09 Agosto 2019
Governo Bolsonaro trama entregar ao mercado global as águas do Nordeste. Mas vale lembrar: para satisfazer agronegócio e empreiteiras, projeto desprezou, desde o início, alternativa baseada em tecnologias sociais, escreve Roberto Malvezzi (Gogó), em artigo publicado por OutrasPalavras, 08-08-2019.
Esses dias Lula reagiu ao fato da Transposição do São Francisco para a Paraíba estar paralisada há vários meses. Ele atribuiu essa responsabilidade ao governo Bolsonaro, chamando essa prática de desumana. O atual governo não reagiu às acusações de Lula.
Nossos grupos sociais foram os primeiros a reagir à obra da Transposição, logo que Lula tomou posse. Portanto, as primeiras reações a Lula não vieram da direita brasileira, mas de quem comungava a ideia de um outro país. Nossa proposta era incentivar a captação da água de chuva e construir pequenas e médias adutoras para o meio urbano, já que o desafio urbano é uma realidade no Nordeste atual, particularmente no Semiárido. Já havia o Atlas do Nordeste, uma obra da Agência Nacional de Águas, com propostas para cada município da região, e nós, da sociedade civil, já tínhamos a proposta da captação da água de chuva para beber e produzir através das cisternas e um leque imenso de tecnologias sociais.
Todos sabemos, prevaleceu a grande obra da Transposição, mesmo que depois os governos Lula e Dilma tenham financiado a captação da água de chuva e também algumas adutoras médias e pequenas para os centros urbanos. Acontece que todos os problemas que estavam previstos em termos de manutenção e operacionalização da Transposição estão acontecendo. Parece que se quer criar uma cortina de fumaça em torno dos problemas reais da obra.
Em primeiro lugar, os canais e barragens sucessivas para elevação da água apresentaram problemas de ordem técnica, com rupturas e vazamentos, o que tem dificultado de forma grave o bombeamento contínuo das águas. Uma dessas barragens no Eixo Leste em Cacimba Nova, Pernambuco, teve problemas esse ano por sobrecarga e esse é o motivo técnico alegado para paralisar o bombeamento. Acontece que um reparo desse tipo leva tempo e outras barragens já tiveram problema como as de Camalaú e Poções na Paraíba.
Dessa forma, só o Eixo Leste estava em pleno funcionamento, mas de forma precária. A Fundação Joaquim Nabuco, em Pernambuco, vinculada ao ministério da Ciência e Tecnologia, vem denunciando há tempos a pouca água bombeada e, pior, a grande perda ao longo do percurso. De uma média de nove metros cúbicos por segundo bombeados, apenas três metros cúbicos por segundo estavam chegando ao reservatório de Campina Grande. Temos dito que construíram uma bomba atômica para matar um mosquito. Porém, com a inauguração da obra, um pouco de água estava chegando em Campina Grande e esse fato amenizava sua funcionalidade.
Essas notícias, um tanto escondidas, vêm desde o começo do funcionamento do Eixo Leste, mas se agravaram nesse ano. O próprio Ministério Público da Paraíba recomendou a paralisação do bombeamento até que os problemas estruturais de duas barragens fossem solucionados. Essa é a razão fundamental da paralisação do bombeamento para a Paraíba. O governo Bolsonaro não respondeu se tem interesse em reativar o bombeamento, nem fala se o Eixo Norte um dia será devidamente concluído. O problema de sua funcionalidade será tão grande quanto o do Eixo Leste.
Acontece que nova notícia surgiu aqui pelo São Francisco. O governo Bolsonaro pensa em privatizar a Transposição. Esse objetivo também denunciamos há mais de dez anos, porque era uma proposta já vinda do governo de FHC por parte do Banco Mundial – isto é, criar um “mercado de águas” no Nordeste Brasileiro. A ideia não avançou naquele momento, mas aos poucos o mundo do capital vai impondo seus interesses.
Então, se vier a privatização, o pior acontecerá. Os paraibanos, e todos os estados receptores, perderão a autonomia de toda a água armazenada em seus reservatórios, inclusive aquelas oriundas das chuvas, já que as águas da Transposição se misturam com elas e não há como distinguir o que vem das chuvas e o que vem da Transposição. Então, provavelmente pagarão a água mais cara do mundo, inclusive aquelas que antes eram uma dádiva da natureza.
A dúvida que resta é se alguma empresa capitalista vai se interessar por essa obra, ainda mais se tiver que bancar sua manutenção. A não ser que façam aquele velho subsídio cruzado, isto é, lucram com a venda da água e põem a conta a pagar nas tarifas dos irrigantes, indústria e, principalmente, nas tarifas domésticas.
Finalmente, continua o silêncio sobre o destino fatal do Velho Chico. Bolsonaro quer privatizar também as Centrais Elétricas do São Francisco (CHESF). A exigência inicial dos compradores é demitir 1700 trabalhadores. Pior, retoma a ideia de construir usinas nucleares na região, começando por Itacuruba, Pernambuco. Faz-se um silêncio mortal sobre as 362 barragens nas cabeceiras do Velho Chico, quase 70% com rejeitos minerários. Dizem os estudiosos que basta romper a de Paracatu, com resíduos minerários de ouro, para matar o Velho Chico por 100 anos. Aquele ouro roubado num aeroporto de São Paulo esses dias vinha exatamente da mina de Paracatu.
Não temos nenhuma alegria em ver tantos problemas nessa obra como no Velho Chico – afinal, é a água. Ainda bem que a sociedade civil manteve sua proposta da captação de água de chuva para beber e produzir para as famílias. Mas a natureza dessa obra da Transposição já indicava claramente seus desdobramentos e suas consequências. O governo atual apenas agrava o que já era muito problemático. Enfim, como se diz aqui pelo Nordeste, “pau que nasce torto, até a cinza é torta”.
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São Francisco, transposição privatizada? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU