04 Março 2020
"Sobre a tortura como instrumento da política ainda não há registros fortes, mas cenas recentes das redes sociais têm exibido a prática desse método em abordagens policiais carregadas de racismo, homofobia, misoginia e hostilidade de classe, de todo modo nutrido pelos discursos de altas autoridades que não ocultam a desqualificação de segmentos do social, com apelos de exaltação a torturadores", escreve José Geraldo de Sousa Junior, articulista do Jornal Estado de Direito, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (1973), mestre (1981) e doutor (2008) em Direito pela Universidade de Brasília, ex-reitor (período 2008-2012) e professor titular da Universidade de Brasília, membro da Associação Corporativa da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e coordenador do Projeto O Direito Achado na Rua. O artigo foi enviado pelo autor.
Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos.
Tortura / Coordenação Geral de Combate à Tortura (Org.)
– 1. ed. – Brasília : Secretaria de Direitos Humanos, 2010.
320 p.
Para acessar o pdf do livro clique aqui.
Desde os acontecimentos de 2016, que em leitura a contrapelo (Benjamin), muitos de nós temos caracterizado em artigos, palestras, atos públicos, livros e até em filmes (entre estes agora inscrito no Oscar de 2020, o Democracia em Vertigem, de Petra Costa) como um golpe parlamentar-judicial-midiático contra a democracia e contra a soberania popular no interesse neoliberal.
No meu modo de considerar o tema, aqui mesmo nesta Coluna Lido para Você, repeti várias vezes esse entendimento, afirmando de modo categórico desde o meu artigo “Estado Democrático da Direita”, publicado no livro organizado por Roberto Bueno, Democracia: da Crise à Ruptura, São Paulo: Editora Max Limonad, 2017, págs, 407-412. que a existência formal de uma legalidade e de uma institucionalidade procedimental por si, não afirma a legitimidade do que realiza. E lembro que, no Brasil, com sua herança colonial que opera com favores mas não com direitos (lembre-se da afirmação de Getúlio: “para os amigos tudo; para os inimigos, a lei”), prevalece o alcance retórico de institucionalização pelo jurídico, pondo em relevo o fato de que todas as experiências autoritárias de nossa formação social, inclusive a mais recente pós-1964, tomaram uma forma de legalidade, procurando dar expressão “constituinte” aos seus arranjos “revolucionários”, com todas as aspas possíveis.
Entre as várias colunas publicadas, recupero a que trata da liberdade de cátedra e de autonomia do pensamento crítico no espaço do ensino universitário (para acessar a coluna clique aqui). Lembro ali a representação que subscrevi (para acessar clique aqui – acesso em 09/05/2018), para por côbro a algo inaceitável, pois esse é o primeiro movimento que tem a representação. O segundo, não é defender somente o espaço da Universidade, mas tomar uma posição para não deixar que se repitam os mesmos movimentos que no passado trouxeram para nós a tragédia, ainda não superada, daquilo que representou as ações da ditadura instalada com golpe de 64. E que hoje são objetos do que a gente chama de “justiça de transição”, quer dizer chamar à responsabilidade aqueles agentes que produziram esses atos em violação a normas que não podem ser objeto de redução, por exemplo, a proteção da vida, da dignidade e da liberdade, e que se diz inclusive as leis de anistia não podem proteger torturadores. E concluo que tudo começa assim, com censor e termina com torturador.
Para o que tenha parecido forte para alguns na ocasião tal afirmação, registro a ação do governo local de Rondônia, ainda bem que logo revogada pela força do repúdio social, de retirar do acervo das escolas, obras clássicas para a compreensão de nossa formação social, num total de 43 livros entre os quais obras clássicas de Euclides da Cunha, Aurélio Buarque de Holanda, Mario de Andrade e, pasme-se, Machado de Assis, o patrono da literatura nacional, fundador da Academia Brasileira de Letras.
Sobre a tortura como instrumento da política ainda não há registros fortes, mas cenas recentes das redes sociais têm exibido a prática desse método em abordagens policiais carregadas de racismo, homofobia, misoginia e hostilidade de classe, de todo modo nutrido pelos discursos de altas autoridades que não ocultam a desqualificação de segmentos do social (parasitas na designação de servidores públicos; sub-humanidade para caracterizar indígenas ou para confinar ativistas), em todo caso com apelos de exaltação a torturadores judicialmente reconhecidos, chamados ao paraninfado de uma governança que não disfarça uma postura miliciana.
Por isso escolhi para o Lido para Você na Coluna hoje publicada, a leitura de uma obra fruto de um Seminário Nacional que colocou no horizonte da construção democrática e do simbólico do nunca mais, valor central da Justiça de Transição, a objeção sem recuo a toda forma de tortura.
Na designação desta obra, descrita na epígrafe, incluo o link para o acesso completo da edição, cujo sumário a seguir transcrito, dá a medida da importância dos temas que ela contêm, todos atualizáveis para advertir os perigos da conjuntura sóbria que atravessamos.
Apresentação
Paulo Vannuchi - Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Seminário Nacional sobre Tortura
José Geraldo de Sousa Junior – Reitor da Universidade de Brasília
Saudação
Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes – Coordenadora Geral de Combate à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Introdução: Livro reescreve o Seminário Nacional sobre Tortura e vai além
Coordenação Geral de Combate à Tortura
Tortura no Brasil, uma herança maldita
Maria Victoria de Mesquita Benevides Soares
Aspectos relativos aos Direitos Humanos e suas violações, da década de 1950 à atual e processo de redemocratização
Marco Antonio Barbosa
Violência, massacre, execuções sumárias e tortura
Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes
A tortura no direito internacional
Fábio Konder Comparato
A Lei de Anistia no Brasil: as alternativas para a verdade e a justiça
Paulo Abrão
O desafio nacional de erradicar a tortura
Fermino Fecchio Filho
As populações do meio rural
Paulo Roberto Martins Maldos
Tortura nos grupos urbanos socialmente vulneráveis
Joviniano Soares de Carvalho Neto
Vulnerabilidade das populações carcerárias e urbanas à tortura: um olhar sobre as condições das penitenciárias do estado de Pernambuco
Maria do Amparo Araújo
Os subterrâneos da violência e da tortura nas periferias e os movimentos sociais
Carlos Gilberto Pereira e Luiz Carlos Fabbri
Tortura: presença permanente na história brasileira
Maria Salete Kern Machado
Tortura e impunidade – danos psicológicos e efeitos de subjetivação
Tania Kolker
Elaboração onírica e representação na literatura de testemunho pós-ditadura no Brasil
Paulo Endo
Só nos resta a escolha de Sofia?
Janne Calhau Mourão
Contribuição para a compreensão e a prevenção da tortura no Brasil
José de Jesus Filho
Dano e reparação: Construindo caminhos para enfrentar a tortura
Vera Vital Brasil
Reflexão coletiva e propostas para a agenda pública
Nair Heloisa Bicalho de Sousa
Ações da Coordenação Geral de Combate à Tortura
Ana Paula Barbosa Meira
Cynthia Rejanne Correa Ciarallo
Danielle Cristina Fonseca Lovatto
Mateus do Prado Utzig
Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes – Coordenadora
Como mencionei, fruto de um Seminário Nacional sobre Tortura organizado como diretriz de uma política pública de direitos humanos, o evento teve o apoio da Universidade de Brasília em cujo espaço se realizou, com suporte funcional e conceitual do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos – NEP do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares – CEAM ao qual se vincula.
Para a Coordenadora do NEP, professora Nair Heloisa Bicalho de Sousa, tal como ela sintetiza em seu texto Reflexão Coletiva e Propostas para a Agenda Pública, trazido para a obra, “Propor o fim da tortura significa afirmar um compromisso com uma sociedade justa, democrática e solidária, capaz de olhar de frente seu passado, agir no presente para combater as práticas de tortura e garantir às gerações futuras a esperança fraterna de que o sofrimento provocado pela tortura até hoje, seja eliminado definitivamente da história brasileira”.
Esse é também o meu entendimento, assim o expressei na ocasião, na qualidade de Reitor da UnB, tendo acompanhado todo o Seminário para exatamente conferir ao evento o mais alto sentido de relevância.
Para mim, com efeito, disse à altura e meu pronunciamento foi transcrito para o livro, o Seminário Nacional sobre Tortura promovido pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e pela Universidade de Brasília, com organização a cargo da Coordenação Geral de Combate à Tortura, da SDH e do NEP – Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos, da UnB, acontece em boa hora quando ainda repercute o debate derivado da edição do terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos.
É importante, pois, saudar a iniciativa na pessoa do Ministro Paulo Vannuchi, da SDH, que com a sua presença na abertura do evento confirma pessoalmente o seu compromisso com os valores que norteiam a política de direitos humanos expressa no PNDH3, numa continuidade marcante se consideramos a permanência de seus principais eixos desde os programas anteriores, independentemente das diferenças de gestão, tanto na SDH quanto nos governos que as avalizaram.
Vê-se, assim, que direitos humanos são e continuam a ser uma pauta suprapartidária e sua centralidade, derivada dos princípios constitucionais pós 1988, responde às exigências estruturantes do processo de redemocratização do País, que caracteriza a transição do período autoritário instaurado em 1964.
Com efeito, tenho insistido em caracterizar, no Brasil, três condições que qualificam a transição desse período: a anistia, a constituinte e a busca pela memória e pela verdade, incluindo a abertura de arquivos que registram os fatos ocultadores das ações políticas de repressão dessa conjuntura.
A anistia foi, talvez, a primeira bandeira a organizar a resistência democrática. Ainda que só definida em 1979, ao final do período autoritário, por isso restrita e abrigando ilegítima e ilegalmente remissões penais a agentes da repressão e a torturadores, numa inserção incabível à luz do jus cogens e do direito internacional dos direitos humanos, a campanha pela anistia e a lei que se lhe seguiu, galvanizaram o imaginário democrático, ganhando culturalmente, o sentimento de objeção consciente ao regime.
A Constituinte tem um relevo evidente porque a Constituição da transição permitiu um espaço de mediação razoável para liberar as energias democráticas não contidas totalmente pela experiência do terrorismo de Estado. Como palavra de ordem para abrir a transição, ela permitiu a entrada em cena de novos movimentos sociais, populares e sindicais, cujos projetos de sociedade tiveram inscrição na Constituição de 1988, para caracterizá-la como expressão de uma cidadania participativa orientada pela realização de direitos humanos.
Contudo, a discussão sobre memória e verdade e a abertura dos arquivos da repressão ficaram fora de um adequado debate nacional, subtraindo à sociedade civil o conhecimento de fatos dramáticos cujo ocultamento retrata, de certa maneira, uma tendência a deixar no esquecimento práticas políticas do regime autoritário, entre as quais a censura, o desaparecimento forçado de pessoas e a tortura.
Por esta razão, entre as objeções levantadas contra o PNDH3, por várias expressões porta-vozes dessa tendência de ocultamento, destaca-se o antagonismo em face da proposta de inclusão no Programa, de uma Comissão de Verdade e Justiça. Na sua forma atual de Comissão de Verdade, esta proposta decorre da Conferência Nacional de Direitos Humanos realizada em dezembro de 2008, com caráter deliberativo. Mas ela decorre também, como já salientei, do fundamento cogente do direito internacional dos direitos humanos, expresso em decisões de tribunais internacionais que indicam ao Brasil a necessidade de concluir o processo de democratização com a verdade sobre os fatos, para evitar a repetição de ciclos de violência.
Trata-se de uma disposição inscrita nos fundamentos do que se denomina justiça de transição, que pode ser definida como esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos. À luz dos elementos-chave deste conceito de justiça transicional, o que não se pode perder de vista é que a justiça de transição admite sim reconciliação, mas implica necessariamente processar os perpetradores dos crimes, revelar a verdade sobre esses crimes, conceder reparações às vítimas e reformar as instituições responsáveis pelos abusos.
A tortura é um desses crimes que repudiam a consciência de humanidade e que são intoleráveis no plano normativo civilizatório. Este repúdio está inscrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948 pela Assembleia Nacional das Nações Unidas, nos precisos termos de que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. E, neste passo, transmitido às legislações internas, constitucional e infraconstitucionalmente, considerada a tortura crime imprescritível e não auto anistiável.
Assim vem sucedendo na experiência internacional, como na África do Sul e em Serra Leoa. E do mesmo modo, com o balizamento da OEA (Organização dos Estados Americanos) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em países da América do Sul que vivem a realidade de transição, após períodos autoritário-ditadoriais, como na Argentina, Uruguai e Chile que, por isso mesmo, revogaram leis de autoanistia, em suas diferentes denominações (ponto final, obediência devida etc).
No Brasil, este debate também precisa ser feito e o Seminário, com seu rico temário e o protagonismo de seus participantes, é uma oportunidade preciosa para que ele se realize trazendo o País para o patamar civilizatório que sua história recente lhe conduz.
Mas, sobretudo no momento que atravessamos, as questões que nele afloraram, precisam repercutir em nossa responsabilidade democrática, com o peso da advertência que faz Walter Benjamin. Segundo ele, articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”, mas antes, apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo.
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Coordenação geral de combate à tortura - Instituto Humanitas Unisinos - IHU