08 Julho 2019
Diante da foto do pequeno refugiado afogado no mar Egeu, “eu posso virar a página e voltar para a minha vida, ou enfrentar a dor como se fosse um dos meus e abrir o meu coração e a minha inteligência”.
O comentário é de Gaetano Vallini, publicado por L’Osservatore Romano, 05-07-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Algumas imagens vão direto ao coração e permanecem lá para sempre. Não nos deixam em paz, porque despertam estupor, incredulidade, indignação, raiva, comoção, compaixão, piedade. Colocam-nos diante da nossa consciência e nos impõem a tomar uma posição.
Entre essas imagens, que constituem uma espécie de memória coletiva da estupidez humana, está a de Alan Kurdi, o menino de três anos afogado no verão de 2015 no mar Egeu, enquanto tentava fugir da guerra na Síria com a sua família. Todos se lembram dela: ela mostra seu corpinho sem vida, deitado de bruços na praia, em uma posição tão natural a ponto de ele parecer adormecido, com o rosto acariciado pela ressaca.
Essa foto – tirada por Nilüfer Demir, da agência turca DHA – testemunha o trágico epílogo de uma viagem desesperada, uma das tantas que acabaram em tragédia no Mediterrâneo, mas também é o início de algo inesperado: um processo de enraizamento no equilíbrio entre a exaltação midiática coletiva, amplificada pela velocidade de difusão das imagens na rede, e manifestação, intensa e pessoal, dos nossos sentimentos mais humanos.
Mas por que exatamente essa foto? Fausto Colombo, professor de teoria da comunicação e da mídia da Universidade Católica do Sagrado Coração, tenta responder a essa pergunta não se limitando a utilizar os instrumentos científicos do estudioso, mas dando espaço às suas próprias emoções, buscando a origem da comoção que ele ainda sente hoje quando observa a imagem do pequeno Alan.
Reprodução da capa de Imago pietatis.
Indagine su fotografia e compassione
O fruto dessa pesquisa está contido em um interessante livro intitulado Imago pietatis. Indagine su fotografia e compassione [Imago pietatis. Investigação sobre fotografia e compaixão, em tradução livre] (Milão: Vita e Pensiero, 2018, 119 páginas), uma espécie de diário que acompanha a “viagem” dessa foto, certamente mais longa do que a do infeliz menino – e a do policial que, com delicadeza, recolhe o corpinho na praia turca de Bodrum – reconstruindo na sua totalidade “o processo que leva a imagem de uma criança de três anos, tirada por uma desconhecida fotógrafa turca, a se tornar um ícone universal”.
Desde o momento da foto, a breve vida de Alan – haviam-no chamado de Aylan inicialmente – se transforma em outra coisa, em um objeto cultural cujo destino segue uma vida própria, com a difusão típica desses tempos, “mas inusual na força emotiva, especialmente considerando que Alan é apenas uma criança, apenas uma das muitíssimas vítimas engolidas pelo mar”, explica Colombo. Que acrescenta: “As suas fotos, de fato, não apenas se difundem, mas provocam emoções e reações fortíssimas, insinuam-se nas escolhas políticas, mudam (pelo menos por um curto período) a percepção do migrante na opinião pública ocidental, tornando-se, pouco a pouco, o símbolo poderoso de um fenômeno de dimensões epocais”.
A morte de Alan torna-se “o sinal de um sofrimento mais amplo ou, melhor, de uma ferida que atravessa o nosso mundo. Torna-se a imagem de toda diversidade e de toda injustiça baseada na desigualdade”.
O autor, portanto, segue a foto na rede, que se espalha de acordo com um esquema já bem definido: a faísca (a notícia e o tuíte inicial), os primeiros pequenos fogos (os retuítes), depois a explosão (os compartilhamentos nas várias mídias sociais), em seguida o contágio em nível global e, por fim, a normalização, que permite que novas notícias suplantem as antigas.
Mas isso não significa que a história de Alan desapareça. “Ao contrário, ela desliza para outros lugares, mudando de registro narrativo e permitindo uma elaboração que a rapidez da difusão e a onda emotiva principal não permitem”, observa Colombo, relatando como se começa a aprofundar o caso da família de Alan, mas também como, também nesse caso, parte uma cadeia de notícias falsas que tentam desmontar a tragédia, até negá-la. Sem esquecer aqueles que, em vez disso, usam criativamente a foto do menino, modificando-a e inserindo-a em contextos diversos, para usá-la como instrumento de denúncia política.
O estudioso, depois, dá um passo a mais, levando a análise a um nível mais alto: o da relação entre a fotografia e a compaixão. Colombo investiga a força simbólica da imagem desde os primórdios da fotografia, com o seu profundo laço com o tempo e a morte, sem ignorar a dor inocente das crianças. E o faz seguindo as reflexões de renomados estudiosos – Susan Sontag, Roland Barthes, John Berger – e através do relato das histórias das mais famosas imagens de guerra e de sofrimento e dos repórteres aos quais aquelas imagens icônicas às vezes mudaram a vida: o corpo sem vida de Che Guevara imortalizado por Marc Hutten, o miliciano espanhol morto a tiros por Robert Capa, o monge budista que se incendeia em Saigon documentado por Malcolm W. Browne, a menina queimada por napalm na foto tirada por Nick Ut no Vietnã, a mãe somali que segura o corpo exânime do filho envolto em um lençol branco retratada por James Natchtwey, a menina e o abutre no Sahel capturado pela objetiva de Kevin Carter.
A pesquisa, portanto, se transforma de uma investigação sobre os mecanismos comunicativos em uma análise do sentimento humano diante da tragédia, questionando, em primeiro lugar, a consciência e a responsabilidade do fotógrafo.
A esse respeito, Colombo cita Nilüfer Demir, que chegou a afirmar que pensou que havia nascido para tirar justamente aquelas fotos de Alan, intuindo o seu poder simbólico. Fotos que justificariam o horror que representam com um duplo mandato moral: testemunhar e aprender com a crueza da realidade, “como se essa tarefa tornasse melhores as testemunhas e os seus ouvintes”, observa o autor. Que, porém, permanece cético, incerto se deve pensar nas fotos de Demir “como em um automatismo profissional ao qual nenhum fotógrafo pode deixar de obedecer diante de qualquer horror, ou em um sincero sentimento de participação na dor do mundo, tão brutalmente condensada em um pequeno corpo que jaz no litoral”.
Seguindo esse raciocínio, a pesquisa continua até chegar às raízes da compaixão, na consciência de que investigações sobre fotos como as de Alan “sempre trazem dentro de si uma viagem, ao mesmo tempo para fora, rumo à realidade, e para dentro, rumo às profundezas de nós mesmos e das nossas emoções”. Mas também são experiências que colocam o observador, assim como o fotógrafo, diante de uma encruzilhada: assim como certas fotos podem ser produzidas com cinismo ou com participação, da mesma forma podem ser olhadas com indignação ou voyeurismo. E essa ambiguidade intrínseca e inevitável nos coloca diante de uma escolha com implicações importantes. “Posso realmente me comover com Alan e não refletir sobre as políticas que excluam os migrantes? Sobre as atitudes a serem assumidas abstratamente (muitos políticos fazem isso continuamente, até mesmo por razões instrumentais), não deve prevalecer em mim a consciência das consequências sobre os corpos das pessoas, que o cadaverzinho de Alan coloca diante dos meus olhos?” São essas, no fim, as interrogações cruciais feitas por Colombo.
Interrogações que, há poucos dias, foram repropostas com força por outra imagem angustiante: a do jovem pai salvadorenho Óscar Alberto, que morreu afogado com sua filhinha de 23 meses, Valeria, no Rio Grande, na tentativa de chegar aos Estados Unidos. A partir do México.
“Aqui – nos diz Colombo, comentando por telefone essa última foto destinada a permanecer tragicamente impressa na memória assim como a de Alan – emerge o gesto emotivamente muito forte do braço da menina em volta do pescoço do pai: um abraço extremo na morte que nos remete ao fato de sermos humanos, por que todos somos filhos. Se olharmos para essa foto e para a de Alan, e nos deixarmos arrastar até o fim, elas nos obrigam a fazer algo que não queremos fazer: reconhecer que estamos diante de um problema que diz respeito a pessoas como nós”.
Isso nos obriga a mudar de perspectiva, porque – explica o estudioso – hoje os “migrantes se tornam um objeto outro. Basta olhar para a violência com a qual são tratados nas mídias sociais. Ou porque o que queremos ver não são eles, mas sim os traficantes de homens e aqueles que os salvam, cada vez mais frequentemente equiparados com os traficantes, porque o mecanismo narrativo é esse”.
“Isso – acrescenta Colombo – nos impede de nos fazer a pergunta de fundo: mas esse aí é como eu ou não? Porque, se ele é um ser humano como eu, é preciso salvá-lo. Estou convencido de que, se algum dos ‘leões de teclado’ que escrevem ‘que se afundem!’, ‘mandem-nos de volta!’, estivesse em um barco, estenderia as mãos e os recolheria. Porque, quando o outro está na nossa frente, é muito mais difícil nos distanciarmos. Pois bem, essas fotos nos aproximam na forma da vítima a essas pessoas.”
A reflexão final nos leva de volta às conclusões do livro. Diante da morte de Alan e da sua imagem – assim como as do pai e da filha – “eu posso virar a página e voltar para a minha vida ou enfrentar a dor como se fosse um dos meus e abrir o meu coração e a minha inteligência. As imagens aguardam a minha escolha. A ética, como dizia Wittgenstein, não pode ser expressada. Mas o caminho que eu escolho não é indiferente”.
E, se escolhermos o caminho da empatia, como Colombo nos convida a fazer, não podemos deixar de redescobrir plenamente a nossa humanidade e a assumir os esforços e os sofrimentos de outras pessoas. Em tempos difíceis como aqueles que estamos vivendo, em que alguns levantam a voz para apontar para inimigos inexistentes, construindo muros e alimentando medos injustificados, recordar Alan e, com ele, Valeria e seu pai também é um sinal de resistência, um modo de combater o inquietante desvio das nossas sociedades.
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Ainda sobre a foto do pequeno Alan Kurdi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU