28 Outubro 2019
Chile, Equador, Bolívia, Venezuela, Argentina: sejam de direita, sejam de esquerda, governos se encontram sob pressão em países sul-americanos. O que está por trás das convulsões sociais que incendeiam a região?
A reportagem é de Thomas Milz, publicada por Deutsche Welle, 26-10-2019.
Protestos no Chile. (Foto: Carlos Figueroa/WikiCommons)
Protestos violentos contra o aumento da gasolina no Equador, manifestações cada vez mais acirradas contra a reeleição controversa de Evo Morales na Bolívia, uma mudança dramática iminente diante do caos econômico na Argentina e a agonizante Venezuela: governos de esquerda e de direita se encontram à beira do abismo em países da América do Sul.
No Chile, onde os protestos continuam apesar das concessões do governo, o único bastião liberal da região está de pernas bambas. Esse turbilhão pode atingir até mesmo o Brasil, que vivenciou sua própria onda de manifestações em 2013.
No início de outubro, o Equador foi o primeiro país a testemunhar protestos violentos que forçaram o presidente Lenín Moreno a suspender medidas de austeridade econômica. "No Equador, ficou claro afinal o que as pessoas querem. Ou seja, mais direitos e manutenção de subsídios", diz à DW o cientista político Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Não foi por acaso que o presidente esquerdista Moreno introduziu medidas de austeridade. Ali, "a esquerda também não pode mais governar como antes, como sob Rafael Correa [2007-2017], porque o Equador não tem mais dinheiro", explica Stuenkel.
A situação econômica no Chile é, de fato, melhor. "No Chile, é muito mais difícil identificar o que as pessoas querem, e por isso estou mais pessimista nesse caso", avalia o cientista político.
No país considerado um modelo do liberalismo econômico, com sua economia completamente privatizada e crescimento robusto, mais de um milhão de pessoas foram às ruas novamente nesta sexta-feira (25/10). Após 18 mortos na recente onda de protestos, o presidente Sebastian Piñera se encontra sob pressão.
"Por um lado, todos reconhecem que o país fez um grande progresso", afirma Stuenkel. "Mas, ao mesmo tempo, isso gerou expectativas que não puderam ser cumpridas e levou a frustrações."
"Na realidade, nem todo mundo está em situação melhor e, em certas áreas, o Chile continua sendo um país em desenvolvimento, com uma elite típica de um país em desenvolvimento que não parece conhecer realmente seu país, e é por isso que os protestos são contra todos, contra a esquerda e a direita", completa. Segundo Stuenkel, isso deve trazer ao plano representantes da antipolítica.
"Os liberais brasileiros sempre colocaram o Chile como sua grande referência na América Latina. É uma imagem exagerada que deixou de lado muitos dos problemas sociais. Em particular, foi subestimado o impacto da desigualdade socioeconômica no país", aponta Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).
O cientista político lembra ainda que há anos tem havido ondas de protestos contra a privatização da política educacional chilena.
Mas a cegueira para os problemas sociais é universal, diz Santoro. "Não é algo exclusivo dos liberais. A esquerda brasileira, por exemplo, tem um problema grande em aceitar as dificuldades da Venezuela, da Bolívia e de Cuba. A vida política na América Latina está hoje muito polarizada, e isso acaba refletindo também nas relações internacionais. Fica muito difícil ter uma conversa aberta sobre os problemas."
Tal conversa aberta seria urgentemente necessária. "Houve um boom de commodities nos anos 2000, e os países da América do Sul cresceram muito. Mas talvez não tenham aproveitado o momento para fazer reformas importantes, tendo se preparado para tempos de vacas magras", avalia o cientista político e professor do Insper Carlos Melo, em entrevista à DW. "Diferente do que ocorreu na Ásia, onde se investiu fortemente em educação e tecnologia. E se desenvolveram."
O declínio nos preços das commodities contribuiu para a queda da esquerda no Brasil, em 2016, e na Argentina, em 2015. Mas mesmo os novos governos conservadores de direita não encontraram soluções, avalia Melo.
"Fez-se uma opção conservadora, que talvez tenha sido radical demais, cheia de vingança e de raiva contra a esquerda, e passado do ponto. E se preocuparam de menos em fazer um bom diagnóstico de quais seriam os problemas econômicos. Então, parece que está chegando a vez da crise dos governos conservadores."
Na Argentina, os peronistas provavelmente vencerão a eleição presidencial neste domingo, e Alberto Fernández substituirá o liberal-moderado Mauricio Macri. No entanto, devido aos cofres vazios, Fernández terá que governar de forma mais pragmática do que Cristina Kirchner, presidente do país de 2007 a 2015 e agora vice em sua chapa, avalia Oliver Stuenkel.
Também está em aberto qual caminho deverá seguir o Uruguai, que, assim, como a Argentina, vai às urnas neste domingo.
"Não é uma crise dos liberais, da direita nacionalista ou da esquerda latino-americana", afirma Santoro, da Uerj. "É uma crise regional, que tem afetado todas as correntes políticas e partidárias. Não há hoje, na América Latina, um governo que seja capaz de oferecer uma resposta para os problemas sociais e econômicos da região, e a maior parte dos países está em recessão ou com crescimento muito baixo, mais fraco que a média global."
Novos problemas se anunciam com o Brexit e com a guerra comercial entre os Estados Unidos e a China. "A América Latina tem sentido essas turbulências de uma maneira muito mais dura. E tem faltado, entre os governos e intelectuais latino-americanos, uma reflexão da importância desse cenário internacional, talvez pelo momento muito polarizado que a gente vive na região", diz Santoro.
"A maior parte das discussões acaba sendo um blame game (jogo de culpar o outro) entre os vários partidos e grupos ideológicos. Como se apenas um deles fosse o culpado por essa crise. Quem dera fosse isso, pois bastaria uma eleição para resolver o problema", completa o cientista político.
Segundo ele, nem a esquerda nem a direita investiram na modernização. "Em última instância, existe a dificuldade de se inserir numa economia global mais aberta, mais competitiva. E há uma dificuldade das elites nacionais em promover as reformas necessárias em seus países para combater a desigualdade, para fornecer um sistema educacional de qualidade. Todas essas questões são fundamentais, mas estão paralisadas."
Stuenkel, da FGV, lembra como os atuais protestos no Chile, também iniciados pelo aumento da passagem de transporte público e que mais tarde ganharam novas demandas, são semelhantes aos registrados no Brasil em 2013.
"Trata-se de demandas igualmente difusas que não puderam ser resolvidas por reformas como, por exemplo, na política previdenciária. Ninguém pode conseguir isso simplesmente com um truque de mágica. E vimos que efeitos isso provocou no Brasil", diz o cientista político, referindo-se à queda da presidente de esquerda Dilma Rousseff (2011-2016) e à eleição do populista de direita Jair Bolsonaro, como um resultado da agitação social em longo prazo.
Mas também Bolsonaro está preocupado com a possibilidade de os protestos chegarem ao Brasil. Na última quinta-feira, o presidente chamou as manifestações no Chile de "atos terroristas" e disse que as tropas brasileiras precisam estar preparadas para manter a ordem.
A economia brasileira está estagnada há cinco anos, e justamente uma cópia do modelo chileno proposta pelo "Chicago boy" Paulo Guedes deve ser agora a solução. "O Chile não é só um revés no discurso, mas também um alerta", adverte Carlos Melo, do Insper. "Qualquer aumento de 20 centavos pode ser a gota d'água."
Devido à dependência do mercado global de commodities e ao turbulento comércio global, é provável que a oscilação continue nos países da América do Sul, aponta Stuenkel. "É uma montanha-russa que não se consegue controlar. Às vezes funciona bem, às vezes mal, mas basicamente é sempre imprevisível. E assim se está condenado à instabilidade política, porque é muito difícil planejar economicamente."
Segundo o especialista da FGV, as iminentes turbulências deverão custar, mais cedo ou mais tarde, os cargos de presidentes, sejam eles de esquerda ou de direita, como Evo Morales, Sebastian Piñera, Jair Bolsonaro e também Alberto Fernández. "A festa das commodities acabou, e toda a região está pegando fogo."
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A agitação social que inflama a América do Sul - Instituto Humanitas Unisinos - IHU