01 Mai 2020
“Já estava nos fazendo falta algo que nos lembrasse que o corpo é um milagre, que a confiança é um tesouro, que o que merecemos deve ser merecido por todo ser humano e que esses poderes que temos despertado, as transformações que temos realizado sobre o mundo, a destruição do equilíbrio natural que esta época está operando, com a entusiástica participação de todos nós, são o grande perigo e podem estar gerando fenômenos irreparáveis”, escreve William Ospina, poeta, ensaísta e romancista colombiano, em artigo publicado por Nodal, 27-04-2020. A tradução é do Cepat.
A grande diferença entre a pandemia que agora vivemos e todas as grandes pandemias da história é que, quando ocorreram todas as anteriores, a praga justiniana, a peste bubônica ou a peste negra, a varíola, a cólera, a gripe espanhola, não havíamos alterado drasticamente o equilíbrio natural.
Não estávamos vivendo uma mudança climática tão acelerada, uma extinção tão crescente de espécies, uma destruição da biosfera tão gigantesca, uma mudança de dieta imprudente e tão insana, uma incorporação no mundo das alterações genéticas realizadas pela ciência e pela indústria tão cheia de consequências imprevisíveis.
É comum dizer: “Já vivemos outras pandemias e as superamos, depois de alguns meses, a humanidade se imuniza e tudo volta ao normal. A vida não seria possível se a espécie não tivesse essa capacidade extraordinária de lidar com ataques de vírus e bactérias, se não tivéssemos esse dom de desenvolver anticorpos, se não fôssemos capazes de alcançar outra vez a imunidade”.
E temos razão: nossa esperança não está realmente na medicina, que dificilmente pode nos ajudar a resistir, nem na ciência, que às vezes leva tanto tempo para encontrar uma vacina eficaz, como no caso da malária, nem nos governos, que a duras penas conseguem superar a tempestade e lidar com ameaças, mas na natureza, na capacidade de nosso organismo de resistir ao cerco, de superar o ataque e emergir mais forte do outro lado.
É claro que não ignoramos que existem espécies que foram extintas, que um experimento de um milhão de anos não é, em si, uma garantia de eternidade, que as espécies podem ser tão mortais como os indivíduos.
Mas se esperamos tanto da natureza, se dependemos de tal modo dela, não deveríamos crer que somos tão diferentes, não deveríamos alterá-la dessa maneira irresponsável e desafiadora. Uma espécie que necessita respirar 13 vezes por minuto, como diz a música, não deveria envenenar assim a atmosfera, cortar a esse ritmo as florestas, secar as zonas úmidas e os pântanos de maneira tão gananciosa e ignorante.
Essas condições que fizeram até agora tão possível a vida, que fizeram este planeta tão favorável à nossa saúde e, portanto, à nossa felicidade, não deveríamos arruiná-las de maneira tão estúpida.
O que aconteceria se isso que estamos vivendo se tornasse uma situação permanente? E se nos tornássemos um perigo contínuo um para o outro? Eu sinceramente acredito que não será assim. Acredito que seremos capazes de enfrentar esta crise e superar o momento alarmante.
Mas convém se perguntar repetidamente o que aconteceria se esse planeta que foi nossa alegria, que fez possíveis os quadros de Renoir e as canções de Whitman, se tornasse para sempre um nicho tóxico de clima intolerável, com pouco oxigênio, cheio de vírus cada vez mais mutantes, devorado pela ganância, enterrado pelo lixo, degradado por plásticos, envenenado por pesticidas, onde nosso organismo não fosse capaz de reagir.
Se o Sol nos queimasse, se a luz nos cegasse, se a água não fosse mais a bênção que sempre foi, se até nos tecidos a vontade de viver fosse se apagando. Sinceramente, acredito e espero que voltaremos com tranquilidade às ruas, aos abraços, às festas, aos amores, aos jantares cordiais, ao diálogo amistoso com desconhecidos, que retornemos à confiança, à desprevenção, à alegria de viver e de lutar.
Que deixaremos de contar contágios e falecimentos, de desinfetar tudo o que costumávamos tocar sem medo, que assobiaremos novamente sob os bosques e nos deitaremos na grama para olhar as nuvens, e que aprenderemos a arte esquecida de agradecer pelas coisas mais elementares, pelos saberes do corpo, para a única riqueza que é uma vida simples, afetos verdadeiros, uma civilização pela qual vale a pena viver e morrer.
Mas já estava nos fazendo falta algo que nos lembrasse que o corpo é um milagre, que a confiança é um tesouro, que o que merecemos deve ser merecido por todo ser humano e que esses poderes que temos despertado, as transformações que temos realizado sobre o mundo, a destruição do equilíbrio natural que esta época está operando, com a entusiástica participação de todos nós, são o grande perigo e podem estar gerando fenômenos irreparáveis.
O que aconteceu nesses quatro meses não é apenas um caso de saúde pública. O vírus de baixa periculosidade que nos pintaram inicialmente conseguiu afetar nossas vidas de maneira inquietadora e minuciosa. Ainda não vimos todas as suas consequências e expôs o tecido de contradições, injustiças e de paradoxos que chamávamos de normalidade.
Está nos mostrando para o bem e para o mal que tudo pode mudar da noite para o dia. Os estados e as empresas que nunca tinham como pagar bem as pessoas por trabalharem, de repente, precisam pagar-lhes para que fiquem em casa. As companhias aéreas de todo o mundo são subitamente expulsas do céu.
O petróleo cujo preço nos tiranizava e cuja combustão, ao mesmo tempo, nos movia e paralisava, se afunda no inexplicável. Democracias tão envaidecidas de si mesmas, tão legalistas e tão escrupulosas como os Estados Unidos, veem de repente seu presidente em campanha assinando como um presente pessoal os cheques do dinheiro público que são entregues aos cidadãos.
De repente, não há uma alma em Veneza, nem na Times Square, nem na Champs-Elysées, e o mundo unificado parece lembrar desconfortavelmente que depois de Roma e seu universalismo, veio a Idade Média com seus isolamentos e seus diabos de aldeia.
O mundo em que nos surpreendeu essa pandemia não é mais o mundo intacto e seguro que foi em outros tempos. As chuvas de pássaros e a morte das abelhas anunciavam como se fossem oráculos.
Não acho que alguém esteja nos punindo, mas, mesmo assim, temos que olhar em todo o planeta este mal-estar unânime como uma advertência.
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O mal-estar unânime. Artigo de William Ospina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU