24 Setembro 2019
Carlo Molari, teólogo italiano, comenta a importância e o significado da nomeação do Papa Francisco, Michael Louis Fitzgerald como cardeal. A história recente do novo cardeal está intimamente relacionada com o ‘caso Dupuis’. Uma escolha reparadora.
O artigo foi publicado por "Rocca" n. 19, outubro de 2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
As recentes nomeações cardinalícias foram uma confirmação dos critérios que norteiam as escolhas do Papa Francisco. Algumas são escolhas reparadoras.
Significativo é o caso de Michael Louis Fitzgerald (nascido em 1937), eleito cardeal pelo papa Francisco, mas tendo ultrapassado o limite dos 80 anos, não poderá participar de eventuais conclaves.
A razão para a nomeação é outra e está em sua história recente. Desde junho do ano passado, mencionei várias vezes o livro Il mio caso non è chiuso (O meu caso não está encerrado, em tradução livre, Emi, Bolonha, abril de 2019), onde o jornalista Gerard O'Connell publica as numerosas conversas que teve com o amigo teólogo Jacques Dupuis (1923-2004) durante os últimos anos de sua vida. Na introdução (p. 27-35), ele lembra que na missa fúnebre entre os concelebrantes, esteve presente também o arcebispo Michael Fitzgerald, desde 1º de outubro de 2002 presidente do Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso - PCDI, O'Connell escreve: “ele era o único representante do Vaticano na missa, mas sua presença representava uma homenagem significativa ao homem que, com sua consultoria que durou dez anos [1985 -1995 cf. p. 81] havia proporcionado uma rica contribuição ao Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso" (ibid. p. 31-32).
Em uma das muitas conversas, ele questiona Dupuis sobre seu trabalho "como o redator principal do único documento importante que o PCDI havia produzido durante os dez anos de sua consultoria" (p. 83): Diálogo e anúncio. Reflexões e orientações sobre o diálogo inter-religioso e sobre a proclamação do Evangelho de Jesus Cristo, publicado em 1991. Fitzgerald, então secretário (de 22 de janeiro de 1987) do Conselho havia encarregado o Padre Dupuis de elaborar o primeiro rascunho. Ele começou a trabalhar com entusiasmo, mas admite que o documento "teve uma gestação difícil, durando vários anos" (ibid. p. 84), com o resultado de "pelo menos cinco rascunhos sucessivos" (p. 85).
Em determinado momento, o cardeal Jozef Tomko, prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, solicitou que a comissão também incluísse membros de seu dicastério. Dupuis observa que isso complicou o trabalho, mas "aliviou minha carga pessoal" (ibid., p. 85) O secretariado para os não-cristãos, como era chamado inicialmente, já tinha uma tradição no tema. Em 1984, tinha publicado um documento intitulado A atitude da Igreja em relação aos seguidores de outras religiões. Reflexões e diretrizes sobre diálogo e missões. Seu redator principal havia sido Marcello Zago, então eleito secretário e depois superior geral dos Oblatos de Maria Imaculada. Quanto à função do diálogo, dizia-se que "os cristãos encontram os seguidores de outras tradições religiosas para caminhar juntos rumo à verdade" (n. 13).
Dupuis lembra que, em uma sessão de trabalho, ele defendeu essa declaração contra o protesto radical do cardeal Jozef Tomko, que a rejeitava: "Eu apontei educadamente que esse documento havia recebido a aprovação do papa e havia sido publicado na Acta Apostolicae Sedis (ibid. p. 86). Além disso João Paulo II na encíclica Redemptoris Missio (7 de dezembro de 2002), escrita no 25º aniversário do decreto conciliar Ad Gentes (7 de dezembro de 1965), havia escrito: 'A presença e atividade do Espírito não tocam apenas os indivíduos, mas a sociedade e a história, os povos, as culturas e as religiões. De fato, o Espírito está na origem dos nobres ideais e das iniciativas de bem da humanidade em caminho: ‘Com admirável providência, ele dirige o curso do tempo e renova a face da terra’ (Concílio Vaticano II, Gaudium et spes, 26). O Cristo ressuscitado ‘opera no coração dos homens com a virtude do seu Espírito, não apenas despertando o desejo do mundo futuro, mas por isso mesmo também inspirando, purificando e fortalecendo essas generosas intenções, com as quais a família dos homens tenta tornar mais humana a própria vida e submeter a esse fim toda a Terra' (ibid., GSp 38, cf. 93). É também o Espírito que espalha as 'sementes do Verbo’, presentes nos ritos e culturas, e as prepara para amadurecer em Cristo (Lumen gentium, 17; Decreto sobre a atividade missionária da igreja Ad gentes, 3,15) (Redemptoris Missio n. 28)".
Logo após a encíclica, escreve: “O diálogo inter-religioso faz parte da missão evangelizadora da igreja. Entendido como método e meio para um conhecimento e enriquecimento mútuos, não está em contraposição com a missão ad gentes, aliás, possui vínculos especiais com ela e é uma sua expressão”. "Deus atrai a Si todos os povos, em Cristo, desejando comunicar-lhes a plenitude da sua revelação e do seu amor; Ele não deixa de Se tornar presente de tantos modos, quer aos indivíduos quer aos povos, através das suas riquezas espirituais, das quais a principal e essencial expressão são as religiões" (João Paulo II Redemptoris Missio, n. 55). “O diálogo não nasce de táticas ou de interesses, mas é uma atividade que tem suas próprias motivações, exigências, dignidades: é exigido pelo profundo respeito por tudo o que o Espírito operou no homem, que sopra onde quer.
Com isso a igreja pretende descobrir os ‘germes do Verbo’ (Ad gentes, 11, 15), ‘raios da verdade que ilumina todos os homens’ (Nostra aetate, 2) germes e raios que se encontram nas pessoas e nas tradições religiosas da humanidade. O diálogo baseia-se na esperança e na caridade e trará frutos no Espírito" (ibid. n. 56). No entanto, Dupuis observa que o papa não tira "de tais afirmações as conclusões que parecem derivar logicamente" "nem jamais conclui que as tradições religiosas são, portanto, ‘vias’ ou ‘caminhos’ da salvação" (ibid., p. 271).
Posteriormente, Dupuis observa com muitos detalhes a apresentação pública de seu livro Verso una teologia cristiana del pluralismo religioso (Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, em tradução livre), publicado em outubro de 1997. Recordo três episódios.
O primeiro diz respeito à apresentação em Roma, em 22 de novembro de 1997. D. Fitzgerald disse: "O livro seria extremamente útil em faculdades teológicas, nos institutos teológicos, nos seminários e nas casas de formação ao redor do mundo" (Il mio caso, p. 149). Depois de algumas perguntas feitas ao autor, ele concluiu: "Não tenho dúvidas de que [o livro] permanecerá por muito tempo a melhor obra de síntese e o texto padrão de referência" (ibid. p. 150). Dupuis observa: "isso foi demais para o Cdf" e conta que "quando os rascunhos da revista Pro Dialogo que continham o discurso de D. Fitzgerald foram enviados pelo PCDI à Congregação [para a doutrina da fé] para a aprovação (como são obrigados a fazer para qualquer publicação) o texto do discurso teve que ser retirado" (ibid. p. 150). Ele só reapareceu na revista quatro anos depois e com fórmulas menos exigentes.
"A última frase foi transformada em: ‘pode-se dizer que Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso oferece uma síntese muito útil e que provavelmente continuará sendo uma obra clássica de referência por muito tempo’. A diferença entre as duas versões da frase indica a obediência imposta ao PCDI pelo CDF" (ibid. p. 150).
A segunda intervenção em defesa do padre Dupuis foi feito pelo D. Fitzgerald no discurso A Pontifícia Universidade Gregoriana e o diálogo inter-religioso realizado no 450º aniversário da fundação do Colégio Romano (1551-2001). Ele expressou sua gratidão "ao padre Jaques Dupuis por seu trabalho pioneiro no setor. Tive a honra e o prazer de estar associado à apresentação em sua universidade de seu livro Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso"(ibid. p. 150).
Quando em 1 de fevereiro de 2006 foi publicada a nomeação de D. Fitzgerald, Presidente do Conselho Central, como núncio no Egito, surgiram perguntas sobre o motivo desse rebaixamento.
A agência de notícias News de 20 de fevereiro de 2006, ao sugerir alguns possíveis motivos, relata três episódios. Foi criticada a D. Fitzgerald "a organização de um simpósio no Catar em 2004, com a participação de membros do movimento extremista da Irmandade Muçulmana, incluindo o Sheik Yussef al Qaradawi; mas também sua participação em um Festival da Fé, realizado no mesmo ano no Kentucky, por iniciativa da Cathedral Heritage Foundation, organização que defende um encontro entre as religiões, dispostas a deixar de lado qualquer reivindicação de verdade em nome da paz". Em particular, um terceiro evento também envolve o Padre Dupuis. "Em 2003, causaram discussões algumas de suas declarações proferidas à margem de um congresso realizado em Fátima. Naquela ocasião, foi ventilada a ideia de transformar o santuário mariano em um centro inter-religioso, onde cada confissão pudesse se encontrar. Projeto apoiado por um dos convidados, o teólogo Jacques Dupuis (já "processado" pela Congregação para a Doutrina da Fé por causa de sua ideia sobre o pluralismo religioso). "A religião do futuro será uma convergência geral das religiões em um Cristo universal que satisfará a todos", disse Dupuis, explicitando que "o Espírito Santo opera e está presente nos textos sagrados hindus, budistas, cristãos e não-cristãos". No dia seguinte, Dom Fitzgerald não teve problemas em afirmar que "o padre Dupuis nos explicou a base teológica para estabelecer relações com membros de outras religiões".
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A nomeação dos novos cardeais e o caso Dupuis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU