17 Abril 2020
O Papa Francisco, no discurso proferido no dia 21 de dezembro passado à Cúria Romana por ocasião dos seus votos de Natal, concluiu as suas palavras com uma recordação do cardeal Carlo Maria Martini e se expressou assim: “O cardeal Martini, na última entrevista a poucos dias da sua morte, disse palavras que devem nos fazer interrogar: ‘A Igreja ficou 200 anos atrás. Como é que ela não se sacode? Temos medo? Medo em vez de coragem? No entanto, a fé é o fundamento da Igreja. A fé, a confiança, a coragem (...) Só o amor vence o cansaço’”.
A oito anos da morte do cardeal Carlo Maria Martini (15 de fevereiro de 1927 - 31 de agosto de 2012), dirigimo-nos ao cardeal Francesco Coccopalmerio, para que nos ofereça uma recordação pessoal dele.
A reportagem é de Lorenzo Prezzi, publicada por Settimana News, 13-04-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O senhor foi um colaborador próximo do cardeal Martini por nada menos do que 22 anos. Peço que faça uma breve recordação dele aos nossos leitores.
Faço-o com muito entusiasmo, mesmo que comemorar o venerado cardeal Martini de modo verdadeiramente satisfatório é uma obra impossível. Como recordar e avaliar todos os variados aspectos da sua pessoa e do seu ministério? Como, por exemplo, ler e dominar a sua imensa produção literária, espiritual e pastoral? E – lembremo-nos – o grande cardeal Martini se revelou, de fato, não apenas como arcebispo da grande Diocese de Milão, mas também como pastor de fôlego de nível universal.
No entanto, enfrentarei o impossível, limitando o meu discurso a alguns dos múltiplos elementos, ou seja, aos traços salientes que trago mais fortemente na minha memória e, sobretudo, no coração, recordando em extrema síntese os nada menos do que 22 anos, nos quais fui – certamente por uma graça do Senhor – colaborador do cardeal Martini.
Qual é, portanto, o primeiro dos traços salientes que pretende nos apresentar?
A dimensão contemplativa da vida. Esse foi o título da primeira carta pastoral do novo arcebispo à Diocese de Milão, datada de 8 de setembro de 1980. Por que começo a partir daqui a minha recordação de Martini? Não apenas e não certamente porque esse documento foi um dos primeiros atos em sentido cronológico, mas também e sobretudo porque, pelo menos de algum modo, está contido nessa carta pastoral o Martini que, depois, revelará a si mesmo nas inumeráveis realizações pastorais. Está contido o Martini – digamos assim – completo, embora apenas “em germe”.
Por que isso?
Martini se identifica com a sua espiritualidade, com a sua relação com o Senhor Jesus, isto é, precisamente, com a sua “dimensão contemplativa da vida”. É do contemplativo Martini que vem o pastor Martini. De fato, ninguém dá o que não tem. Martini tem Jesus, e Martini dá Jesus.
Como esse primeiro ato do novo arcebispo de Milão foi acolhido?
Lembro-me de que a escolha do tema “A dimensão contemplativa da vida” causou uma certa impressão, despertou alguma surpresa, ou seja, uma interrogação espontânea, compreensível particularmente na ativa Milão e no animado presbitério: mas como? O novo arcebispo deveria nos apresentar um plano pastoral, cheio de iniciativas e de obras, e, em vez disso, diz a todos: “Paremos, reflitamos, rezemos acima de tudo, coloquemos o Senhor Jesus no centro da nossa vida e deixemos que ele tome posse de nós”.
Como se justifica essa escolha pastoral?
Na carta pastoral da qual começamos, o autor mostra a sua profunda convicção de que é apenas a interioridade, é apenas a relação da pessoa com o Senhor Jesus que determina a capacidade de ação. Daí a essencialidade da oração, e da oração contemplativa. E Martini valoriza de modo peculiar, entre as várias formas de oração contemplativa, a da adoração ao Santíssimo Sacramento. Cito um breve texto: “... certamente deve ser revalorizada a oração adorante ligada à Comunhão e diante do Santíssimo Sacramento” (n. V).
Da contemplação, portanto, à ação. Cito mais uma passagem: “(Com a oração contemplativa) o coração se abre para a dimensão do Reino e para as suas realizações ecumênicas e missionárias. Nesse quadro geral da oração cristã, seus vários aspectos tomam seu lugar apropriado: o litúrgico-sacramental, o pessoal e o comunitário, o do coração e o dos lábios, o do silêncio voltado à escuta e o da vigilante aplicação daquilo que foi ouvido no tecido histórico cotidiano. Portanto, não é possível colher o fruto específico da Eucaristia, que é a caridade, sem andar na vida da fé e da esperança. Mas isso pressupõe um exercício constante de escuta silenciosa da Palavra de Deus e de abandono confiante ao seu plano de salvação” (n. III,3).
Quando se pensa em Martini e em uma de suas peculiaridades, talvez a mais evidente, de algum modo conectada com a dimensão contemplativa da vida, seja imediatamente a sua fé na Sagrada Escritura, a sua paixão pela Sagrada Escritura e, portanto, todo o compromisso que ele assumiu para inculcar no povo de Deus uma igual fé e paixão. O que pode nos dizer sobre esse aspecto importante?
Uma das iniciativas desde o início do seu ministério foi propor a lectio divina aos jovens na catedral. Foi um acontecimento que impressionou a todos: estavam presentes milhares de jovens, com a intenção não apenas de ouvir, mas também de fazer anotações, para não perder nada.
O que mais me impressionou no ensinamento de Martini sobre a Sagrada Escritura foi isto: quando você lê ou ouve a Sagrada Escritura, é Deus mesmo, é Jesus mesmo que está falando com você. Essa é a diferença entre a lectio da Bíblia e a leitura normal, por mais rica em frutos, de qualquer outro livro: no primeiro caso, de fato, é Deus mesmo quem está falando com você, razão pela qual usamos a expressão, tão extraordinariamente significativa, de lectio divina.
E, a partir do ensinamento de Martini sobre a centralidade da Sagrada Escritura, também chegaram à Igreja novidades operacionais de excepcional importância pastoral. Basta pensar nos grupos do Evangelho, ou como podem se chamar oportunamente, nos quais os fiéis praticam, em comunidade e com grande frequência, a lectio da Sagrada Escritura. Basta pensar na redescoberta do papel do leitor na liturgia, especialmente na eucarística, razão pela qual quem proclama a palavra de Deus na liturgia adquiriu a consciência de que, precisamente através dele, quem fala é o próprio Jesus. Mas, acima de tudo, o povo de Deus recuperou uma renovada e geral percepção de que a Sagrada Escritura existe, deve ser conhecida e também, obviamente, frequentada, especialmente ouvida na liturgia, onde – como disse – é o próprio Jesus quem fala (Sacrosanctum concilium, n. 7). Até mesmo o fiel menos preparado parece perceber tudo isso.
Lembro-me de uma vez que eu lhe disse: “Eminência, serei sempre grato ao senhor, porque, nestes anos, permitiu-me redescobrir a Palavra de Deus, a sua centralidade na vida e, portanto, acostumou-me a frequentar a Sagrada Escritura”. Ao que ele respondeu, parece-me, mais ou menos assim: “Se eu tivesse feito só isso em Milão e tivesse feito por você, teria feito um bom ministério”.
Outra iniciativa pastoral que, com justiça, ficou famosa foi a chamada “Cátedra dos não crentes”. O que pode nos dizer sobre essa iniciativa?
Na primeira carta pastoral, encontramos uma afirmação interessante sobre o amor ao silêncio e, portanto, sobre a oração contemplativa: “O homem velho, que tem medo do silêncio, e o homem novo geralmente convivem, em proporções diferentes, em cada um de nós” (n. II,1). A frase é reveladora. E, com efeito, Martini sempre sentiu, precisamente dentro de si, a copresença do velho e do novo, do mau e do bom, do crente e do não crente. E não sufocou, por assim dizer, este último. Mas o respeitou, deixou-o viver, permitiu-lhe falar. E o não crente pôde, assim, apresentar as suas razões. Às quais o crente teve que dar respostas. E assim se exercitou e, portanto, se fortaleceu. De fato, ele desenvolveu as suas potencialidades de reflexão.
O arcebispo fez essa estrutura do seu íntimo, da sua espiritualidade, digamos assim, sair de si mesmo, deu-lhe um corpo, comunicou-a aos outros. E criou aquela iniciativa, que impressionou, causou perplexidade. Quero falar, precisamente, da “Cátedra dos não-crentes”. Na qual – observe-se bem – não se fala da resposta dada aos não crentes, mas se indica o ensinamento dado pelos não crentes. É o não crente que é posto na cátedra. No sentido de que o não crente, que está em cada um de nós ou ao nosso redor, deve poder dar as razões da sua posição. Martini dizia: “Não tenho medo de quem não crê, mas sim de quem não pensa”. E um pouco provocativamente: “Não quero pessoas crentes, mas quero pessoas pensantes”.
Hoje fala-se muito de diálogo, em todos os níveis. A “Cátedra dos não crentes”, sem dúvida, é um exemplo eloquente de diálogo. O que pensa a esse respeito?
O diálogo pressupõe, como é óbvio, dois movimentos: falar e ouvir. Quanto mais fácil é falar, mais difícil é ouvir, não como escuta física, mas sim como escuta verdadeira, isto é, não formal, portanto realmente interessada em conhecer a mensagem do outro, a sua identidade, os seus valores. Ora, a posição de Martini de colocar até mesmo na cátedra quem não crê é uma expressão emblemática, eu diria até uma expressão limite, dessa escuta verdadeira, ou seja, não formal, portanto verdadeiramente interessada em conhecer o pensamento do outro.
A objeção é fácil: mas, então, esse interesse no pensamento do não crente, precisamente como interesse, não significa, talvez, que eu questiono a minha identidade de fiel? Se eu preciso conhecer o pensamento do outro, isto é, precisamente do não crente, isso não significa, talvez, que a minha fé vacila, que ela não me basta mais, que eu não estou certo dela, que estou em busca de outras verdades?
A resposta de Martini seria esta: por um lado, sou crente e estou seguro da minha fé e, por isso, não quero renunciar à minha fé; por outro, sei que em todos, até mesmo no não crente, há dons de intuição, há dons de conhecimento, e isso também pode enriquecer a minha fé.
Essa é uma resposta que nos apresenta outro claro elemento do requintado cavalheirismo do cardeal Martini: o respeito ou, melhor, a estima por cada pessoa e por cada posição, respeito e estima que, como é óbvio, são uma das raízes do diálogo. Mas, até para além do diálogo, são uma aceitação da pessoa, são amor pela pessoa, são valorização da pessoa e de cada pessoa. Imediatamente vem à mente aquilo que o profeta Isaías coloca na boca de Deus em relação ao povo de Israel e, portanto, de cada pessoa: “Porque és precioso para mim, és digno de estima, e eu te amo” (Is 43,4). Assim foi também o estilo de Martini. Ele disse a todos as mesmas palavras do profeta: tu és precioso, és digno de estima, por isso te procuro, por isso te ouço, por isso dialogo contigo.
Lembro que, em uma ocasião, o senhor disse, parafraseando um famoso ditado de Dom Bosco sobre a educação, que o ecumenismo é uma coisa do coração. Qual era a posição de Martini em relação ao ecumenismo?
Estou plenamente convencido de que o ecumenismo ou é uma paixão ou não é nada, ou toma o seu coração, e então você se compromete realmente, ou deixa você insensível, e então você permanece inativo.
O cardeal Martini considerava o ecumenismo uma coisa do coração, tinha paixão por ele. E, assim, trabalhar e rezar pela conquista da comunhão plena entre todas as Igrejas cristãs eram uma ansiedade apostólica para ele.
O ecumenismo do cardeal foi, sem dúvida, um ecumenismo de eficiência, de projetos, de realizações. Não se pode dizer tudo aqui. Pensemos nas estruturas diocesanas, de alguma forma novas ou, no mínimo, potencializadas, como o Escritório da Cúria e, ao mesmo tempo, a Comissão Diocesana para o Ecumenismo e o Diálogo Inter-Religioso, pensemos na iniciativa dos congressos, nos representantes das Igrejas cristãs visitados e recebidos, na amizade com várias personalidades, por exemplo o Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu I, ou o Patriarca de Moscou, Alexey II, amizades que nos permitiram, depois, fazer visitas memoráveis, como a Halki e a da delegação em Kostroma. Um ecumenismo, portanto, certamente de eficiência.
Mas, acima de tudo, um ecumenismo – como podemos dizer? – de clima, de atmosfera, no sentido de amizade, substanciada por estima, por amor, por nobre respeito pelos irmãos cristãos não católicos. Por obra do arcebispo Martini, respirou-se em Milão um ar de calorosa amizade entre as várias Igrejas cristãs (18 delas estão presentes).
E, a partir desse clima de casa, nasceu maravilhosamente em 1991 um autêntico, digamos, prodígio ecumênico: o Conselho das Igrejas Cristãs presentes na cidade de Milão, uma verdadeira casa ou família para todos os cristãos da região, lugar de encontro mensal, de debate e de diálogo fraterno. E, a esse propósito, não podemos deixar de lembrar, com uma admiração sempre renovada, a peregrinação à Terra Santa em 2004 de todas as Igrejas cristãs pertencentes ao mencionado Conselho, com a participação do então arcebispo, o cardeal Dionigi Tettamanzi.
Entre as mensagens mais preciosas que o cardeal Martini nos deixou, podemos considerar certamente o amor pelo povo de Israel. O senhor pôde constatar essa qualidade de Martini?
Pude constatar em muitas ocasiões a relação do cardeal Martini com o povo de Israel. Ele nos testemunhou o seu grande amor pelo povo de Israel com a sua palavra e com o seu exemplo. O seu testemunho se apoia sobre bases escriturísticas e teológicas claras e seguras. É espontânea a referência a Rm 9-11, onde Paulo, ao contrário do que parece ser a uma impressão imediata e superficial, não conduz um discurso contrário ao povo judeu, mas testemunha, por um lado, os seus sentimentos de transbordante paixão, de amor e de dor, e expressa, por outro lado, a sua visão histórico-teológica de plena valorização e de completa reaquisição do povo de Deus que também é o seu povo.
Ora, o cardeal Martini insistiu convictamente em alguns pontos doutrinais, que já estão profundamente impressos na mente e no coração. O primeiro ponto do qual decorrem todos os outros: o povo de Israel é o povo das promessas divinas nunca revogadas, “porque os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis” (Rm 11,29).
Disso deriva logicamente a já clara falsidade da chamada doutrina da substituição, segundo a qual a Igreja, novo povo de Deus, teria substituído Israel, anterior povo de Deus. Nada de substituição e, sobretudo, nada de possibilidade de tal substituição. Nós, cristãos, dizemos com convicção, mas com humildade, que a Igreja é o povo de Deus ou é o novo povo de Deus. Mas rejeitamos com igual convicção o fato de considerar que o povo de Israel não é mais o povo de Deus. O povo de Israel era antigamente, é atualmente e será sempre o povo de Deus.
Se é assim, podemos afirmar, com fundamento, que existem e continuarão existindo dois povos de Deus. E, ao mesmo tempo, podemos nos perguntar como entender corretamente a relação entre os dois povos. Paulo nos indica isso: o povo de Israel é a oliveira boa, é a raiz santa, sobre a qual, depois, foi enxertada a oliveira selvagem, ou seja, precisamente, o novo povo de Deus.
Porém, notamos com muita atenção que o que dissemos é afirmado por nós, cristãos. No entanto, não podemos fingir que a mesma visão seja igualmente aceita pelo povo de Israel. No entanto, nós, cristãos, a apresentamos a eles com humildade e pedimos que eles nos compreendam e nos aceitem.
Confiando nessa compreensão, é importante agora que os dois povos de Deus possam ser amigos, possam se conhecer e se amar, se respeitar e se acolher na sua diversidade, valorizando os elementos comuns. Parece ser imediatamente ilógico e inaceitável qualquer desejo ou, pior, qualquer tentativa de converter os judeus à fé cristã. É igualmente ilógico e absolutamente inaceitável o hábito, infelizmente generalizado, de qualificar a relação da religião cristã com a religião judaica como uma relação com outra religião, assim como a relação com a religião islâmica ou com outras religiões presentes no mundo.
Em suma, que os dois povos de Deus possam caminhar juntos, lado a lado, ou até de mãos dadas, rumo a um ômega final, que, para os judeus, será o advento do Messias e, para os cristãos, será o retorno de Cristo. Serão a mesma Pessoa? A resposta parece evidente, pelo menos para a fé cristã. Tudo isso, e ainda mais e certamente melhor, nos foi ensinado pelo cardeal Martini, abrindo a nossa mente e o coração para os irmãos mais velhos, para os irmãos judeus.
Essa relação entre o cardeal Martini e o povo de Israel se traduziu, depois, em algumas iniciativas concretas?
Certamente, porque, desde a época de Martini, as relações entre cristãos e judeus floresceram enormemente, particularmente em Milão. Não podemos esquecer a bênção recíproca que o rabino Laras e o cardeal Martini, há muito tempo grandes amigos, deram um ao outro alguns dias antes da morte do cardeal em Gallarate, a oração da comunidade judaica sob os pórticos da Cúria no dia do seu funeral. Mas, antes ainda, entre os muitos episódios de fraternidade, podemos lembrar as várias vezes em que os cristãos de Milão foram convidados a rezar na Sinagoga Central.
E digamos que, nesse sentido, ocorreu um milagre: precisamente para honrar a memória do falecido cardeal Martini, com a plantação de uma floresta na Terra Santa, implementando uma ideia do rabino Laras, uma delegação especial de 100 pessoas fez uma peregrinação a Israel. O milagre que mencionei consistiu nisto: talvez pela primeira vez, pelo menos nos tempos modernos, a peregrinação era composta por judeus junto com cristãos, por representantes dos dois povos. Eles viajaram juntos e rezaram juntos. Viajaram juntos, e eu lembro que, nos dois ônibus à nossa disposição em Jerusalém, estava escrito assim: “Judeus e cristãos viajam juntos”. E, acima de tudo, os representantes dos dois povos rezaram juntos: um dia no Muro das Lamentações, com a oração e às vezes com o canto dos Salmos chamados “da subida”, e, em uma sexta-feira à noite, na sinagoga, para celebrar a abertura do Shabbat.
Fale-nos ainda sobre algum outro aspecto, talvez mais pessoal, na recordação do cardeal Martini.
Sim, eu poderia falar de muitos outros aspectos, particularmente significativos ou até emocionantes, do querido cardeal, como o seu desejo, apenas parcialmente realizado, de se estabelecer definitivamente em Jerusalém, ou a experiência da dolorosa doença, especialmente pela perda da voz, e isso justamente para ele que havia feito da fala a sua principal missão, ou, finalmente, a denúncia clarividente e não desprovida de coragem de certos defeitos da Igreja, com a proposta de mudanças significativas, que lhe provocaram muitas reações, sinceramente fontes de sofrimento. E aqui podemos lembrar o seu lema episcopal: “Pro veritate adversa diligere” (Por amor à verdade, amar as contrariedades).
Eu poderia dizer uma palavra relativa ao sínodo diocesano, o 47º dessa série, em que eu fui, como bispo auxiliar e perito em direito canônico, um dos principais colaboradores. Eu poderia falar das relações de Martini com a comunidade civil e dos famosos discursos à cidade na véspera da solenidade de Santo Ambrósio. Poderia lembrar o seu compromisso com o diálogo com os representantes das outras religiões, especialmente com o islamismo. Mas tudo isso exigiria muito tempo.
Mas, no fim, algo ainda mais pessoal?
Quero, sim, acrescentar um pensamento e, acima de tudo, uma agradável recordação do sentimento de amizade no cardeal Martini. Às vezes, alguns percebiam uma certa reserva nas suas relações pessoais: “Ele é um pouco frio, fica um pouco na sua”... É verdade: o cardeal Martini não era facilmente expansivo. Apesar dessa aparência, ele tinha um coração caloroso, cheio de afeto, talvez um pouco atormentado, sinal da complexa sensibilidade. Ele tinha um coração de amizade. Bastava ver como ele olhava para você. Parecia lhe dizer: “Você é importante para mim”.
Ele demonstrou essa amizade para muitas pessoas. Especialmente para os seus padres. Começando pelos alunos do seminário. Ele queria conhecer diretamente aqueles aos quais em breve imporia as mãos para consagrá-los padres. Todos nos lembramos do período de convivência que, no palácio arcebispal, ele oferecia aos diáconos perto da ordenação sacerdotal. E sabemos quantos padres encontraram nele o refúgio em situações de crise.
Posso dizer o mesmo também no que me diz respeito. Posso testemunhar que o arcebispo gostava de mim, era meu amigo. Especialmente nos momentos difíceis. Eu pude confiar. Confidenciei-lhe tudo. E ele me acolheu. E me deu força.
Lembro que, em Roma, às vezes íamos jantar juntos em um restaurante perto do Santuário do Divino Amor. E ele também se confidenciava comigo. Não posso esquecer aquela vez (estávamos no carro, eu dirigia, e ele estava sentado ao meu lado) em que ele me disse: “Veja, eu sou uma pessoa frágil, tanto física quanto psicologicamente”. Eu não soube exatamente o que objetar, mas me ocorreu dizer: “Se o senhor, eminência, é o que diz, o que será dos outros?”. No entanto, aquela confiança era um sinal claro da sua humildade e sinceridade.
E uma palavra conclusiva?
Como poderia concluir dizendo uma palavra global sobre o grande e venerado cardeal Carlo Maria Mattini? Tento fazer isso, embora ache muito difícil. Recorro a uma imagem. Lembram-se de que os santos são retratados, pelo menos normalmente, com um círculo de luz ao redor da cabeça, um círculo de luz chamado auréola? O que significa esse sinal? Parece-me que significa algo misterioso e belo que se encontra dentro do santo e brilha para fora dele. Não é algo que vem de fora, mas algo que provém de dentro. Também há uma mesma luz – vocês já podem ter notado às vezes – nos olhos ou no sorriso de uma pessoa.
Ora, parece-me que no cardeal Martini também havia essa luz que provinha do seu interior e nos testemunhava algo precioso. Era algo grande, algo muito belo. E era algo misterioso. Eu o vejo agora – na recordação que tenho dele – como se ele percebesse o mistério, o mistério de Jesus e do paraíso, e ficasse fascinado por isso e, ao mesmo tempo, intimidado, contente e problematizado, um pouco encantado e um pouco assustado. Eu me pergunto se o conjunto desses sentimentos pode ser chamado de temor de Deus. Talvez sim. Ou se pode ser lembrada a bem-aventurança dos mitos. Talvez sim. E, então, talvez, se consiga entender por que os mansos herdarão a terra, no sentido traduzido dos corações dos homens. Eu acho que esse foi o caso de Martini.
E também vem à mente a humildade, a condição pela qual Nossa Senhora é admirada por todos e é chamada de bendita por todas as pessoas de todos os tempos. E isso certamente também vale para todos aqueles que, de geração em geração, temem o Senhor, portanto também ao cardeal Martini.
Talvez tudo isso torne a pessoa de Martini e a recordação comovida dele tão repletas de misteriosa doçura. E é provavelmente esse sentimento que muitos fiéis sentem por ele, e é por esse motivo que há inúmeras pessoas que vão rezar todos os dias na Catedral de Milão, no seu túmulo.
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Um testemunho do cardeal Martini. Entrevista com Francesco Coccopalmerio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU