24 Janeiro 2020
"Parece claro que foram as plataformas digitais de trabalho que chegaram ao paraíso, ao terem a liberdade de impor suas regras e se colocarem (falsamente) como simples mediadoras entre consumidores e fornecedores de serviço", escrevem Ana Claudia Moreira Cardoso, docente do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e Karen Artur, docente da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), em artigo publicado por Le Monde Diplomatique Brasil, 23-01-2020.
A palavra empreendedorismo vem ganhando espaço, desde a crise econômica de 2008, com ênfase em algumas de suas dimensões, supostamente positivas para o trabalhador: a não existência de chefes definindo o quê e como fazer; e a liberdade para decidir quando e onde fazer. Por outro lado, aspectos como insegurança, risco, ausência de direitos, isolamento nunca são mencionados. Esta discussão não é nova. Já nos anos 1990, a palavra “empregabilidade” – significando que cada trabalhador seria o único responsável pelo seu emprego e desemprego –, foi muito evidenciada, também num contexto de desemprego e queda da renda.
Nesse mesmo período, em meio a implantação do modelo toyotista de organização do trabalho e da produção, termos como participação, colaborador (ao invés de trabalhador), e autonomia, passam a colonizar o cotidiano laboral [1]. Além de intenso processo de flexibilização da remuneração, das formas de contratação e do tempo de trabalho que, na pregação do capital, significariam liberdade e autonomia para todos, mesmo que, na prática, elas fossem adotadas unicamente em função dos seus interesses.
Outro movimento realizado pelas empresas refere-se à crescente externalização e terceirização de suas atividades. Embora o discurso patronal seja o da sua inevitabilidade e de ganhos de eficiência e produtividade decorrentes da especialização, pesquisas mostraram uma realidade de empresas contratadas sem lastro para atuarem, de subordinação dos trabalhadores e de piora de suas condições de trabalho e de representação sindical [2].
Em paralelo, teve sequência o processo de inovação, passando pelas tecnologias de informação e comunicação e pela “Indústria 4.0”. Uma transformação que já abrange diversas interações sociais, sejam elas de amizade, de compra ou de trabalho. Para Castells (2013), vivemos uma dupla mudança, com a reestruturação global e profunda do capitalismo e o nascimento da sociedade informacional. Sociedade na qual a criação, o tratamento e a transmissão de informação são as principais fontes de poder e onde as redes passam a organizar grande parte da economia, a partir das plataformas digitais.
Há diferentes tipos de plataformas: as da “primeira onda” possibilitaram ao usuário a compra direta com a empresa ou a troca de serviços entre usuários (share economy). Já a segunda geração (gig economy), que nasce nos anos 1990 em meio à generalização da internet e dos smartphones, é composta por empresas muito parecidas com as tradicionais, tendo como objetivo precípuo a maximização do lucro. Acontece que muitas destas plataformas, buscando enganar a sociedade, se autodenominam de compartilhamento e colaboração [3].
Mas o que essa discussão tem a ver com a possibilidade de a classe trabalhadora ter encontrado, ou não, o paraíso 4? O fato é que o trabalho mediado por plataformas digitais tem sido propalado como o ápice da liberdade e do ganho fácil para o trabalhador: “Torne-se um entregador parceiro da Deliveroo e consiga uma renda rápida e significativa com um tempo flexível!”. “Dirija com a Uber: sem horários, sem patrão, sem limites!”.
Como essas plataformas conseguiram crescer tanto e em tão pouco tempo? Pensemos o caso do Brasil, em sua situação de crise econômica, pós reforma trabalhista de 2017, com altas taxas de desemprego e de trabalho informal. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 3,6 milhões de brasileiros estavam trabalhando, em 2018, como motoristas de aplicativos, taxistas ou cobradores de ônibus, aumento de 29,2% em relação a 2017! O total de pessoas trabalhando em local designado pelo empregador, patrão ou freguês – grupo que inclui os entregadores em geral – também registrou a maior alta, desde 2012. Eram 10,1 milhões de trabalhadores em 2018.
Ocorre que as plataformas digitais se aproveitaram de uma conjunção de fatores, em sua maioria negativos para a classe trabalhadora. Primeiramente, a própria disponibilidade de tecnologia, que possibilita, para além das facilidades de consumo, o controle do trabalho e dos trabalhadores à distância. Além disso, as opções políticas neoliberais, que desvalorizam a legislação e a negociação coletiva, vêm sendo disseminadas desde os anos 1990. Por sua vez, tais opções políticas, inaptas a responder de forma adequada às crises econômicas, têm contribuído para o crescimento do desemprego e a precarização do trabalho. Pior, elas têm resultado no aprofundamento e criação de novas formas precárias de emprego, por meio de reformas trabalhistas.
Isso tudo num cenário de globalização e abundância de capital de risco, advindo do processo de financeirização da economia, afastado da lógica dos investimentos de longo prazo, e que passa a ser direcionado para as plataformas. Como resultado, num ambiente tão desfavorável aos trabalhadores e à regulação pública, o discurso propositivo das vantagens do empreendedorismo, da empregabilidade e da meritocracia ganha força, juntamente com aquele que iguala flexibilidade a autonomia e liberdade.
Parece claro, desta forma, que foram as plataformas digitais de trabalho que chegaram ao paraíso, ao terem a liberdade de impor suas regras e se colocarem (falsamente) como simples mediadoras entre consumidores e fornecedores de serviço. Para elas, não há relação de trabalho, obrigações trabalhistas e nem, tampouco, direitos dos trabalhadores. Além disso, elas não garantem direitos aos consumidores e criam uma infinidade de artimanhas jurídicas para fugirem de impostos.
Como dizer que não há uma relação laboral que mereça a proteção do Direito do Trabalho, quando são as plataformas que definem se um trabalhador pode oferecer seu trabalho e o coloca para fora quando desejam? E ainda estabelecem a forma como o labor deve ser feito, os prêmios, o contato inicial com o cliente e o valor da remuneração – podendo, inclusive, reduzi-la?
Por outro lado, para os trabalhadores restou o inferno, dado que eles devem assumir todos os riscos: dos seus instrumentos de trabalho à manutenção da sua saúde. Entretanto, é exatamente a vivência desse trabalho intenso, pressionado, precário e incerto – que nada tem a ver com a liberdade e o ganho fácil propalados – que tem levado os trabalhadores progressivamente a se mobilizarem e a reivindicarem melhores condições laborais.
Ao mesmo tempo, as jurisdições em diversos países também se manifestam com cada vez mais frequência e as ações que vêm sendo julgadas descortinam o sistema de gestão e controle desses trabalhadores, bem como a realidade de desproteção por eles vivenciada. Revelam, mais ainda, uma atuação estratégica das empresas para afastar o Direito do Trabalho e todas as discussões sobre justiça social, que se contrapõem à relação de total desequilíbrio que as plataformas buscam impor. É o que vemos no crescente número de ações judiciais no Brasil e fora do país, envolvendo plataformas como Uber, Loggi, Ifood e Rappido.
Notas:
[1] No caso dos países desenvolvidos, tal movimento já se inicia no final dos anos 1970, num contexto de crise econômica e queda da demanda por serviços e mercadorias e, por outro lado, de forte demanda por parte dos trabalhadores por participação e autonomia.
[2] No Brasil, podemos citar como referência Druck, G.. A indissociabilidade entre precarização social do trabalho e terceirização. In Teixeira, Marilane Oliveira; Andrade, Helio Rodrigues de; Coelho, Elaine D´Ávila (orgs). Precarização e Terceirização: faces da mesma realidade. São Paulo: Sindicato dos Químicos, 2016, p. 17-32. Para um olhar comparativo latinoamericano, Morales, D.; B. Victoria (coords). La terceirización laboral: orígenes, impacto y claves para su análisis en America Latina. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2014.
[3] Por sua vez, na “gig economy” há plataformas de microtrabalho (crowdworkers), que oferecem serviços imateriais de baixa qualificação, fragmentados, imprevisíveis e mal remunerados e, também, as de “trabalho digital por demanda” que oferecem serviços imateriais especializados (tradução, serviço jurídico e contabilidade) e materiais (transporte, entrega, cuidado, conserto, cozinha a domicílio, entre outros).
[4] Referência ao filme italiano “A classe operária vai ao paraíso”, de 1971, dirigido por Élio Petri, discutindo os ideais de liberdade e autonomia, em meio às indagações sobre o futuro da classe trabalhadora naquele momento histórico.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, no Campus Unisinos Porto Alegre.
XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Enfim, a classe trabalhadora chegou ao paraíso? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU