culmen et fons" (SC 10)
Quero explicar, antes de tudo, por que sinto a urgência de escrever algo claro sobre esse ponto muito delicado e decisivo da nossa identidade cristã, de cristãos da Igreja Católica e Romana. E tento explicar, especialmente para mim mesmo, por que fiquei tão surpreso, nesta manhã, durante a oração, ao ouvir o grande texto de Jo 6:
"Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna".
Essas expressões, ouvidas na liturgia da palavra desta manhã de 1º de maio de 2020, ressoaram com acentos novos, singulares e fortes. O contexto que estamos vivendo, com suas características particulares, as relê e ressignifica de maneira poderosa. Eu gostaria de tentar reconstruir esse contexto, com outros dois textos, que de alguma forma "descendem" dele. O primeiro texto é a frase final da "Declaração de discordância", com a qual um Gabinete da CEI criticou as decisões comunicadas pelo Primeiro Ministro no último domingo. O texto termina com esta frase:
"o empenho de servir aos pobres, tão significativo nesta emergência, nasce de uma fé que deve poder se alimentar de suas fontes, em particular a vida sacramental".
Sem considerar as questões de mérito e de oportunidade, uma espécie de "hierarquia as fontes" é aqui ilustrada: o serviço deriva da fé, e a fé é nutrida pelos sacramentos. Portanto, os sacramentos nutrem a fé e a fé gera o serviço. Como veremos, trata-se de uma leitura legítima, fundamentada, mas unilateral da tradição. Mas voltaremos a isso mais tarde.
Acrescento um terceiro texto, extraído de uma intervenção que apareceu nos últimos dias, com referência crítica ao mesmo comunicado da CEI (Lutero responde à CEI) em que os dois autores evangélicos luteranos fotografam a posição expressa pelos Bispos desta maneira:
"o dever de celebrar e participar à missa deve-se essencialmente à necessidade de recorrer à fonte sacramental necessária ao crente católico. Nesse texto, é reafirmada a concepção sacramental da função eclesial, típica do catolicismo romano".
E depois eles tentam esclarecer ainda mais, assim:
"Um bom crente católico, a fim de garantir a sua salvação (de acordo com a terminologia bíblica), deve durante a sua vida cumprir todos os sacramentos”.
É evidente que, se considerarmos o texto de João, a hermenêutica dos Bispos católicos e da reação dos autores luteranos, entendemos que o problema não reside, como pode parecer, em uma diferença confessional, mas na maneira como pretendemos "preencher" a categoria inevitavelmente abstrata de "liberdade de culto". E é sobre isso que eu gostaria de deter minha atenção.
Toda a história pela qual passamos nos últimos dias e também nesses dois meses pode ser explicada a partir disso: dessa "diferença". Os católicos realmente "partem" da Eucaristia, enquanto os evangélicos luteranos partem da fé? Acho que não. E nessas linhas, tento demonstrar que essa diferença esconde uma unidade profunda, que ambas as "partes", por boas razões, não conseguem reconhecer. Talvez porque, nos dois lados da "frente", fomos obrigados a representar o outro (e também a nós mesmos) de uma maneira exasperada, forçada e quase caricaturada. Assim, aconteceu que os evangélicos luteranos contestem os católicos porque colocam suas liturgias "antes de Deus", enquanto os católicos respondem contestando aos evangélicos luteranos colocar sua fé em Deus antes do próprio Deus. Afinal, ambos os lados estão preocupados com a mesma instância: que Deus seja o primeiro, e eles veem na liturgia de um e na fé do outro um "obstáculo", uma "perda", uma "corrupção" e até uma "idolatria". Deus substituído pelas liturgias da Igreja ou pela fé das pessoas.
No entanto, neste caso, eu não quero refletir sobre esse plano ecumênico, que também seria interessante. O que me preocupa, ao contrário, é mostrar, nos termos mais clássicos do catolicismo, que a visão da Eucaristia que indiretamente transparece da conclusão da Nota da CEI não pode ser considerada uma expressão "clássica" do catolicismo. Talvez poderia ser do Concílio de Trento - mas também teria algumas dúvidas sobre isso - mas certamente não o é em relação à teologia sucessiva ao Vaticano II.
O que mudou, com o Concílio Vaticano II, na liturgia? Acima de tudo, eu diria duas coisas: o papel do povo de Deus e a relação com a fé. A partir da Idade Média foi se afirmando – e ainda resiste - uma leitura extrínseca do sacramento - quase uma forma mágico-instrumental do mesmo - que o confiava - como um res - aos cuidados do "sacerdote", que "tornava presente" o corpo e sangue de Cristo e, ao se comungar com ele, o fiel ganhava a vida eterna. Essa representação, na qual a ação ritual e a fé são quase totalmente deslocadas sobre o padre, e que coloca o sujeito do lado de fora da ação, como um simples receptor do sacramento, constitui a visão de que o catolicismo superou há pelo menos 60 anos. Mesmo repetida por alguns católicos, por emissoras de rádio, por alguns jornalistas, por algum político interessado e, às vezes, até por bispos distraídos, essa visão é totalmente inadequada para explicar a experiência sacramental católica.
No que consiste, então, a novidade? Consiste em uma maneira de pensar sobre a presença de Cristo, a função da assembleia, o papel do ministro e a natureza da ação. A celebração eucarística tem dois sujeitos principais: o Senhor que convoca e a assembleia convocada. O sacerdócio de Cristo corresponde ao sacerdócio comum, próprio de cada batizado e, portanto, daquela assembleia que o Concílio chama de "comunidade sacerdotal" (LG 11). A assembleia é presidida pelo ministro ordenado, cujo sacerdócio é ministerial porque serve a Cristo e serve à igreja. Está a serviço dos dois verdadeiros sujeitos. Ele não é o único ministro, porque a assembleia é servida por uma multiplicidade de serviços, mesmo que seja presidida apenas pelo ministro ordenado. Toda essa "equipe bem ordenada", edifício de pedras vivas em torno da pedra entendida como pedra de canto, compartilha a ação de graças, na escuta da palavra e no compartilhamento em oração do único pão e do único cálice. Essa liturgia é chamada com razão de culmen e fons de toda a ação da Igreja.
Se esclarecermos essa dinâmica, descobrirmos o que está em jogo quando se fala de "vida sacramental", entendemos a delicadeza do tema e sua fácil deformação. Nas coisas mais importantes da vida de fé, a diferença entre verdade e erro sempre permanece tão sutil quanto um fio de cabelo (Barth). Portanto, seria muito grave se nos deixássemos convencer por nossos irmãos evangélicos luteranos de que a posição católica se reduz a "cumprir todos os sacramentos". Mas a força com a qual podemos "convencer" nossos irmãos de diferente confissão inevitavelmente passa por uma "conversão" precisa de nossa parte. Por esse motivo, uma série de esclarecimentos pode ser adicionada aqui:
a) A liturgia não é apenas fons, mas também culmen. Como eu disse, a frase final do texto da CEI recorre a uma imagem totalmente legítima, absolutamente preciosa, mas por si só unilateral, porque afirma uma verdade irrenunciável, que porém é e permanece sendo apenas "meia verdade": é certo lembrar que o serviço nasce da fé, e que a fé é nutrida pela vida sacramental. Mas, para a Igreja, também é verdadeiro e precioso dizer o contrário: isto é, que a Eucaristia pressupõe fé e que a fé nasce no encontro com Cristo, que se apresenta no próximo sofredor. Portanto, a liturgia e a Eucaristia não são apenas "fons", mas também "culmen" (SC 10). E, confirmando isso, quando SC apresenta os sacramentos, afirma que " Não só supõem a fé, mas também a alimentam, fortificam e exprimem por meio de palavras e coisas, razão pela qual se chamam sacramentos da fé" (SC 59).
b) O que significa, à luz dessas considerações, "liberdade de culto"? O culto cristão é certamente "ação comum". Não é "a distribuição de coisas sagradas", não é "a ação de um a que outros assistem", mas "ação comum". Por esse motivo, as perplexidades sobre as "missas em pandemia" não derivam simplesmente de "decretos externos" - que também podem ser entendidos como prejudiciais à liberdade eclesial - mas de "exigências internas", eu diria intrínsecas ao culto cristão. Habitar com uma "ação comum" uma Igreja não é o mesmo que "comprar cigarros em uma tabacaria", "correr à beira-mar" ou "fazer compras no supermercado". Nenhum desses lugares supõe uma "ação comum". Não há apenas um "impedimento externo à liberdade de culto", mas uma dificuldade intrínseca em colocar a ‘ação comum’ de escuta da palavra e de compartilhamento do pão e o cálice". Essas ações são permitidas apenas "em família". Com desconfiança não há ação comum. A palavra e o compartilhamento, por enquanto, só passarão em locais de confiança. Para usufruir do "direito ao culto" a todo custo, corremos o risco de transformar o culto em "ato individual". E corremos o risco de fazer isso ao adotar, até mesmo na Igreja, essa linguagem formal de "liberdade de culto", que é termo sacrossanto, mas vazio.
c) "Quem come minha carne e bebe meu sangue": estas são as palavras que ressoaram no evangelho proclamado hoje. Esse ato não tem nada a ver com uma "coisa". Entramos na dinâmica sacramental quando, fazendo corpo na reunião, deixando a Palavra ao Senhor, repetindo com ele a oração de bênção e reconhecendo-o ao partir o pão, nos tornamos seu corpo e seu sangue. É evidente que mesmo na "vida sacramental" o serviço e a fé não são simplesmente "consequências", mas sempre também "causas". Comer sua carne e beber seu sangue significa entrar, com a fé, em seu santo serviço: lavar os pés, tratar os doentes, hospedar os estrangeiros, perdoar os pecados, alimentar a esperança, falar o bem ao invés do mal, poder louvar, saber render graça.
d) Justamente esse "comer" a carne e "beber" o sangue não é "acessar individualmente a salvação contida em uma coisa sagrada", mas "realizar um gesto comum, despudoradamente familiar, que transforma a identidade em relação direta com o Senhor". É interessante que a "manducatio", o comer, sempre tenha permanecido, na tradição, como um ato inevitável. Mesmo a "comunhão espiritual" nunca foi "renúncia a comer", mas passagem para "comer de maneira espiritual". O que, em alguns casos, era considerado superior ao comer sacramental. Ouvir juntos a palavra e compartilhar juntos pão partido e cálice compartilhado, na fé, realiza a Igreja como discipulado de Cristo e serviço ao Evangelho nos pobres e para os pobres no Evangelho.
Uma igreja pode sofrer muito com a interrupção forçada da celebração da missa. Mas sabe que o Senhor se oferece no rito comum - por enquanto impossível para a comunidade – para estar no coração de todo homem e na vida do mundo. Com a impossibilidade de frequentar a missa, não é tirado de nós o Senhor que alimenta nossa fé e nosso serviço, mas é suspensa a linguagem mais elementar e mais poderosa para falar de sua ação no mundo e nos corações. Aquele mais parecido com a brisa leve com a qual Deus entra no mundo e na história, endireitando o que é torto e aquecendo o que é gélido. A liberdade de culto, a liberdade de exercício do culto cristão, pode encontrar, nesse "ir e vir", entre serviço e liturgia, pela fé, os seus ritmos em cada oportunidade. E não será impossível voltar a celebrar sem muitas restrições sanitárias, se, no meio tempo, tivermos alimentado a fé irrigando o que é árido e dobrando o que é rígido. Porque a liturgia não apenas nutre, mas também é nutrida. Não apenas gera, mas também é gerada. Porque o Senhor está à porta e bate não apenas "sob as espécies", mas também para aquém das espécies e para além das espécies.
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Missa, fé, carne e sangue. Liberdade de culto entre Bispos e Lutero - Instituto Humanitas Unisinos - IHU