25 Novembro 2019
Criado há 30 anos, o Sistema Único de Saúde nunca esteve tão ameaçado. O governo Bolsonaro apressa a tramitação de um projeto que vai mudar substancialmente a maneira como a verba para a atenção básica é repassada aos municípios. É o Previne Brasil, lançado oficialmente na terça-feira 12. A universalidade, grande pilar do sistema, dará lugar a uma estranha meritocracia. O repasse será feito não mais conforme a população de cada cidade, mas pelo número de cadastros nas unidades públicas de saúde. Outro mote é premiar as localidades que atinjam os “melhores resultados”: tenham unidades informatizadas, horários expandidos, profissionais especializados. Falta combinar com a realidade.
“Como avaliar desempenho, se o governo tirou oito dos meus médicos e não repôs?”, pergunta Maria Dalva Amim dos Santos, secretária de Saúde de Embu-Guaçu, na Região Metropolitana de São Paulo. Em julho, CartaCapital esteve na cidade para falar do apagão do Mais Médicos nas periferias. Com o abrupto fim do programa, a cidade perdeu 16 doutores cubanos de uma só vez. Entre idas e vindas de profissionais brasileiros, a prefeitura conseguiu recompor metade da equipe. Quatro meses depois, Embu-Guaçu é de novo espelho dos dramas da saúde pública no Brasil. A cidade tem 68,2 mil habitantes e está distante apenas 47 quilômetros da capital paulista. Vive basicamente do comércio e dos repasses do governo federal – recebe, por exemplo, uma verba extra para preservar os mananciais. Com o repasse unificado, tende a perder verba. Maria Dalva Amim resume de forma categórica: “Estamos desesperados”.
A reportagem é de Thais Reis Oliveira, publicada por CartaCapital, 25-11-2019.
Talvez inspirado pelo miraculoso trilhão prometido por Paulo Guedes com a Previdência, o Previne Brasil garante incluir 50 milhões de brasileiros no SUS. O economista Francisco Funcia, ex-diretor da Associação Brasileira de Economia em Saúde, desconfia desse número. Vários estudos, aponta ele, mostram que as cidades tendem a subnotificar os atendimentos. Na letra da lei, todo o brasileiro precisa apresentar o cartão do SUS para dar entrada em hospitais ou postos de saúde, mas falta a muitos municípios a tecnologia necessária para repassá-los à base universal do sistema. “Não foi apresentado pelo governo nenhum estudo técnico que dê base a esse cálculo. Sem isso, nem sequer podemos afirmar que haverá perdas ou ganhos.” A mudança saiu com o aval dos gestores municipais, estaduais e federais, mas sem a aprovação do Conselho Nacional de Saúde. A proposta será discutida pela entidade em dezembro e, pela lei, não pode ser efetivada sem essa análise prévia.
A Associação Brasileira de Saúde Coletiva e outras 11 entidades do setor alertam, em nota, para o endosso do governo a um “SUS para pobres”. Um dos pontos mais controversos, segundo essas organizações, é que o novo programa deixa de priorizar o Estratégia Saúde da Família, cujo contato direto com a população contribuiu enormemente para a redução da mortalidade infantil. Cálculos da Abrasco indicam que, a cada aumento de 10% na cobertura do programa, cai 4,6% a morte de crianças de até 1 ano de idade.
O número de indicadores monitorados cairá de 720 para 21. Eles precisarão ser informados regularmente para que os municípios possam receber recursos federais. Entre eles estão a realização de consultas pré-natais e vacinação em crianças. As entidades contestam. “Considerando que o SUS é subfinanciado e por isso sua gestão encontra dificuldade para se aperfeiçoar. Apesar da política de austeridade fiscal, não se pode pensar em diminuição de recursos, seja o ano que for e em qualquer área do Ministério da Saúde.”
Um dos únicos estudos a calcular eventuais prejuízos é o do Conselho de Secretários Municipais de Saúde de São Paulo. E os resultados não são nada animadores. Para evitar perdas em pleno ano eleitoral, o governo vai repassar 2 bilhões de reais aos municípios. O dinheiro não está garantido no ano seguinte. Sob essa premissa, a entidade prevê que, em 2021, as cidades paulistas perderão, em média, 732 milhões de reais por conta do novo modelo. Segundo a entidade, só 36% da população do estado mais rico do Brasil é cadastrada nos postos de saúde.
O SUS sempre recebeu menos dinheiro que o necessário. O gasto médio mensal das três esferas com a saúde de cada brasileiro é de 104 reais, pouco mais da metade da média mundial (6,8% contra 11,7%), segundo a OMS. O baixo crescimento leva a baixa receita. Que leva à menor capacidade de investimento em políticas públicas. “Tivemos dois anos de recessão a partir de 2014, depois o PIB cresceu perto de 1%, insuficiente para cobrir o rombo dos anos anteriores. Se você tem uma unidade de saúde aberta para atender a população, você não vai fechá-la”, explica Funcia.
Desde 2014, o orçamento federal para saúde, para o SUS, não repõe o valor da inflação, girando em torno de 220 bilhões de reais. Os gastos com a saúde não respeitam, porém, os limites inflacionários. “As despesas aumentam porque o PIB está caindo, e não porque estão de fato subindo”, completa. O Sistema Único de Saúde está espremido pelo teto de gastos e pelo desalento de um cenário econômico que só entusiasma a Avenida Faria Lima.
Além disso, os custos com saúde são altamente dolarizados. Seringas, luvas, equipamentos, remédios… Tudo varia conforme o sobe e desce da moeda americana. Conforme a população fica mais velha e mais pobre, mais sobrecarregada se torna a saúde pública. Os efeitos começam a aparecer. Mesmo alcançando a meta de cobertura vacinal do sarampo de 2019, com 95% das crianças de 1 ano de idade imunizadas, o Brasil ainda enfrenta um surto da doença. Também há risco de uma nova epidemia de poliomielite. Os casos de sífilis explodiram: são 4.000% maiores do que oito anos atrás. Aumentou ainda a incidência de dengue, 600% de 2018 para cá. “Cortar despesas, neste cenário, é tirar direitos”, acrescenta Funcia.
Uma solução de longo prazo é nacionalizar a produção desses insumos. Mas os investimentos em produção local brecaram. Em julho, o Ministério da Saúde suspendeu os contratos para a compra de 19 medicamentos nacionais, por suspeitas de irregularidades e má qualidade de produtos. Este cenário tem se repetido também nos estados. Em São Paulo, o governo corre para desmontar o maior laboratório público de medicamentos do País. E o Instituto Butantan, o principal produtor nacional de vacinas, tem crescido e ampliado recursos para se tornar um dos grandes da big pharma, nem sempre compatíveis com as demandas da saúde pública nacional.
Agora, o SUS vive um processo de desfinanciamento. Uma das promessas do minguado plano de governo de Bolsonaro era, justamente, “fazer mais com menos”. Especialistas da área apontam, porém, que a gestão não é, nem de longe, o principal problemas do SUS. “Aprimorar a administração é sempre necessário, mas não dá para dizer que a saúde tem dinheiro”, diz Funcia. Outra investida recente do governo ao caixa da Saúde é a extinção do DPVAT, o seguro universal contra mortes e acidentes de trânsito. Só no ano passado, a entidade arrecadou quase 4,7 bilhões de reais. Quase metade desse total foi repassada ao SUS. Mesmo sem esse dinheiro, o sistema seguirá obrigado a lidar com as tragédias no trânsito do Brasil, que, em nove estados brasileiros, mata mais que os crimes violentos.
Noutra ponta, parece haver por parte do governo um esforço para compensar eventuais perdas estimulando planos de saúde “populares”. O ministro Luiz Henrique Mandetta defende afrouxar as regras para o setor. É um erro, diz Funcia: “Primeiro, não se pode falar em rede de atenção de saúde privada no Brasil. Segundo, porque os casos de complexidade vão ser repassados, mais uma vez, ao SUS”.
Hoje, sete em cada dez brasileiros dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde. O sistema também oferece assistência integral e gratuita a soropositivos, pacientes renais crônicos e com câncer, tuberculose e hanseníase. E opera o maior modelo público de transplantes de órgãos do mundo. Mais de 90% dessas cirurgias realizadas no País foram financiadas pelo SUS. E ainda há gargalos. A cobertura média é de 65%. E mais da metade dos gastos (53,9%) de um paciente com a saúde ainda sai de suas próprias economias, seja por meio de planos privados, seja com o desembolso em consultas e operações. Em 2000, essa taxa chegava a quase 60%. A média mundial é de 39%. Sem dinheiro, não há, no entanto, como o SUS se expandir.
É possível interromper essa trajetória? O ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, hoje deputado federal, pediu a realização de uma audiência pública e de seminários estaduais para debater o Previne Brasil. A audiência está marcada para a quarta-feira 27. Ao menos três projetos de decreto legislativo tentam cancelar a portaria. Dois tramitam na Câmara e um no Senado.
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Proposta do governo para o SUS desampara ainda mais as cidades - Instituto Humanitas Unisinos - IHU