04 Março 2020
Javier Melloni (Barcelona, 1962) é considerado o paradigma do místico de nossa época. Teólogo, antropólogo, escritor de sucesso, meditador, verso solto. Existem muitos rótulos que cabem nele, mas fica com “um projeto de ser humano e irmão”. No último final de semana de janeiro, Melloni participou do VIII Fórum de Espiritualidade da Universidade Popular de Logroño, com todos os ingressos esgotados e um público de mais de 1.200 pessoas que ouviram em silêncio reverencial suas palavras sobre a dimensão contemplativa do ser humano.
Enquanto fala, seu olhar se levanta para as cavidades vermelhas da Serra da Cantábria, que marcam a paisagem desta entrevista. Expressa-se tanto com as mãos como com a garganta e seu discurso é intenso, soa honesto e corajoso. Tanto que, em certos momentos, o interlocutor teme que sua sinceridade possa colocá-lo em algum aperto.
Defensor apaixonado do diálogo inter-religioso, não se esquiva de nenhum assunto polêmico. Pode-se dizer que quase vai ao seu encontro. A dimensão sexual dos sacerdotes, o machismo na Igreja, a crise dos fiéis e a nova espiritualidade, tudo parece pertinente a esse jesuíta que reside nas margens de uma instituição questionada.
A entrevista é de Macarena Gutiérrez, publicada por La Razón, 27-02-2020. A tradução é do Cepat.
Muitos definem você como um místico do século XXI. O que isso significa?
Oxalá! Meu desejo é caminhar nessa direção, embora os rótulos sejam muito perigosos porque geram ego e idealização por parte dos outros. Acredito que ser místico significa viver em um estado de abertura, entender que tudo é um sinal de outra coisa. Não ficar com a primeira coisa que aparece, porque tudo é transparência velada de algo mais profundo que está se manifestando.
É mais difícil ser místico, hoje em dia, com tantos estímulos externos?
Cada lugar e cada época tem suas dificuldades para viver na verdade. Sem dúvida, o grande presente do século XXI é a liberdade, a amplitude da visão. Um místico de outrora teve muito mais dificuldade, estava mais limitado e vigiado. Ao contrário, o perigo de nossa época é o imediatismo, a distração, a excessiva facilidade.
Você não tem um celular, por exemplo.
Efetivamente. Decidi não me expor ao que seria uma fonte contínua de dispersão que me impediria de estar presente aqui e agora.
Entre os desafios da Igreja sempre aparece o machismo e o papel das freiras, que fica relegado a um segundo ou terceiro plano.
Na Igreja, existe uma idealização da mãe transferida para a Virgem Maria e uma clara submissão e insignificância da mulher. Parece que amando a mãe se substitui o papel da companheira. Por um lado, você se infantiliza, porque se torna submisso e, por outro, torna-se poderoso.
E se a mulher não é mãe?
Então, é perigosa.
Os casos de pedofilia na Igreja estão relacionados com a negação da dimensão sexual nos sacerdotes?
Acho que é um resultado quase inevitável. Como não conhecemos, nem atendemos nossa dimensão afetivo-sexual, não podemos identificar, nem dar nome ou explicar o que acontece aí. Trata-se de uma sombra pessoal, mas, sobretudo, institucional. A Igreja não sabe como lidar com isso. É a culpabilidade da ignorância, embora, é claro, o desconhecimento não exime você da responsabilidade.
Compreende-se o aborrecimento da sociedade civil, porque a Igreja é uma instância moral e espiritual que deveria ter um profundo conhecimento de tudo o que é importante para o ser humano. João Paulo II, herdeiro de Paulo VI, dizia uma expressão que deveria nos comprometer mais: “A Igreja deve ser especialista em Humanidade”. Temo que estejamos longe disso em muitos aspectos.
Resolveria algo se o celibato fosse opcional?
Não sei se muito. Não acredito que seja causa-efeito, mas, sim, seria importante desbloquear uma dimensão natural do ser humano que amputamos e com a qual ficamos obcecados por causa desse mesmo bloqueio.
Qual é a explicação histórica desse obscurantismo, se é que há?
O domínio. O instinto sexual contém um potencial de relação e de liberdade que as sociedades hierárquicas e patriarcais temem e que por isso controlam. Nas sociedades mais matriarcais, a sexualidade é vivida com mais naturalidade. Como sempre, o mais sublime pode se tornar o mais perverso, ao final, nega-se uma coisa e outra.
Acredita que você e eu veremos uma freira presidir uma missa ou um padre casado e com filhos?
As celebrações tal como as conhecemos estão acabando. A prática dominical está diminuindo e tanto os sacerdotes como os fiéis estão envelhecendo. É preciso abrir passagem para novas formas. Em alguns lugares já se começa a viver isso, como se vislumbrou no Sínodo da Amazônia, ainda que o documento final não pôde refleti-lo. Parece que a Igreja ainda não está madura para dar esse passo.
O que diria a alguém agnóstico ou ateu que quer ter uma vida espiritual?
Em primeiro lugar, que é fundamental distinguir entre a dimensão espiritual e uma confissão religiosa. Há transcendência para além da religião. Cada um precisa saber como nutrir essa dimensão. Há pessoas que são mais sensíveis ao contato com a natureza, outras com a arte. Eu diria a você: escute a si mesmo, perceba o que está mais em sintonia com você e entregue-se a isso, porque é a via para ir além de si mesmo, através de si mesmo.
Que componente lhe parece essencial para a felicidade, se você pudesse ficar com apenas um?
Sem dúvida, o agradecimento. Permite-nos estar cheios e vazios ao mesmo tempo. A pessoa agradecida precisa de muito pouco e está cheia de tudo.
É assim que se aterrissa?
Sendo consciente de que tudo o que vivemos nos é dado, não arrebatado. É preciso passar da conquista para a receptividade. Recebemos continuamente do nosso entorno muito mais do que poderíamos conseguir com as nossas conquistas. Viver a partir da gratidão muda tudo. Construímos uma sociedade muito competitiva, baseada na batalha contínua, na contínua defesa do eu, etc., onde a gratidão é vista como uma fraqueza, quando é o contrário.
Vivemos ou muito angustiados, em uma corrida para a frente, porque não percebemos o que já temos, ou então atrasando-nos, com remorsos e culpabilidade pelo que aconteceu. E o que há no centro? Gratidão e a força do presente. Nós mesmos nos fragilizamos pensando que nos falta algo.
Como consegue estar presente no presente?
Busco preservar três momentos de meditação diários. Se não os faço, percebo. Se não medito um dia, sinto-me mais irritado, desconfiado. E caso se prolonga por mais dias, todos os que convivem comigo notam. O silêncio oferece espaço e capacidade de escuta. As múltiplas transições que vivemos ao longo do dia também são muito importantes: agradecer por todas as coisas que terminamos e venerar todas as coisas que começamos.
O que se transformou em você, em relação ao tempo que esteve na Índia?
Muitas coisas me fascinaram. A visão limpa das pessoas, os indianos olham para o seu rosto, ao passo que no Ocidente até uma criança pequena, na sequência, desvia o olhar. Lá eu saía para a rua para ser batizado pela visão das pessoas, por esse reconhecimento mútuo que era como celebrar a existência do outro. “Namastê” significa que me curvo à presença divina que há em você. Nós seríamos capazes de dizer o mesmo? Não aceitar a pluralidade de acesso a Deus ou à plenitude é escassez mental, falta de generosidade.
Como começou seu caminho espiritual?
Com uma explosão de amor aos 14 anos, após receber a Eucaristia. Era o Dia de Todos os Santos. Tudo se converteu em amor, na presença incandescente de Deus. Naquele momento, entreguei-lhe minha vida. Desejei ser combustível para semelhante fogo. Essa experiência me marcou para sempre. Foi uma antecipação do final.
Considera-se uma pessoa incômoda para a Igreja?
Provavelmente para alguns, sim, e para outros não. Muitos me agradecem por dizer coisas que não podem expressar e que faça isso com respeito, e mais, com amor, em favor de todos e não contra alguém.
Como se explica que as igrejas fiquem vazias, se há tanta sede espiritual?
Existe uma rejeição à religião, mas, por outro lado, ocorre uma emergência da busca espiritual. É um anseio que vem da condição humana. Temos sede de Deus, assim como temos sede de água. Não podemos ter sede de algo que não existe. Em um momento em que tudo se desmorona e em que caíram todos os referenciais exteriores, há necessidade de voltar ao lar primordial: passar das seguranças às certezas.
Que referenciais caíram?
As garantias absolutas de que algo exterior resolverá o desafio de ser você mesmo, de responder na verdade ao que você, fiel e finalmente, é. Os coletivos humanos tiveram alguns referenciais que funcionaram bem, durante um tempo, mas a globalização está acabando com grande parte deles.
Quando a Igreja perdeu o impulso com a sua paróquia? O que fez mal?
Trata-se muito mais de uma questão de adequação e processos. Um embrião fica durante nove meses no ventre de sua mãe e nesse tempo cresce na matriz. Quando esse período passa, se não sai do útero, asfixia-se e, além disso, mata a sua mãe. Acredito, sinceramente, que as religiões milenares são matrizes que deram o que tinham que dar. Já não são mães, são avós.
Em um momento em que o Ocidente verteu para fora, precisamos de um complemento que nos leve para dentro e as religiões orientais fornecem justamente isso. A religião está passando de propor as coisas a golpe de obrigação e de vontade para agir com liberdade e com consciência. A mudança está acontecendo sozinha. Caso seja muito organizada, voltaríamos a cair no mesmo: a tentação do controle.
A carta dos bispos contra as novas formas de espiritualidade no seio da Igreja, como a meditação zen, não pareceu integração precisamente.
Dá-se a partir do medo, por isso é incompleta.
A partir do desconhecimento também?
O medo vem do desconhecimento e de referências de pessoas a quem essas propostas não caem bem. É que nem todos os caminhos são para todos. Houve uma resposta muito serena de Pablo D’Ors, Ana María Schlüter e Berta Meneses contando que sua experiência foi outra, fazendo ver que a meditação silenciosa não causou a alienação de Deus, nem qualquer mal-estar, mas, ao contrário, ajudou as pessoas a crescerem.
Você não respondeu. Você não se sentiu mencionado?
Um pouco sim, embora se refiram principalmente ao zen e eu não o pratico. Entendo o que os bispos querem advertir e concordo que apontem certos perigos, como o autocentrismo e o esquecimento da alteridade, mas lamento que se mencione apenas a parte conflitante. Muitas pessoas redescobriram o cristianismo graças à submersão no Oriente. Retornou à Igreja, redescobriu sua fé, que estava obstruída, com um novo sabor.
Zen e cristianismo são compatíveis?
Claro que sim. É verdade, no entanto, que o zen é uma prática de meditação que contém por trás todo um marco religioso, o budismo. Isso cria um conflito em um momento do caminho, mas esse conflito ajuda a crescer. Espera-se sabedoria e profundidade da hierarquia da Igreja, não repreensões e advertências que nos apequenam e infantilizam.
A beleza da vida são os desafios e matizes. Se acreditamos verdadeiramente que Deus abrange e contém tudo, por que temer que exploremos? A Igreja não é um clube que precisa de sócios para que contribuam com taxas.
O que é meditação para você?
Na realidade, a meditação é tornar silenciosa a oração. E o que você faz senão meditar após a comunhão? Isso se sintoniza com a oração e a contemplação, porque há momentos em que você não sabe se está orando, meditando ou contemplando. São palavras de uma mesma constelação que fluem entre elas e, sobretudo, para Deus, que está na profundidade do silêncio.
Acredita que a Igreja monopolizou Deus?
A Igreja, quem é? Igreja somos todos.
Refiro-me ao Vaticano.
Bom, o Vaticano surgiu para sustentar a civilização que caiu com o Império Romano e, de fato, as paróquias e as dioceses são distribuições territoriais daquele império. Portanto, não era tanto a ambição de poder, mas o desejo de dar continuidade a uma civilização. É verdade que os Papas medievais e renascentistas foram soberanos e foram acumulando riquezas e agora não sabemos o que fazer com elas.
Espero que um dia possamos deixar o Vaticano para a Unesco, para o Patrimônio da Humanidade ou para quem quer que seja e que o Papa vá viver em um lugar mais simples, como Francisco tentou. O prestígio da Igreja não vem da Capela Sistina, mas em viver de verdade o Evangelho.
Entendo que é favorável a Francisco.
Abriu as portas, as janelas, entrou o ar fresco. Já não nos olhamos tanto. Já não olhamos tanto para nós mesmos. Para isso, é necessária uma organização, sem dúvida, mas quando a Igreja está muito pendente de si própria, é sinal letal de narcisismo.
...que é a doença de nossos dias.
Sim, a Igreja tem sido muito narcisista, mas, graças a Deus, agora temos um Papa que não é.
E isso cria tensões.
Claro. Quando você questiona um narcisista, fica nervoso. Não consegue perceber que, na realidade, está sendo libertado, porque o narcisismo é uma terrível prisão. Mas como nos adaptamos a tudo, em nossa própria prisão nos sentimos mais confortáveis do que na intempérie. Quando atravessamos esse limite, há ressurreição. Na fé cristã está o dinamismo próprio da vida: sempre estamos morrendo para o que conhecemos, para nascer para o que desconhecemos. No meio, é preciso se soltar. Se não age assim, a resistência torna o processo muito mais difícil.
Quem você admira?
Dentro da tradição cristã, o Padre Arrupe e Pedro Casaldáliga. Ao primeiro porque não teve nostalgia do passado, mas, sim, do futuro; e ao segundo, por sua fidelidade aos deserdados do Brasil, à custa de arriscar sua vida. De outras tradições, a Gandhi e ao Dalai Lama, ambos por seu compromisso radical com a não-violência. No ashram (comunidade) de Gandhi, velava-se para que nem sequer o menor dos pensamentos pudesse ofender a seus adversários e o Dalai Lama jamais falou mal dos chineses, os invasores e destruidores de seu país. Nenhum insulto, nenhuma vexação.
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“Na Igreja há uma clara submissão e insignificância das mulheres”. Entrevista com o jesuíta Javier Melloni - Instituto Humanitas Unisinos - IHU