13 Setembro 2019
A Igreja Católica chegou a uma encruzilhada. Suas lideranças podem ou mudar, ou tornar-se abertas e responsáveis, ou manter o status quo: uma instituição sem transparência, envolvida no sigilo e vinculada a uma cultura clerical que está no cerne dos problemas da instituição.
A reportagem é de Tom Roberts, publicada em National Catholic Reporter, 12-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Essa sombria avaliação foi feita por Marie Collins, a sobrevivente clerical irlandesa de abusos sexuais que foi um membro original de uma comissão papal que enfrenta a crise dos abusos sexuais.
O escândalo, disse ela em seus comentários no dia 8 de setembro, dando início a uma turnê pelos Estados Unidos em cinco cidades, é sistêmico e global, e o clericalismo permanece na sua essência.
“A Igreja está em uma encruzilhada. Ela pode ou continuar se comportando como faz há séculos, ou se proteger, ou se abrir e se tornar a Igreja que todos queremos que ela seja, a Igreja que ela deveria ser.”
Collins, em entrevista ao NCR após a coletiva de imprensa, expandiu sua compreensão do clericalismo e do modo como ele contribuiu para a sua renúncia, após atuar por três anos na Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores.
Nos últimos 20 anos, disse ela, a Igreja “tem sido reativa” e “não mudou absolutamente nada senão quando forçada pelos sobreviventes e pela mídia (...) Eu não acredito que a Igreja tenha feito quaisquer modificações por vontade própria”. Ela fez suas considerações no United Methodist Building, em Washington, no início da sua turnê intitulada “Uma crise de cultura: buscando a justiça para recuperar a Igreja”.
Comparando a tarefa que a Igreja enfrenta com o trabalho de Hércules de limpar os estábulos de Áugias, Collins disse acreditar que as mudanças significativas só podem ocorrer com a pressão contínua “dos leigos que amam a Igreja”.
Seu tempo de serviço na recém-formada comissão papal de 2014 a 2017 proporcionou um raro ponto de vista para uma mulher leiga sobre os trabalhos da Cúria Romana, das Congregações e dos escritórios vaticanos que envolvem os mais altos níveis de governo da Igreja. Ela se afastou dessa experiência, disse ela ao NCR, convencida de que “é como um internato gigante de meninos”.
Ela descreveu o tempo passado na comissão como uma série de frustrações e constatações de que alguns membros da Cúria pretendiam sufocar o trabalho do grupo desde o início.
Ela disse que a primeira reunião no Vaticano acabou sendo um presságio do que estava por vir. A sala onde ela foi realizada continha uma mesa sem nada e cadeiras. “Nada de canetas, nada de blocos de anotações, nem sequer água”, disse ela. Quando ela perguntou quem faria a ata da reunião, ela disse que o clérigo secretário respondeu que “não havia ninguém no Vaticano disponível para fazer atas”.
Ela disse que a comissão não recebeu um orçamento, foi informada de que não havia dinheiro para contratar especialistas para ajudar no trabalho e que não havia fundos disponíveis para as reuniões do grupo de trabalho entre os encontros principais. “Você sabe, tem alguns cardeais que pagam milhões para reformar seus apartamentos e outras coisas. Você tem centenas de milhões pagos em indenizações para os sobreviventes. Estamos tentando manter as crianças seguras para evitar mais sobreviventes no futuro, e não nos deram um orçamento.”
Em agosto de 2018, ela se encontrou com o Papa Francisco durante sua viagem à Irlanda. Um ano antes, ela renunciou à comissão papal. Na época, ela deu crédito ao papa por ter conversado francamente com um grupo de sobreviventes, mas disse que estava decepcionada porque as importantes iniciativas sugeridas pela comissão não estavam avançando.
“Eu consegui me encontrar com o papa e disse o que eu queria dizer. Eu posso não ter recebido as respostas que queria – tudo o que você pode fazer é fazer a pergunta, e eu fiz”, escreveu ela no Irish Times.
Na entrevista ao NCR, ela disse que, durante a conversa, Francisco lhe disse que “a comissão não foi honesta comigo” e que agora ele podia confiar nela, porque a comissão havia sido incorporada à Cúria.
Ela perguntou a ele: “Em que sentido nós não fomos honestos com o senhor?”. De acordo com Collins, ele respondeu: “Eu não vou falar sobre o passado”.
“Eu não consegui obter uma resposta”, disse ela. “Quem disse isso a ele? Quem disse coisas a ele sobre esses membros e sobre a honestidade da comissão? Eu nunca cheguei ao fundo dessa questão.”
Como exemplo, ela disse que, durante uma reunião, ela perguntou sobre o status de uma proposta para um tribunal de prestação de contas que havia sido proposto meses antes e que havia sido entregue à Congregação para a Doutrina da Fé para implementação. Sua pergunta foi feita a Claudio Papale, um professor que também trabalhava para a Congregação para a Doutrina da Fé. Ela disse que o Mons. Robert Oliver, secretário da comissão, interveio e tentou impedir Papale de responder, dizendo que a pergunta colocava o professor em uma posição difícil.
Collins disse que o cardeal de Boston, Sean O’Malley, presidente da comissão, interveio no fim e permitiu que Papale respondesse. Collins contou que Papale disse ao grupo que a proposta havia sido bloqueada pela Congregação para a Doutrina da Fé e nunca seria implementada.
Alguns meses depois, após uma investigação do NCR, o Vaticano reconheceu que Papale havia renunciado à comissão por motivos pessoais.
Como uma indicação da intromissão curial, ela relatou a sua tentativa de nomear Juan Carlos Cruz, um sobrevivente do Chile, como membro da comissão. Ela publicou em seu site uma série de e-mails demonstrando os esforços de um cardeal chileno e do núncio no Chile para impedir tanto a nomeação dele para a comissão quanto o seu convite para falar em um congresso em Roma.
Um dos e-mails mencionava O’Malley, uma prova, segundo Collins, de que ele sabia que membros da hierarquia estavam tentando interferir no trabalho da comissão. Ela disse que perguntou a O’Malley durante uma reunião por que ele não havia informado o grupo sobre essa tentativa: “Ele não respondeu. Ele apenas deu de ombros”.
Em resposta a uma pergunta, o porta-voz de O’Maley, Terrence Donilon, respondeu que “não estava em posição de comentar as lembranças de Marie. O posicionamento e as ações do cardeal em relação à situação no Chile são públicas e bem conhecidas. Isso inclui o seu apoio às vítimas chilenas”. Ele acrescentou que O’Malley “tem um grande respeito por Marie e pelo seu contínuo compromisso com a proteção das crianças e a transparência”.
De fato, Collins, por sua vez, expressa seu respeito por O’Malley, mas diz que o incidente é indicativo da natureza generalizada da cultura clerical.
Além de sua consideração por O’Malley, ela reconhece os esforços do arcebispo maltês Charles Scicluna, o principal investigador dos abusos no Vaticano, pelo seu trabalho em prol das vítimas e na busca da verdade em lugares como o Chile, e também do arcebispo de Dublin, Diarmuid Martin.
“Eu tenho muita consideração por Scicluna”, disse ela. “Eu me encontrei com ele. Eu acho que ele ‘capta’ as coisas, ele realmente as capta. Ele faz o que é preciso. Ele não é intimidado por ninguém que tenha um título maior do que ele. Ele seguirá em frente, como fez no Chile, e fará as perguntas que precisam ser feitas.”
Quanto a Martin, ela acha que, se não fosse pela cultura clerical, “ele já teria um barrete vermelho agora”. Ela acredita que o fato de ele não ter sido nomeado cardeal se deve à animosidade de outros bispos irlandeses em relação a ele pelo seu papel em ajudar a expor a extensão do abuso sexual clerical de menores na Irlanda. Martin, que trabalhou no Vaticano a maior parte de sua carreira, foi nomeado arcebispo em 2004 e, logo depois, começou a ler a volumosa documentação sobre os abusos sexuais nos registros da arquidiocese. Ele entregou cerca de 70.000 documentos a uma comissão do governo que estudava o escândalo.
“Ele é totalmente diferente, e eu acho que a sua habilidade e experiência deveriam ter sido usadas no nível vaticano. Em vez disso, ele foi isolado e ignorado”, disse Collins. “Na minha opinião, ele deveria estar na comissão papal para a proteção de menores, porque a sua experiência em Dublin foi excelente.” Ela disse que o seu escritório de proteção às crianças em Dublin poderia ser usado como “um modelo e posto em todas as dioceses”.
Segundo ela, ele não é popular com outros bispos e muitos padres, porque ele reverteu a estratégia do seu antecessor, que trabalhou para manter os arquivos em segredo e, consequentemente, “é visto como um traidor” pelo clero. Mas, afirma ela, ele é profundamente respeitado pelos leigos católicos e não católicos em Dublin.
Segundo ela, ele é um exemplo do que acontece quando alguém resiste à cultura clerical.
Embora ela afirme que não tem uma resposta pronta para a cultura clerical – eles precisam perguntar a si mesmos como é que a crise pôde surgir, diz ela –, ela tem, sim, uma sugestão para lidar com a Cúria.
Ela descreveu o Vaticano como “uma bolha” repleta de clérigos ambiciosos. “Existe essa 'escalada no pau de sebo', e tudo se resume a chegar ao topo. E lá é uma incubadora de fofocas e todas essas outras coisas.” Ela disse que, se pudesse, daria a todos os que trabalham no Vaticano “um mandato de cinco anos e os mandaria de volta para a paróquia deles, ou para onde quer que fosse, por um tempo, e só então eles poderiam voltar. Eu não os manteria ali por toda a eternidade”.
A sua turnê, com paradas programadas em Baltimore, Filadélfia, Chicago, Nova Orleans e Los Angeles, foi organizada e promovida por 13 grupos de reforma da Igreja.
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Em turnê nos EUA, Marie Collins expõe a cultura clerical por trás do encobrimento dos abusos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU