13 Dezembro 2019
Os sinais que a sociedade planetária lança são preocupantes. “Estamos meio a uma crise fundamental, entrando em uma era de barbárie, onde os direitos essenciais se desvanecem”, reflete Leonardo Boff. Militante social, co-iniciador da Teologia da Libertação, um dos motivadores da Carta da Terra no ano de 2000, prêmio Nobel alternativo em 2001, Boff sintetiza as mais variadas facetas de homem de reflexão e ação. Fornecendo nesta reflexão a marca de defensor dos direitos humanos, um dos mais proeminentes em seu país natal, embora o menos conhecido no exterior, em entrevista exclusiva, realizada pelos 40 anos do Centro de Defesa dos Direitos Humanos em Petrópolis-RJ, o qual Boff ajudou a fundar em 1979 e que atualmente ainda é o presidente.
Leonardo Boff. Foto: Sergio Ferrari
A entrevista é de Sergio Ferrari, colaborador da fundação de solidariedade Cooperaxion, 13-12-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis (CDDH) nasceu durante a última ditadura brasileira. O que significava então, na prática, defender os direitos essenciais dos brasileiros?
O CDDH nasceu como resposta à agressão sistemática dos direitos humanos por parte do governo militar, que considerava como subversivos todos os que eram seus opositores. Nesse momento foi essencial a luta pela democracia, já que constituía uma reivindicação essencial, proibida pelos militares. No entanto, desde o início, tivemos como lema “Servir à vida”, que expressava o desejo de ir mais além de uma visão meramente jurídica dos direitos, colocando no centro a vida ameaçada. Este Centro foi essencial na cidade de Petrópolis, onde ainda moro, que, dada sua topografia montanhosa, era cenário de contínuos deslizamentos de terra que provocavam muitas vítimas. O CDDH ajudou muita gente – com a cooperação entre todos –, a reconstruir suas casas ou fazê-las novas. Pensávamos, já então, na vida como conceito integral, incorporando também a vida da natureza. Desde o princípio, as lutas centraram-se na defesa dos direitos dos mais pobres que vivem nas periferias. Começando por criar consciência sobre seus direitos de tal forma que pudessem ser protagonistas de suas próprias reivindicações.
Isso é, a defesa dos direitos humanos desde a perspectiva e a centralidade dos atores sociais marginalizados...
De fato. Nesses anos deu-se uma intensa tarefa de conscientização e educação sobre os direitos, sempre, insisto, na perspectiva dos pobres. Era para nós, claro, que o primeiro direito é à vida e aos meios de subsistência. Depois, os demais, como, os de expressão, de cidadania, etc. Sempre com a preocupação de criar comunidades, nas quais os pobres puderam discutir seus problemas e com nosso apoio, buscar eles próprios soluções viáveis. Como a cidade de Petrópolis é política e socialmente muito conservadora [Nota: Foi a sede do Império de Dom Pedro II, por isso o seu nome] quase não existiam organizações comprometidas com a justiça social. Com encontros e cursos sobre os direitos sociais, conseguimos promover uma visão libertadora mais crítica ao sistema imperante. Priorizando desde sempre o trabalho com os jovens.
Leonardo Boff. Foto: Sergio Ferrari
Poderia nos dar um exemplo de algum dos projetos emblemáticos...?
Para mim o projeto mais significativo foi o que denominamos Pão e Beleza. Se assegurava o alimento básico a cerca de 300 pessoas que vivam na rua. Podiam chegar, tomar banho, vestir roupas limpas – recolhidas graças a doações – e contar com uma comida abundante e muito boa. Depois, pela tarde, era o momento da beleza. Consistia em resgatar sua identidade, começando pelo uso de seus nomes, já que a grande maioria tinha somente apelidos. Eles foram apoiados no cuidado de sua saúde; muitos eram alfabetizados; socializavam testemunhos; atividades culturais foram compartilhadas; e, se possível, tentamos propor um trabalho para promover sua autonomia.
40 anos depois, o Brasil volta a viver uma realidade complexa e incerta, inclusive da perspectiva da defesa dos direitos humanos. Como analisa hoje, quase um ano depois, a vitória de Jair Bolsonaro que reivindica, inclusive, a ditadura militar brasileira? Em que a educação popular falhou que facilitou esse tropeço histórico?
É uma pergunta muito complicada. É preciso começar analisando o fato de que as oligarquias dominantes nunca aceitaram que um filho da pobreza, sobrevivente da fome, chegasse à presidência. Esses grupos de poder somente toleraram Lula sempre e enquanto ele respeitara seus mecanismos de acumulação, que desde sempre esteve entre as mais altas e concentrada do mundo. Lula nos anos do governo do Partido dos Trabalhadores, conseguiu tirar da miséria cerca de 40 milhões de pessoas. Implementando programas sociais como “Minha casa, minha vida”, que assegurou a milhões uma moradia digna, ou “Luz para todos” que iluminou os lugares mais afastados do país. Permitiu, ainda, que jovens negros e empobrecidos realizassem estudos, inclusive universitários. No entanto, houve um problema estratégico do PT de negociar alianças no parlamento – onde era minoria – com partidos sem nenhuma sensibilidade social. E perdeu uma parte do contato com as bases populares que haviam levado Lula ao governo. Também houve corrupção contaminou membros importantes da equipe de Lula e de sua sucessora Dilma Rousseff. Tornou-se em um bode expiatório da corrupção, quando na realidade, o PT ocupava somente o décima lugar no ranking entre os partidos políticos brasileiros corruptos.
É preciso acrescentar à análise, ademais, que nos últimos anos, em muitas partes do mundo, a direita ganhou força, especialmente a partir do apoio explícito do presidente norte-americano Donald Trump.
No Brasil, todos esses elementos, promoveram uma atmosfera anti-PT. E dos Estados Unidos promoveu-se uma estratégia que instrumentou juízes, parlamentares e policiais para atacar o Estado, acusando-o de ineficiente e desqualificando as lideranças populares, como o próprio Lula. Inclusive o enviando à prisão mediante um processo jurídico totalmente irregular, condenado por uma “ação indeterminada”, elemento que não existe em nenhum código penal no mundo. Lula foi um prisioneiro político. Na campanha eleitoral se difundiram milhões de fake news, de tal forma que o Brasil foi contaminada por uma onda de ódio, raiva e desagregação social. E nesse contexto, o lema simplista foi “é preciso mudar”, abrindo a porta para Jair Bolsonaro.
Leonardo Boff. Foto: Douglas Mansur
Com um programa economicamente elitista, mas com promessas populistas...
Exato. Um militar reformado, apoiado por grandes grupos de poder. De extrema-direita, sem nenhuma educação, buscando sempre o confronto, acenando a torturadores do passado e às ditaduras militares, tanto do Brasil, quanto do Chile e do Paraguai. Confrontando com palavras ofensivas a chanceler alemã Angela Merkel ou o presidente francês Emmanuel Macron e os candidatos da Frente de Todos da Argentina. Apoiando-se nas igrejas neopentecostais e em seus programas televisivos massivos que manipulam milhões de pessoas com todo tipo de mensagens mentirosas e distorcidas. Neste ambiente irrompeu Bolsonaro, que está desmantelando aceleradamente todos os programas de inclusão social dos governos de Lula e Dilma e tirando direitos essenciais aos trabalhadores. Há muita desesperança no país. Inclusive há analistas que pensam que não terminará seu mandato já que as próprias oligarquias que o apoiaram já não creem em sua pessoa, nem no tipo de economia extremamente neoliberal, sem nenhum crescimento e restringindo os investimentos produtivos.
A nível de direitos humanos: o que representa o governo Bolsonaro?
Ele é explicitamente homofóbico, se manifesta contra a população LGBT, contra os negros e indígenas. Tem um estilo vulgar de comunicação, “a la Trump”, via Internet, atuando de forma autoritária por cima da constituição. Vivemos a realidade de uma sociedade pós-democrática e sem leis. Devido à defesa da tortura, o acesso da população às armas de fogo, e a violência, que tem aumentando consideravelmente no país. Somente no passado se registraram 65 mil assassinatos.
Quais são as prioridades para os defensores de direitos humanos e organizações sociais?
Nesta conjuntura, a luta é pela defesa dos direitos essenciais dos trabalhadores, das minorias submetidas e dos mais pobres, dos quais Bolsonaro nunca fala e os despreza. Enquanto a direitos humanos, estamos voltando ao tempo da ditadura militar, quando se tratava de salvar vidas sequestradas, torturadas... Agora, a onda de violência é animada por um presidente que enquanto candidato saudava a repressão e os torturadores. Os que usam a violência, em particular contra os pobres e negros, se sentem respaldados pela máxima autoridade do país. Bolsonaro vive uma paranoia que o leva a ver em qualquer oposição a presença “comunista” e que o leva a se fazer de vítima de uma conspiração mundial. Estimulou o desmatamento da Amazônia, aberta completamente às empresas mineradoras dos EUA e da China e promove uma visão claramente anti-indígena. Os grandes incêndios de extensos territórios amazônicos contam com o beneplácito do presidente, o que está provocando um enorme escândalo nacional e internacional.
Ou seja, é novamente o momento de defender os direitos humanos em seu sentido mais tradicional?
Na etapa anterior, diversos atores de base haviam feito grandes progressos na concepção e promoção dos direitos sociais, dos direitos da natureza e da Mãe-Terra. Sinto que agora essas questões perderam a centralidade. Trata-se de salvaguardar os direitos humanos básicos, hoje profundamente afetados. No entanto, a reflexão permanece aberta, especialmente a que foi dada antes do Sínodo para a Amazônia, sobre os direitos da natureza. O Brasil pode oferecer uma contribuição significativa ao planeta como um todo através de suas florestas e grandes rios que servem como filtros de absorção de CO2.
A aposta nacionalista promovida pelo governo brasileiro coincide com projetos xenófobos e com os muros anti-imigrantes que são reforçados em outras regiões do mundo, seja na Europa ou nos próprios Estados Unidos ...
Sinto que estamos no meio de uma crise fundamental da civilização e estamos entrando em uma era de barbárie. Onde a solidariedade entre os seres humanos é enfraquecida e ouvidos surdos aumentam para os gritos da natureza e da Terra. Estamos percebendo que não temos soluções para os problemas que nós mesmos criamos. Na verdade, transformamos o Jardim do Éden em um matadouro e ser humano, em vez de ser seu zelador, torna-se o Satanás da Terra. Quando uma civilização globalizada como a nossa falha em incluir todos, ela expressa que é angustiante e está caminhando para um desastre ecológico-social sem precedentes. Vivemos em uma emergência humanitária, na qual os seres humanos não reconhecem os outros como humanos. Quero dizer seres que merecem respeito e afirmação de seus direitos. Sua negação constitui um tipo de sentença de morte. De fato, muitos morrem diariamente nas águas do Mediterrâneo, tentando chegar à Europa, ou nas trilhas da América Latina para os Estados Unidos.
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“A agonia de uma civilização tão globalizada quanto excludente”. Entrevista com Leonardo Boff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU