27 Novembro 2019
"Não buscamos a perfeição. Mas nossa geração cometeu um erro ao eliminar o sentimento de culpa". O exemplo dos dois papas. "Eles indicam um amplo horizonte: conversem com todos". E depois o tema da morte. "É luz, não medo".
A entrevista é de Michele Brambilla, publicada por Quotidiano.net, 24-11-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
A Igreja do Papa Francisco também é isso: uma mensagem no celular de um cardeal arcebispo que, ignorando formas e protocolos, escreve diretamente para você: "Gostaria de continuar a sua provocação. Aceita? Obrigado e bom domingo, fique com Deus". A “provocação” são dois editoriais publicados neste jornal nos dias 14 e 31 de outubro. Tema: mas a Igreja ainda fala sobre Deus e a morte? Ou apenas de questões morais terrenas? Ecologia e imigrantes e - eventualmente, mas cada vez menos – de sexo? E aqui estamos falando de Deus e da morte no gabinete de Dom Matteo Zuppi, em um prédio onde são visíveis os sinais do esplendor do passado e da sobriedade do presente.
Cardeal Zuppi, a Igreja não fala mais de Deus?
Se você me pergunta se nós, padres, estamos errando um pouco ao celebrar a missa, lhe respondo que ainda temos muito a aprender: tanto na ars celebrandi quanto naquela predicandi. O Papa Francisco nos convida a começar pelo evangelho, usar imagens, não falar demais e explicar Jesus evitando aqueles que você chamaria justamente de moralismos. Acabam com a alegria da proclamação evangélica, iludem de ter dito a coisa certa enquanto afastam do amor radical, mas extremamente humano de Jesus.
Há muita atenção à terra e pouca ao céu? Muita moral e pouca fé?
Atenção. O evangelho está na história. A Palavra de Deus entra na história a todo momento: torna-se fato, evento. Então, eu gostaria de ser claro: falar de Deus leva a falar dos homens na história e ensina a amar homens concretos: todos, especialmente os pobres. A fé é sempre encarnada. Mas certamente se eu falo apenas dos fatos da vida sem falar de Deus, e falo do evangelho como se fosse um regulamento ... O moralismo afasta tanto da história quanto do evangelho.
No dia 1º de novembro, festa dos santos, ouvi a homilia de um padre de Bolonha, Dom Carlo Grillini, que disse: "A Igreja antes de fazer um santo faz dele um beato. E o que quer dizer beato? “Significa feliz. Quer dizer que, para se tornar um santo, você não precisa suportar esforços, deveres, privações: você deve ser feliz, porque seguir a Cristo não é uma renúncia a si mesmo. Uma pessoa triste não pode se tornar um santo".
Ele está certo! A bem-aventurança reduzida à lei se torna enfadonha. Faz buscar a felicidade em outros lugares, entre aquelas ofertas sem fim do consumismo que nutre o eu. Mas o ‘eu’ fica bem se ama os outros! A felicidade do Evangelho leva ao outro. As bem-aventuranças evangélicas não são uma felicidade menor, pelo contrário, são o caminho da alegria, de uma alegria humana, plena, não de sacrifício.
E então o Evangelho significa "boas novas", ou estou errado?
Não se engana. Muitas vezes o reduzimos a lei ou a um tranquilizante. Em vez disso, a ‘boa notícia’ é que sua vida é cheia de significado e que o Senhor não se opõe ao eu, ao contrário, o realiza plenamente.
A moral - e não o moralismo - é a consequência da vinda na história de Jesus?
Claro. Primeiro o amor, e depois como vivê-lo. Primeiro, o anúncio desse fato da vinda de Jesus. O que, é claro, nos lembra a necessidade de viver de uma determinada maneira, caso contrário, caímos no erro oposto ao moralismo, isto é, no relativismo: ‘la morale c'est moi’. ‘A nossa geração eliminou o sentimento de culpa e é um erro, porque os sentimentos de culpa podem ajudar a entender o pecado. Mas, dito isso ...
Dito o quê?
Nós devemos fazer as contas com a nossa fragilidade. Os santos são pessoas que tiveram um senso muito forte de seus pecados: mas de uma maneira muito, muito humana. Em vez disso, muitas vezes confundimos a santidade com a perfeição. Mesmo com as melhores intenções, indicamos modelos de perfeição que acabam se tornando desumanos. Parecia que era mais uma questão de não cometer erros do que de amar.
Mas onde está Cristo? Onde se encontra? Não é apenas uma ideia?
Jesus você o encontrou no pão, na palavra e nos pobres, os três ‘P’ que o Papa Francisco nos disse em Bolonha: mas sempre através das pessoas. Ele não escreveu um livro mágico, fora do tempo e da humanidade: deixou tudo para algumas pessoas, os discípulos, para que encontrassem outras pessoas. O Papa Francisco, quando insiste na conversão missionária, quer dizer isso: devemos comunicar aos outros a presença de Cristo.
Mas Nietzsche dizia: cristãos, com aqueles rostos tristes, quem pensam convencer?
Nisso ele estava certo. O Papa Francisco diria que, com certos rostos tipo funeral ou múmia, afastamos do Evangelho. Mas não é apenas questão mímica. É uma boa vida, humanamente plena que comunica o Evangelho aos outros.
O cristianismo acabou?
Sim. No sentido de que não há mais um pertencimento hereditário ou sociológico. Resistem traços de tudo isso, que devemos preencher com significado. Mas ser cristão é cada vez mais uma escolha interior, pessoal, que devemos viver na cidade dos homens, da qual devemos ser o sal.
Retorna-se aos tempos dos primeiros cristãos? Quando eram poucos, eram fermentos?
Sim, mas o fermento é feito para toda a massa. Não é para alcançar apenas alguns. Tanto Bento quanto Francisco indicam um horizonte muito amplo: é preciso falar com todos. E isso assusta um pouco o fariseu que está em nós.
Está se referindo àqueles que se ofendem porque o Papa, ou você mesmo, se encontram com pessoas consideradas inimigas?
Vejo que certos encontros geram escândalo. Mas Jesus veio para os pecadores, não para os justos. E condena o pecado, não o pecador. É o fariseu que condena o pecador. É preciso viver a paixão pelo outro, sem confusões, mas sem fechamentos.
Vamos à morte, eminência. Nós a removemos.
A idolatria do eu e do bem-estar gera uma sensação de onipotência. E quando não satisfazemos nossos desejos, que são nossas pretensões, entra o rancor. Queremos amaldiçoar a vida. É a patologia do bem-estar, que nos torna muito frágeis diante do mistério do mal. Assim, achamos difícil aceitar qualquer limite, a começar pela morte. Você sabe o que nossos avós diziam?
O que eles disseram?
Eles falavam da ‘santa resignação’. Isso me incomodava, porque eu era jovem e não podia aceitar a resignação. Mas naquela expressão havia uma profunda sabedoria: reconhecer e aceitar que há um limite. Caso contrário aparece obstinação ou anulação. Os nossos avós usavam outra palavra: ‘Providência’. Esta também me incomodava, porque pensava: somos nós que devemos nos empenhar. Mas Providência significa que há mais amor maior, uma proteção que não depende de você. O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, diz que é um lampejo de luz que permite que você se sinta infinitamente amado, mesmo nas situações mais difíceis.
Montanelli lhe diria: isso demonstra que o cristianismo é um consolo que os homens se dão para suportar a dor e a morte.
É o verdadeiro sofrimento dos leigos, que anseiam por luz, mas não conseguem vê-la. E, portanto, sofrem muito com a angústia do fim.
Poderíamos perguntar a Deus: você não poderia ter nos dado mais luz para acreditar?
"O nosso não é um Deus que ofusca com a sua luz. A própria ressurreição é confiada a testemunhas: ainda por cima mulheres, que na época nem eram tomadas em consideração. Quero dizer: Deus não dá uma prova irrefutável de sua existência: se ele o fizesse, não seríamos mais livres. Seríamos autômatos, robôs forçados a obedecê-lo. Em vez disso, amar a Deus é uma escolha de amor, não um dever. Deus, porém, nos dá muitos sinais".
Pascal disse que há luz suficiente para quem quer ver e escuro o suficiente para quem não quer ver. É assim?
"Eu diria que sim".
A Igreja também removeu o tema da morte?
Talvez nós também respiremos um ar que o oculta. Penso na unção dos enfermos. Há quem diga: é melhor que a pessoa que está morrendo não entenda, caso contrário, fica assustada. Outros dizem: se o moribundo não entende, o sacramento não vale. As duas posições estão erradas. O sacramento é sempre válido e o moribundo consciente não fica assustado, mas é ajudado. De qualquer forma, quem tem uma cruz como símbolo não pode deixar de falar da morte.
É difícil para o homem de hoje, aceitar a cruz como símbolo.
Primeiro, para citar Francisco mais uma vez, lembro que não há Sexta-Feira Santa sem Páscoa, não há cruz sem ressurreição. O cristão ama a vida, não a morte. Mas não foge, não a esconde, a enfrenta para vencê-la. É claro que a cruz é um sacrifício: mas com o amor você a pode entender. Posso contar-lhe um episódio?.
Conte.
Alguns anos atrás, celebrei o funeral de um padre que morreu repentinamente. Na semana anterior, ele havia celebrado o funeral de uma criança, e em minha homilia citei algumas frases da sua homilia. Alguns meses depois, me encontrei com os pais daquela criança morta. O pai começou a chorar e me disse: ‘O senhor cometeu um erro na homilia. Disse que meu filho tinha 12 anos. Em vez disso, ele tinha 10: e eu teria dado a minha vida para que ele pudesse chegar até os 12’. é o amor que explica a cruz: dar a própria vida por dois anos da vida do amado.
Se Deus nos ama, por que a morte?
A morte parece realmente impensável, inaceitável. É injusta. Como é possível? Mas é a força do Mal, a consequência do Mal. Erra quem vê o maligno em todos os lugares. Mas existe.
Você deve ter acompanhado muitas pessoas até o momento da morte, imagino. Que lembranças tem?
Eu vi de tudo. Aqueles que morrem com serenidade, confiante como acrobatas que se jogam no vazio sabendo que alguém os agarrará. Ouvi alguns pedidos tocantes, como aquele do bom ladrão: ‘Lembre-se de mim quando eu entrar no seu reino’. É o poder do amor, que desorienta até mesmo a morte. Lembra o filme de Bergman, O Sétimo Selo?
Assisti muitos anos atrás.
Mesmo lá, no final, a cruz vence. Porque ele joga xadrez com a morte e perde: mas na realidade vence, porque carrega a morte atrás de si, longe dos dois amantes que se salvam.
Como você imagina o além?
Como uma luz. Uma plenitude de luz sem diafragmas, na qual tudo é esclarecido e tudo é reconciliado. Até o pecado, a escuridão, as cicatrizes da nossa vida: tudo é plenamente amado. E depois o amor com os outros: aquilo que dividia, desaparece. Todos seremos uma só coisa.
Você tem medo da morte?
Sim. Da dor física, principalmente. E então o medo daquele salto que revela a nossa fé. O medo do julgamento. O medo de Deus em suma.
Mas eu queria saber outra coisa: isto é, se você não tem medo de que, na realidade, não exista nada. E que tenha apostado sua vida em uma ilusão.
Não. Eu não tenho esse medo. A percepção da eternidade do amor é instintiva em todos. Penso naquela música de Guccini sobre uma garota que morreu enquanto ‘corre pela estrada’: quero pensar que você ainda vive e como então sorri. O amor não pode morrer. Além disso a fé já me deu, nesta vida, cem vezes mais. Fui feliz. Entendo que Jesus quer a felicidade que somente o amor pode dar, e quer que essa felicidade não acabe.
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O cardeal Zuppi e o evangelho hoje. “Até os santos são pecadores” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU