16 Setembro 2019
"A genialidade do filme (Bacurau) é que ele não se esgota num momento histórico. Não é um filme de tese ou escrito camufladamente apenas para o Brasil de hoje. Os autores fizeram uma obra perene. Mas, a sua universalidade agônica, que transcende uma situação determinada, permite que cada um o viva intensamente a partir de seu mundo concreto", escreve Luiz Alberto Gomez de Souza, sociólogo.
Acabo de voltar do filme Bacurau. Algumas análises alambicadas elogiam o filme mas destroem seu conteúdo radical. Muitos críticos trazem a lembrança de westerns americanos, o que é uma forma sutil e enganosa de sair do centro concreto da trama. Coisa de analistas querendo resvalar em sutilezas acadêmicas e pousar de bem informados.
(Foto: Reprodução YouTube)
A realidade, no fundo da narrativa, é simples e cortante. Um sertão profundo e pulsante é ameaçado por brasileiros do “sul maravilha” que não o entendem, na figura de dois motoqueiros e por um grupo de americanos mórbidos e sedentos de sangue, capitaneados por um alemão nazista.
A situação daquela cidadezinha fora do mapa, dez anos adiante de nós, é única e terrível e com isso, paradoxalmente universal. O clima de Grande Sertão: Veredas volta a todo momento. Não há heróis e bandidos, em desenho maniqueísta, mas o grande contexto é o enfrentamento do mal institucionalizado, por um bem num primeiro momento contraditório. E haverá por fim a resistência, inevitavelmente feroz, de uma comunidade ameaçada. Temos uma figura emblemática em um personagem que vem dos fora da lei, aparentemente integrado, e que volta a suas origens e chama um grupo rebelde que tem muito a ver com o grupo de Zé Bebelo, no sertão de Guimarães Rosa.
Uma população resiste ocultando-se silenciosa, e sai afinal, destruindo com raiva incontida os invasores doentios e necrófilos. Estes teriam chegado com o apoio do poder político, na pessoa de um prefeito venal, uma alegoria que nos desvenda com nitidez um poder que temos diante de nós. O político é enxotado, de costas, com um capuz insultante. A união do povo será fundamental. Violenta e feroz, como não poderia ser de outra forma naquele contexto da aridez e solidão sertaneja.
Um crítico chegou a dizer que o paralelo com a situação atual era um aspecto superficial e enganoso da trama. Maneira intelectual e desvertebrada de ter medo de ir ao fundo do drama daquela cidadezinha perdida, sinal vivo do problema social e político de nossos dias.
O filme me fortaleceu na necessidade de denunciar alienígenas estrangeiros invasores, com a conivência de brasileiros culturalmente alienígenas. Isso me tocou profundamente. Ao terminar não me contive, levantei-me e bradei, alto e bom som, contra os estrangeiros invasores, setores nacionais ligados a eles e um governo cúmplice e canalha. Houve aplausos aqui e ali. Mas ergui minha voz numa plateia majoritariamente silenciosa, talvez comovida, inquieta, mas quem sabe também em parte covarde ou incapaz de ir ao fundo de uma indignação indispensável. O silêncio de um rebanho dócil é o pior impedimento para uma ação política indignada.
Lembro Miguel Hernández nas trincheiras da guerra civil espanhola:
"Los bueyes doblan la frente, impotentemente mansa... No soy de un pueblo de bueyes,.. Quién habló de echar un yugo sobre el cuello de esta raza?".
Negando um marasmo cívico preocupante, há que sonhar com um Brasil desperto e com uma cidadania ativa capaz de ganhar as ruas clamando por democracia e por um amplo diálogo patriota, plural e libertador.
Quero afastar um equívoco. A genialidade do filme é que ele não se esgota num momento histórico. Não é um filme de tese ou escrito camufladamente apenas para o Brasil de hoje. Os autores fizeram uma obra perene. Mas, a sua universalidade agônica, que transcende uma situação determinada, permite que cada um o viva intensamente a partir de seu mundo concreto.
(Foto: Reprodução YouTube)
A genialidade do Quixote é que não se reduz à crítica da cavalaria de seu tempo, nem é apenas um livro de "entretenimiento" (o que não deixa de ser para muitos leitores desavisados). Isso não explicaria sua perenidade, como o livro talvez mais lido depois da Bíblia, e o mais traduzido. Ele vive em cada um que se rebela contra a injustiça humana. Os moinhos de vento de hoje não são os de mais atrás. Mas eles escondem gigantes que sempre rondam na história e que se apresentam para mim de uma maneira concreta e irresistível. Daí uma leitura onde o leitor mergulha em seu mundo, que vai além de "um certo lugar da Mancha", que o autor não consegue nem quer identificar, porque ele está no meio de nós.
Assim Bacurau me permite sentir as dores de nossa realidade absurda e, outros leitores, em outros momentos, terão outros sobressaltos diante da exigência de novos "entuertos".
O filme me atingiu violentamente agora e atingirá adiante a todos os que souberem ver em Bacurau aquele povo paradigmático e denunciador que empurra cada um para a ação inelutável...
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Bacurau: atual e perene - Instituto Humanitas Unisinos - IHU