10 Dezembro 2019
"Os rios, antigamente a fonte perfeita de vida, são hoje, mesmo em alguns lugares da Amazônia, o caminho para a expansão da pestilência de nossos resíduos, os rios são até portadores de morte com tudo produzido pelas ações de mineração e extração de petróleo. Continuamos envenenando sistematicamente os rios, impossibilitando toda a vida e, com essa estupidez absoluta, estamos matando nosso futuro e nosso presente. Todos os dias cometemos suicídio", reflete Maurício López Oropeza, secretário executivo da Rede Eclesial Pan-Amazônica - REPAM, membro do Conselho Pré-Sinodal e auditor do Sínodo Pan-Amazônico, em artigo da série Itinerário interior de um navegante em travessia pelas águas movidas do rio Sinodal Amazônico, composta por reflexões sobre a experiência sinodal. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Vejo tua beleza sublime e perfeita que reverdece e nos fala do Mistério de Deus em toda Criação nesta Amazônia. Experimento-te no verdor incessante da natureza que expressa vida descomunal em cada canto desta selva. Admiro-te nos rios incontroláveis que correm e levam vida e possibilidade de continuidade naquelas águas que banham todos os lugares por onde viajam. Tu estás aqui em cada criatura com sua função específica que traz a possibilidade de plenitude, isto é, uma existência que glorifica nosso mundo de uma maneira quase imperceptível e na cadência aparentemente pacífica deste reino que se move sem parar em processo de consumação.
Admiro-te na Criação presente nesta Amazônia, nas mulheres e nos homens de todos os dias, que trabalham para trazer possibilidades de vida dignas para seus povos, famílias e, portanto, nesta selva conectada ao mundo inteiro e ao cosmos que oferece vida a todos. Estás lá no árduo e digno trabalho dos pequenos seres, esses insetos aparentemente irrelevantes, mas que alimentam a vida, a recriam, a habilitam e a aprimoram em todas as suas expressões, sem nenhuma pretensão que não seja a existente e a vida do projeto existente.
Eu posso te sentir em cada fibra dos alimentos que eu recebo e no silêncio interior eu te reconheço. É como se eu estivesse te recebendo, tornando-me um contigo, Deus da vida, um ato de comunhão. Percebo o trabalho de mulheres e homens nesta Amazônia e em qualquer campo que nos permitiu ter acesso a esse alimento, e cada mordida tem gosto de alegria para mim. Como desejo continuar te experimentando no caminho cotidiano da minha vida na cidade, de saber que entras no meu ser para percorrer cada fibra do meu ser, nutrindo minha vida, obtendo o suco de reconhecermo-nos aqui, chamadas e chamados a defender o que torna a vida viável, e também, resistir a tudo o que a impede.
Se aqueles que estão tão distantes do sentido da vida tivessem a possibilidade de entender isso, saberiam que o caminho é o da proteção, do cuidado, do encontro, de precaver a vida mesmo em seu ponto de ebulição, como está na Amazônia. Eles saberiam que em cada semente estão contidos o milagre e o mistério, dando a possibilidade de continuidade. Que todos saibam que tu fazes redenção e chama para Ti em toda a diversidade da vida em identidades e culturas.
Peçamos que nosso trabalho cultive, produza, promova, facilite e faça surgir mais vida. Que reconheçamos que tu fazes o sol nascer para todos sem distinção, porque tu és uma fonte de vida, e nela a certeza de que além das rupturas e violências, algum dia convergiremos.
Devemos cuidar de quão cruéis são nossos atos de liberdade que, de muitas maneiras, minam a beleza da vida em tudo que é criado. Surpreende-me perceber o quanto meu modo de vida atenta contra a minha própria vida. Vejo nossa perdição nessa cultura de descarte que gradualmente mata a possibilidade de um amanhã, e que chega até aqui e agora na Amazônia, colocando-a em risco de ser destruída. Montanhas de lixo que crescem sem parar e são uma analogia desse desejo insaciável de possuir mais e que também nos apodrece por dentro. Somos responsáveis pela morte da vida e seus efeitos na Amazônia, por opção e por omissão.
Os rios, antigamente a fonte perfeita de vida, são hoje, mesmo em alguns lugares da Amazônia, o caminho para a expansão da pestilência de nossos resíduos, os rios são até portadores de morte com tudo produzido pelas ações de mineração e extração de petróleo. Continuamos envenenando sistematicamente os rios, impossibilitando toda a vida e, com essa estupidez absoluta, estamos matando nosso futuro e nosso presente. A Amazônia é uma possível rota diante desse processo de morte diário, apenas se abraçarmos sua fragilidade e seu mistério e optar por defendê-la. Todos os dias cometemos suicídio, paulatinamente e sem parar.
O que somos, mulheres e homens, para que tu te lembres de nós? A genialidade criativa do ser humano é evidente e é também a promessa da tua Encarnação produtiva e reprodutiva da vida e das possibilidades. Porém, hoje essas possibilidades estão subjugadas sob os efêmeros desejos de posse e dominação deste sistema que mata, arrasa, exclui, arrebata a vida e produz enfermidades, pobreza ou uma existência dos mínimos. Nessa Amazônia, esses gestos vão se reproduzindo por muitos lugares, e põem em risco a vida dos povos originários em seus próprios territórios, em contraste com seus ensinamentos milenares que apostam aos máximos.
Senhor da vida, encarne com mais força! Cristo cósmico, encarne em um amor que supere a morte, irrompa nos corações de cada pessoa e faça visível a luz de cada dia, a luz de cada ser e de toda criatura. Sacuda nossa frágil existência para te reconhecer na beleza da criação, nos traços de beleza nesta Amazônia lastimada. Dai-nos a força da tua causa para que possamos assumir a loucura pelo Reino em todo nosso ser em plena consciência fraternal e universal, olhando ao Cristo cósmico que ascende como consciência para o amor:
“Crês muitas vezes honrar o Cristianismo reduzindo-o a qualquer doce filantropia. Nada se compreenderá dos seus ‘mistérios’, se não virmos nele a mais realista e a mais cósmica das fés e das esperanças. Uma grande família, o Reino de Deus? Sim, num certo sentido. Mas, noutro sentido também, uma prodigiosa operação biológica: a da Encarnação redentora”
Pierre Teilhard de Chardin, em O fenômeno humano
Em setembro de 2018, faltando quase um ano para o Sínodo, na plenitude dos processos de preparação e começando os que seriam mais de 350 momentos de escuta ao povo de Deus no território Amazônico, apareciam perguntas intensas sobre a possibilidade, ou não, de que este processo desse os frutos esperados. Seríamos capazes de acompanhar este momento de reforma eclesial e de acompanhar a territorialidade Amazônica desde a genuína escuta das vozes neste lugar? Aqui algumas reflexões e meditações que acompanhavam este momento:
Acompanhar a conversão e fazê-la vida duradoura, mais além do tempo presente, que é passageiro, se define no poder de franquear as duras provas que se vivem na luta de visões de mundo que estão em conflito sobre a Amazônia, seja pelo político, econômico, cultural ou inclusive religioso. É uma verdadeira luta de epistemologias em conflitos. Na Igreja se trata de assumir uma opção vital e inescapável pelo acompanhamento e defesa da vida concreta do povo e de sua existência em relação intrínseca com este território, e nele optar por Cristo.
Estamos em uma duríssima disputa que faz eco dos agradecimentos adiados, ou em processo de construção gradual desde há 50 anos, onde o Espírito nos impulsionou, à luz do Concílio Vaticano II, a manter a fidelidade absoluta à fonte primária que é a Encarnação de Deus na vida concreta. Estar do lado do projeto de redenção de Jesus é estar com as diversas comunidades amazônicas, defender sua identidade, sua cultura, seu território, isso é sua existência. E depois, buscar os novos caminhos para compartilhar interculturalmente a força da fé e a riqueza de uns e outros sem imposição, em verdadeira fraternidade ao modo de Jesus.
A liberdade interior que me foi dada pela herança espiritual de Inácio, na qual caminhei, e minha opção laical ao serviço desta Igreja faz com que eu me reconheça sempre vulnerável frente aos tecidos institucionais hierárquicos, é na realidade o mais belo presente escondido que Deus me apresenta para ir adiante neste processo com absoluta liberdade. Avançar em genuína comunhão com a Igreja, porém fiel ao discernimento pessoal e comunitário, convencido de que são as vozes do território as que darão as pautas para essa libertação integral, e feliz de saber que estou absolutamente de passagem, e como leigo não há pressão pela aspiração de títulos ou cargos, mas sim, somente a luta diária pela fidelidade ao Espírito.
É somente isso que me mantém mais ou menos fiel ao chamado essencial, purificando a intenção permanentemente, e ainda que neste caminho me machuque repetidamente, interna e externamente, esse mesmo evitou que se perca o contato direto com o barro da fragilidade própria e ado território que piso como terra sagrada neste Amazônia e seus povos.
Nisto a REPAM foi um espaço onde tecer o impensável e improvável, de criar e recriar possibilidades de encontro do diferente, de colocar um selo pessoal de dons e fragilidades, de habitar as tensões para ir mais além de nossas próprias limitações frente um grito evidente que é o próprio grito dos pobres e da terra. Essa Rede Eclesial Pan-Amazônica foi uma verdadeira escola de periferia que paulatinamente, e em seus claro-escuros, ajudou a reconfigurar o centro, sendo meio e nunca um fim. Este caminho, e o processo Sinodal até esse ponto, foi o mais complexo que jamais vivi. Todas as capacidades, limitações, forças e opções vitais se puseram em jogo e Deus se segue revelando como horizonte desta opção de periferia no coração da Igreja, apesar de tudo o que quer frear e de todos os que opõem às mudanças já impostergáveis do Concílio Vaticano II que hoje impulsiona valentemente o papa Francisco.
Frente a este horizonte, junto com minhas opções vitais mais profundas que seguem imóveis, queimei as naves e assim se revelou a experiência mais profunda de Deus que abraça minha absoluta ruptura e fragilidade. Fez-me novo, e sinto que assim fez a todos nós que entramos neste processo da REPAM e do Sínodo com um coração aberto e sem agendas particulares para impor. Esse processo me liberou de minha batalha cotidiana para superar o protagonismo que me descentraliza, me permitiu ver minhas próprias múltiplas incoerências, e abraçando meu apodrecimento pude me reconciliar pouco a pouco, na medida em que seguimos avançando neste processo Sinodal.
Porém, são as vozes do território, seus gritos e esperanças, as que me purificam e me levam a assumir minhas próprias cinzas e acender-me novamente no fogo da fé, junto com tantas mulheres e homens com os quais vamos configurando este frágil processo.
Sigamos em frente, tecendo essa experiência inédita de Igreja que colabora na construção do Reino ao serviço deste mundo bonito e ferido. Tudo é Graça. Que não traiamos a força interior que nos deu e sua clara presença neste kairós, e que sigamos navegando nesta periferia, que hoje é também centro, na fecunda incerteza de saber que Ele fez tudo novo em nós. Que sejamos uma verdadeira ponte que cruza de ponta a ponta para que nesta Amazônia o diferente tenha seu espaço, e dela e nesse encontre brote vida nova.
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Deus está presente em todas as criaturas? Contemplar o mistério da encarnação de Cristo na vida e morte na Amazônia. Artigo de Maurício López - Instituto Humanitas Unisinos - IHU