05 Dezembro 2019
Ministério da Saúde ameaça tirar mais de 50% dos recursos de alguns municípios. Unidades Básicas serão financiadas por quantidade de pessoas cadastradas e por “produtividade”. Princípio da universalidade, essencial ao sistema, é ameaçado
A reportagem é de Luiza Pinheiro, publicada por INESC, 02-12-2019.
A atenção básica à Saúde (ABS) ou atenção primária é conhecida como a porta de entrada dos sistemas de saúde. Ou seja, é o atendimento inicial, o primeiro nível de atenção. Ela oferece desde a promoção da saúde (por exemplo, orientações para uma melhor alimentação) e prevenção (como vacinação e planejamento familiar) até o tratamento de doenças agudas e infecciosas, bem como controle de doenças crônicas, cuidados paliativos e reabilitação. A ABS organiza o fluxo dos serviços nas redes de atenção à saúde, dos mais simples aos mais complexos.
Na sua essência, a atenção básica cuida das pessoas, em vez de apenas tratar doenças ou condições específicas. Ela é baseada na comunidade, ou seja, considera outros determinantes da saúde, como o território e as condições de moradia e trabalho. É o famoso postinho de saúde do bairro, a Unidade Básica de Saúde (UBS). Ela pode atender mais de 80% das necessidades de saúde de um indivíduo ao longo de sua vida.
O financiamento era composto por um valor fixo (PAB Fixo), corrigido por alguns parâmetros (PIB per capita, percentual da população com plano de saúde, percentual da população com Bolsa Família, percentual da população em extrema pobreza e densidade demográfica), multiplicado por toda a população do município. Além dele, era pago um valor variável (PAB Variável) para estimular a implementação e expansão da Estratégia de Saúde da Família e outros programas, por exemplo, as Equipes de Saúde da Família, Saúde Bucal e Consultório na Rua, Agentes Comunitários de Saúde, dentre outros.
O novo modelo publicado na portaria 2.979/19, que começa a valer a partir de 2020, busca estimular o alcance de resultados e é composto por capitação ponderada, pagamento por desempenho e incentivo para ações estratégicas. Ou seja, o financiamento será feito a partir do número de usuários cadastrados nas equipes de saúde, com foco nas pessoas em situação de vulnerabilidade social (ao exemplo das que recebem auxílio financeiro do Programa Bolsa Família, Benefício de Prestação Continuada ou benefício previdenciário no valor máximo de dois salários mínimos), pagamento baseado no alcance de indicadores e adesão a projetos do governo federal, como Saúde na Hora, de informatização, dentre outros.
Considerar o conjunto da população é importante para se planejar e implementar estratégias que beneficiam a todas as pessoas. Limitar o financiamento às pessoas cadastradas pode na verdade diminuir a ação do SUS e sufocar ainda mais um sistema que já conta com menos recursos que o necessário, o chamado subfinanciamento crônico.
A restrição de recursos pode prejudicar a ação comunitária, o planejamento territorial e a vigilância em saúde, ações que valem para a população como um todo e vão muito além só das pessoas cadastradas. Como a maior parte das pessoas que usa o SUS é de baixa renda, a proposta é de um SUS para os pobres, ao invés de um SUS para todos.
Com a nova portaria, algumas cidades vão ficar sem mais da metade dos recursos, uma soma que ultrapassa R$ 400 mil. Elas irão perder a única transferência governamental em saúde de base populacional atualmente existente e que pode ser aplicada com autonomia – e isso certamente é um risco para a sustentabilidade financeira do SUS municipal.
E isto é ruim, pois em vez de priorizar estas pessoas, na verdade o que está sendo feito, pouco a pouco, é o desmonte do sistema, considerando que existem diversas medidas em curso que vem asfixiando o SUS. Por exemplo, a Emenda Constitucional 95 de 2016, conhecida como Teto dos Gatos, estabeleceu um limite nas despesas do governo federal, inclusive com saúde. Agora está em discussão no Congresso a Proposta de Emenda Constitucional do Pacto Federativo que prevê a junção dos mínimos a serem aplicados em saúde e educação pelos municípios, gerando uma queda de braços entre estes dois direitos, ao invés de ampliar o recurso para ambos.
Além de outras mudanças na atenção básica: a Medida Provisória 890 ( 2019), aprovada na última semana, que cria o Médicos pelo Brasil, institui uma agência de direito privado, a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (Adaps), para realizar serviços de responsabilidade do Estado com orçamento público e pode realizar parcerias com a iniciativa privada. Ela teria em seu conselho deliberativo um representante das empresas privadas da saúde, e não do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que conta com a participação dos usuários e dos trabalhadores do setor. É o governo implementando cada vez mais uma lógica de privatização, ao invés do fortalecimento do serviço público. Quer dizer, é dinheiro indo para empresários e não para população, sem a comprovação de que o serviço privado tem melhor desempenho que o público.
O programa Médicos pelo Brasil, substituto do Mais Médicos, prevê ainda contratar médicos em regime CLT, abrindo mão da exigência de residência médica, e focando a estratégia apenas neste profissional e não em uma equipe multidisciplinar. Tampouco prevê a melhoria e construção de UBS. Ainda, o Ministério lançou uma consulta pública para estipular uma carteira de serviços da atenção primária, que, apesar de poder padronizar os serviços entre as diferentes UBS e aumentar a transparência para população, neste cenário de corte de recursos, pode na verdade restringir o serviço, ao invés de ampliá-lo.
Adotar a lógica do desempenho e produtividade, também importada da iniciativa privada, é complicado, pois a saúde não é – ou não deveria ser – mercadoria. Por exemplo, um maior número de atendimentos, mas feitos às pressas, não significa um melhor cuidado aos pacientes. Da mesma forma, cadastrar um número grande de pessoas sem se preocupar com suas reais necessidades em saúde pode comprometer a efetividade da estratégia adotada para aquele território.
Outro problema é a falta de transparência e de participação popular. A apresentação do novo modelo foi feita por slides, sem um documento robusto de embasamento, ou sem detalhar pontos importantes, como quais indicadores serão considerados. Além disto, apesar de ter sido aprovado na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), composta por representantes do Ministério da Saúde e de secretários de saúde estaduais e municipais, não passou pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS). A proposta foi apresentada em julho, a portaria publicada em novembro e passa a valer em janeiro de 2020.
Em suma, os princípios do SUS, em especial a universalidade e a participação popular, e sua própria existência enquanto sistema público, são colocados em risco nesse novo modelo.
O SUS tem vários problemas, pois não é tarefa fácil criar um sistema gratuito e para todos em um país grande e diverso como é o Brasil. Mas nenhum provedor privado de saúde fornece tantos serviços quanto o SUS, que vai desde a vigilância sanitária, para garantir que a comida do restaurante seja feita com higiene, até cirurgias complexas, como transplantes cardíacos, passando pela produção de medicamentos, gestão de hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs) e oferta de tratamentos de alto custo.
Certamente, há muito a ser melhorado, mas mesmo com uma histórica falta de recursos, o SUS conseguiu resultados importantes, como redução da mortalidade infantil ou o controle e a eliminação de doenças por meio da vacinação. Além disso, por mais que tenha problemas como filas ou demora no atendimento ou marcação de exames e consultas, ele é um sistema ao qual todos os brasileiros podem recorrer, sejam eles pobres ou não, ao contrário do que acontece em outros países, em que os gastos com saúde levam famílias a falência.
O melhor caminho, então, seria aprimorar o SUS – e não limitar ainda mais seu financiamento. A ideia de uma cesta mínima de serviços apenas para populações mais vulneráveis é o que prega a Cobertura Universal de Saúde. Essa corrente é apoiada por organismos internacionais como a Organização Mundial da Saúde e o Banco Mundial. Mas, para nós brasileiros, na prática, essa cobertura restrita significa um retrocesso em relação ao sistema público universal, e em relação ao pacto social na saúde que acordamos na Constituição Federal de 1988.
Usa-se mais uma vez o argumento da escassez de recursos e a lógica da privatização, em vez de se promover o uso máximo de recursos e a realização progressiva de direitos bem como a participação popular, pilares importantes para o uso do orçamento público, registrados na metodologia Orçamento & Direitos do Inesc.
Essa lógica levanta soluções como os planos de saúde acessíveis ou populares. Eles podem até seduzir pela marcação de consulta imediata ou seu preço baixo. Mas se o paciente precisar de respostas mais complexas, por exemplo, uma cirurgia ou um exame mais elaborado, ele fica sem assistência. E com um SUS pequeno e limitado, no fundo, quem não tiver dinheiro não terá para onde correr.
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O que muda (para pior) no financiamento do SUS - Instituto Humanitas Unisinos - IHU