30 Abril 2020
"A solução do "Deus que castiga" serve para nos dar uma explicação fácil e desresponsabilizadora que, além da aparente dureza, é na realidade confortável: nós precisamos apenas nos converter, fazer alguma penitência e Deus nos perdoará. E voltaremos felizes a saquear a natureza, poluir os rios, idolatrar o mercado e concentrar tudo sobre a produção. Como se um vírus, em vez de nos fazer eventualmente refletir sobre a relação entre nós e o mundo em que vivemos, fosse uma força escura vinda do além", escreve Francesco Cosentino, professor de teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, em artigo publicado por Settimana News, 24-04-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Durante o período de isolamento forçado da quarentena, tive a oportunidade de retornar a uma fonte que muitas vezes nutre meu caminho espiritual e teológico; mergulhei nas ricas sugestões poéticas e teológicas de Michael Paul Gallagher, jesuíta que lecionou durante anos na Universidade Gregoriana, com quem o vínculo pessoal logo foi além dos laços acadêmicos que marcavam meu ritmo de estudante.
Como fino observador dos movimentos profundos da vida e do coração humano, Gallagher nunca reduzia a teologia - e muito menos a fé - a uma série de conceitos dogmáticos frios; ele argumentava - misturando com elegância sua formação literária e a espiritualidade inaciana - que é preciso prestar atenção ao que vivemos, abrir-se à surpresa, capturar os raios da graça no vale às vezes monótono da vida cotidiana.
Assim, talvez para aproximá-los mais do público em geral, ele decidiu "traduzir" os gigantes da teologia do século XX, imaginando também monólogos em que eles davam voz ao que sua empreitada teológica procurava comunicar (M.P. Gallagher, Mappe della Fede. Dieci grandi esploratori cristiani, Vita e Pensiero, Milão 2011).
Entre esses grandes nomes, portanto, Gallagher inclui em seu texto Flannery O'Connor, a escritora estadunidense que morreu aos 39 anos e que, com suas histórias, consegue desafiar um catolicismo convencional e conformista, reduzido a uma experiência religiosa tranquilizadora, na qual Deus é preso nas malhas de definições e lugares comuns. Deus, por outro lado, é acima de tudo uma surpresa permanente, como muitas vezes repete o Papa Francisco, e O'Connor pretende narrar precisamente o "choque" causado pela graça divina ao visitar a vida cotidiana.
Gallagher coloca estas palavras na boca de O'Connor: “Ao longo dos anos, estou cada vez mais enraizada no meu catolicismo e, ao mesmo tempo, cada vez mais reticente em relação às fáceis certezas sobre Deus ... O Todo-Poderoso não pode ser encastoado nas nossas categorias intelectuais".
As palavras lembram a conhecida "teologia negativa", que afirma a importância do silêncio sobre a palavra quando estamos diante do Mistério de Deus. Não é o silêncio daqueles que não sabem ou não podem dizer, mas o assombro diante da grandeza de Deus que nunca pode ser aprisionado em palavras, raciocínios e esquemas humanos. É aquele silêncio da fé e da oração que - como afirmava Rahner - é a última palavra antes da adoração a Deus.
Bento XVI, durante uma audiência geral em 2008, nos lembrou que "podemos dizer mais facilmente o que Deus não é, o que não expressa, do que Ele realmente é"; aliás, a figura proeminente da teologia negativa, Dionísio, o Areopagita, hoje "aparece como um grande mediador no diálogo moderno entre o cristianismo e as teologias místicas da Ásia, cuja mais conhecida característica é a crença de que não se pode dizer quem seja Deus; dele só podemos falar de formas negativas”.
E assim chegamos a uma das fáceis "certezas" sobre Deus que também surgiram no seio do catolicismo - mas não somente - neste período de pandemia. Um vírus no vírus, que se espalha como fogo, muitas vezes preenchendo a falta de uma formação cristã adequada, compensando o analfabetismo bíblico e, acima de tudo, penetrando astutamente nos pântanos de uma religiosidade fundada no medo e frequentemente alimentada pela superstição. Fala-se demais de Deus nessa pandemia - ao contrário do que se afirma - e o problema é que se fala mal dele.
Assim, no colorido mercado da oferta religiosa e na bulimia das mensagens que tentam "explicar" o vírus usando as teses mais improváveis, as vozes dos pregadores evangélicos, imãs e padres católicos frequentemente destacam a velha superstição religiosa do "Deus castigador" ou da Bíblia que "o havia predito" e outras estranhas mensagens do além.
Poder-se-ia refletir bastante - e a partir do Evangelho - sobre o quanto seja falsa e anticristã é a imagem de um Deus que castiga, que, cheio de indignação e raiva, envia um vírus que lota os leitos de hospitais e frequentemente mata; um Deus que, em vez de ser o Pai da misericórdia narrado por Jesus, diverte-se causando sofrimento aos homens. Talvez faça isso por razões pedagógicas como um pai terreno poderia fazer e, por outro lado, na Bíblia às vezes se fala dos castigos de Deus; exceto considerar depois as numerosas exegeses bíblicas desses textos e, talvez, evitar ler as palavras das Escrituras literalmente e estudar o revestimento linguístico e cultural da linguagem usada por aqueles autores sagrados. E Deus, no entanto, permanece sempre maior que qualquer pai terreno e de seus critérios.
Recentemente, dediquei uma publicação sobre o tema das falsas imagens de Deus. Nomes com mais autoridade do que a minha limparam o campo do perigo de cultivar imagens desse tipo, especialmente em tempos de pandemia.
O bispo de Noto, Antonio Staglianò, afirmou no final de uma celebração eucarística: "Não acreditem naqueles que dizem queDeus castiga, não acreditem naqueles que lhes dizem que Deus está vos punindo por seus pecados, por todas as condições infelizes ... des-graças, isto é, estar fora da graça de Deus, não existem. Existem as tragédias, os dramas, os grandes sofrimentos, mas não as desgraças, porque os dramas, as tragédias e os sofrimentos estão todos dentro da Graça de um Deus da Providência... em quem vocês devem acreditar? Vocês devem acreditar em Jesus de Nazaré. E Jesus disse: Deus não é assim como vocês o estão imaginando, como o contaram para vocês. Eu vos digo que Deus é sempre e somente Amor e intervém em nossas tragédias sofrendo conosco, chorando conosco, sempre na cruz ... e, se você não for libertado da morte, certamente será libertado por Deus na morte”.
Respondendo aos leitores da Famiglia Cristiana sobre o coronavírus como castigo de Deus, o teólogo Giuseppe Lorizio concentrou-se no episódio evangélico do homem cego e na pergunta que fazem a Jesus: “Quem pecou, ele ou seus pais?”. Nessa ocasião - afirma Lorizio – “Jesus critica a teologia de seu tempo, que interpretava toda forma de sofrimento como consequência do pecado. Portanto, exclui o paradigma do castigo”. Pelo contrário, "toda circunstância, mesmo as mais dramáticas, nos são dadas para que nelas se manifeste ‘mistério do Reino de Deus’".
Lorizio afirma que, antes disso, a cura se dá a partir do encontro entre o divino e o humano, como no caso do cego de nascença: “A saliva de Jesus é o sinal do divino, do sobrenatural, que em sua humanidade se expressa, enquanto a terra, que se transforma em barro, nos fala que a cura será produzida a partir da terra, ou seja, do nosso empenho, através da inteligência e da ciência (= a pesquisa científica) e do exercício da livre vontade (= o respeito pelas regras e a solidariedade)".
Há outro episódio do evangelho em que o Papa Francisco analisou, o da torre de Siloé: “Jesus conhece a mentalidade supersticiosa de seus ouvintes e sabe que eles interpretam aquele tipo de evento de maneira errada. De fato, eles pensam que, se esses homens morreram de forma tão cruel, é um sinal de que Deus os castigou por alguma falha grave que cometeram; como se dissesse: ‘eles mereciam’ ... Jesus rejeita claramente essa visão, porque Deus não permite que as tragédias punam as culpas e afirma que aquelas pobres vítimas não eram piores que as outras. Em vez disso, ele nos convida a extrair desses fatos dolorosos um aviso que diz respeito a todos, porque somos todos pecadores... Mesmo hoje, diante de determinados infortúnios e eventos tristes, podemos ser tentados a ‘descarregar’ a responsabilidade sobre as vítimas, ou até mesmo sobre o próprio Deus. Mas o Evangelho nos convida a refletir: que ideia de Deus fizemos? Estamos realmente convencidos de que Deus é assim, ou essa seria mais uma nossa projeção, um deus feito ‘à nossa imagem e semelhança?’".
A solução do "Deus que castiga" serve para nos dar uma explicação fácil e desresponsabilizadora que, além da aparente dureza, é na realidade confortável: nós precisamos apenas nos converter, fazer alguma penitência e Deus nos perdoará. E voltaremos felizes a saquear a natureza, poluir os rios, idolatrar o mercado e concentrar tudo sobre a produção. Como se um vírus, em vez de nos fazer eventualmente refletir sobre a relação entre nós e o mundo em que vivemos, fosse uma força escura vinda do além.
A fé reduzida a religião e a religião que se torna superstição surgem com soluções fáceis e irreais para resolver enigmas diante dos quais não queremos pensar muito.
Gallagher faz Flannery O'Connor dizer: "A fé não é simplesmente um tipo de cobertor térmico. Se avançamos em direção a uma nova liberdade, chutando e gritando, é porque os lugares mais antigos e apertados parecem mais seguros e certamente custam menos”.
Talvez nem seja suficiente desmentir categoricamente essa imagem malsã de Deus. O que é necessário para a teologia e para a pregação cristãs é parar o excesso de palavras diante do mistério do mal e do sofrimento. Não encastoar Deus nos esquemas conceituais humanos e assumir a "teologia negativa" que é silenciosa e se cala porque, diante do que é maior, se coloca em escuta. Reflete e adora. E as únicas palavras que usa as faz brotar do silêncio, da oração e do constante confronto com a Palavra do Evangelho. Efetivamente, sobre Deus, continua-se a falar de "demais" e "mal".
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Falar sobre Deus. Artigo de Francesco Cosentino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU