04 Dezembro 2019
A relevância de Greta Thunberg está em pegar num problema planetário e trazê-lo à atenção da única audiência que o pode resolver, que é a da humanidade inteira.
O artigo é de Rui Tavares, deputado no Parlamento Europeu, publicado por Público, 04-12-2019.
Eis o artigo.
Foi só há três anos, em 2016, o ano do “Brexit” e de Trump, que de repente o nacionalismo virou moda intelectual, e mesmo à esquerda não faltou quem inventasse razões para o justificar. Que toda a política era nacional, dizia-se. Que não podia haver democracia para lá das fronteiras do estado-nação, argumentava-se, porque só no estado-nação residia uma comunidade de identidade e destino que poderia decidir por si mesma. Que não havia povo europeu nem cidadania mundial que permitisse fazer as coisas de outra maneira. E que, no fundo, o lugar para o cidadão era dentro da sua comunidade nacional. Lá fora era o domínio da política internacional, onde contavam os governos nacionais, ou o domínio da globalização, onde contavam as multinacionais. Sê português, vietnamita ou boliviano e cala-te. Se pensas que és cidadão do mundo, és cidadãos de lugar nenhum.
O que bastou para refutar tudo isto? Uma miúda com um cartaz, chamada Greta Thunberg, a fazer greve à escola nas sextas-feiras. Começou na Suécia, mas poderia ter sido noutro país qualquer. E ter sido num país rico e desenvolvido talvez tenha ajudado, mas não nos deve fazer esquecer que o fenômeno anterior mais semelhante, o de Malala Yousafzai, veio do Paquistão. O que provam Malala Yousafzai, com a causa da educação das meninas, como Greta Thunberg, com a causa do combate às alterações climáticas, é que a política global não só é possível, como é urgente e a única que nos pode salvar perante a enormidade dos desafios que enfrentamos agora neste planeta. Num certo sentido, aliás, a política global é a única que existe: o humano é o animal político e a política acompanha-nos onde quer que estejamos; a política regional, nacional ou continental são apenas aspectos parcelares que decorrem dessa natureza humana universal.
O que sempre me impressionou na voga nacionalista entre os intelectuais, incluindo os de esquerda, no ano de 2016 e seguintes, foi não só que os seus argumentos eram mais repetições de um dogma que não se preocupavam em demonstrar, requentando teses direitistas do período de entre-guerras, como sobretudo que esses argumentos se destinavam a cortar as pernas a qualquer desejo de mudança efetiva, redirigindo a política precisamente para a escala nacional onde pouco se poderia fazer. Para mais, tais posicionamentos pareciam-me incorrer num imperdoável desperdício de uma das melhores fontes de energia política que temos disponíveis: o instintivo cosmopolitismo dos jovens globais, já nascidos numa cultura e numa esfera de comunicação muito integrada.
Mas o argumento mais forte dos nacionalistas metodológicos, de esquerda ou de direita, foi sempre o da dificuldade de fazer política na prática ao nível global. É verdade que para quem não é um governo nacional, uma empresa multinacional, ou uma organização como a NATO ou a ONU, a escala da política global parece imensa e inatingível. Não há parlamentos globais (o máximo que temos é o Parlamento Europeu, maior parlamento transnacional do mundo); não há praticamente partidos globais; os tribunais globais são incipientes e inacessíveis para a maior parte dos cidadãos. Para além disto tudo, as dificuldades das diferenças linguísticas, das distâncias geográficas e culturais e da quase impossibilidade de reunir recursos e influência quando não se é um milionário limitam o exercício de alguma influência individual na política global aos ativistas de um punhado de ONG como a Amnistia Internacional ou a Greenpeace.
O caso de Greta Thunberg, embora não seja inteiramente novo, permite pensar que talvez não seja assim tão difícil ter ação política individual à escala global. Claro, nem toda a miúda que saia para a rua com um cartaz se tornará numa celebridade planetária, mas a questão não é essa. A questão é que Greta Thunberg não se teria tornado numa celebridade planetária se não fossem todos os outros miúdos a saírem às ruas de cartazes nas mãos, e são os milhões de miúdos nas ruas de todo o mundo que fazem a diferença. Cada um deles é parte de um movimento global, e portanto cada um deles é já motor daquela política global que ainda há três anos nos juravam ser impossível existir.
É por isso que aqueles que se enfadam e criticam Greta Thunberg por questões de estilo ou de discurso se enganam no alvo. A relevância de Greta Thunberg não está em dizer tudo certo ou em fazer as coisas como os comentadores instalados gostariam que ela as fizesse. A relevância de Greta Thunberg está em pegar num problema planetário e trazê-lo à atenção da única audiência que o pode resolver, que é a da humanidade inteira. Quem discorda, tem de arranjar maneira de o fazer num diálogo à mesma escala. Toda a política é global.
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Greta Thunberg: toda a política é global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU