30 Abril 2019
"O texto assinado em Abu Dhabi segue o espírito do Concílio", escreve Carlo Molari, teólogo italiano, padre e ex-professor das universidades Urbaniana e Gregoriana de Roma. O artigo foi publicado por Rocca, n. 7, 01-04-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em sua breve visita a Abu Dhabi, o Papa Francisco assinou em 4 de fevereiro último, juntamente com o Grande Imam de Al-Azhar Ahmad Al-Tayyib, um "Documento sobre a fraternidade humana pela paz mundial e pela convivência comum". Não foi um ato improvisado porque amadureceu por muito tempo com conversas, diálogos e orações. Na viagem de volta, o próprio Francisco, instigado por jornalistas, afirmou: "O documento foi preparado com grande reflexão e até mesmo com oração. Tanto pelo Grande Imam com sua equipe, quanto por mim com a minha.
Nós rezamos muito para poder fazer este documento, porque para mim existe apenas um grande perigo neste momento: a destruição, a guerra e o ódio entre nós.
E se nós crentes não formos capazes de apertar as mãos, nos abraçarmos e até rezar na nossa fé, isso será uma derrota. Este documento nasce da fé em Deus que é o Pai de todos e Pai da paz. E condena toda destruição, todo terrorismo ... É um documento que se desenvolveu ao longo de quase um ano: com idas e voltas e orações. Para amadurecer, para não dar à luz a uma criança antes do tempo”.
No documento pede-se aos homens de religião e de cultura que redescubram e difundam "os valores da paz, da justiça, da bondade, da beleza, da fraternidade humana e da convivência comum". Na firme convicção de que "entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno estejam uma consciência humana anestesiada e o distanciamento dos valores religiosos, assim como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas".
Na introdução, depois de ter afirmado que "a fé leva o crente a ver no outro um irmão a ser apoiado e amado", fala-se desse texto como "um documento pensado com sinceridade e seriedade", que convida "todas as pessoas que carregam no coração a fé em Deus e a fé na fraternidade humana para se unirem e trabalhar juntas". O Papa e o Grande Imam falam "em nome de Deus que criou todos os seres humanos iguais em direitos, deveres e dignidade", "em nome da inocente alma humana que Deus proibiu de matar". "Em nome dos pobres", dos "órfãos e das viúvas, dos refugiados e exilados, de todas as vítimas de guerras" e "das perseguições".
Eles "declaram adotar a cultura do diálogo como caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento recíproco como método e critério”.
"Pedimos a nós mesmos e aos líderes do mundo, aos artífices da política internacional e da economia mundial, para nos comprometermos seriamente em disseminar a cultura da tolerância, da convivência e da paz; de intervir, o mais breve possível, para estancar o derramamento de sangue inocente e pôr um fim às guerras, aos conflitos, à degradação ambiental e ao declínio moral e cultural que o mundo atualmente experimenta.”
O documento termina com um convite para torna-lo objeto de estudo em suas respectivas escolas teológicas e nas universidades, para aprofundá-lo e difundir sua mensagem nas comunidades.
Esse mesmo convite, por um lado, indica a consciência dos dois signatários sobre a novidade que contém e, pelo outro, as resistências que sua publicação teria despertado nas duas tradições culturais. No âmbito católico, atraiu a atenção dos tradicionalistas a afirmação do pluralismo religioso como expressão da vontade divina. O texto diz exatamente: "a liberdade é o direito de toda pessoa: cada um desfruta da liberdade de crença, pensamento, expressão e ação. O pluralismo e as diversidades de religião, de cor, de sexo, de raça e de língua são uma sábia vontade divina”. "É da ‘sabedoria divina’ que deriva o direito à liberdade de credo e à liberdade de ser diferentes".
A esse respeito, a insistência com a qual o Papa Francisco se referiu ao Concílio Vaticano II é significativa. Na tradicional conferência de imprensa na viagem de retorno no avião disse: "Do ponto de vista católico, o documento não se afastou nem um milímetro do Concílio Vaticano II, que também é mencionado várias vezes no texto. O documento foi feito no espírito do Vaticano II. Eu queria, antes de tomar a decisão, que fosse lido por algum teólogo e até oficialmente pelo teólogo da casa pontifícia que é um dominicano, com a bela tradição dos dominicanos, para não sair em uma caça às bruxas, mas ver a coisa certa, e ele aprovou".
O Papa, portanto, admite uma verdadeira novidade, mas considera-a introduzida no espírito do Concílio. Respondendo a Domenico Grasso, ele afirmou: "Se alguém se sentir desconfortável, eu entendo, não é algo corriqueiro, e não é um passo para trás, é um passo à frente, mas um passo à frente que vem depois de 50 anos, de Concílio que deve se desenvolver. Os historiadores dizem que são necessários 100 anos para que um Concílio crie raízes na Igreja. Estamos no meio do caminho. E isso pode suscitar perplexidades, mesmo para mim. Eu vou te dizer, eu vi uma frase e eu disse para mim mesmo: 'Mas essa frase, eu não sei se é segura ...' E era uma frase do Concílio! E isso surpreendeu a mim também! Mesmo no mundo islâmico existem várias opiniões, algumas mais radicais e outras não. Ontem no conselho de sábios havia um xiita, ele deu uma aula de universalidade muito grande, ele falou bem. Haverá também discrepâncias entre eles, mas é um processo e os processos amadurecem".
No âmbito católico é necessário relembrar a polêmica desencadeada pelo padre jesuíta Jacques Dupuis e o documento Dominus Jesus (2000) da Congregação para a Doutrina da Fé, que n. 4 afirma: "O perene anúncio missionário da Igreja está hoje ameaçado pelas teorias relativistas, que pretendem justificar o pluralismo religioso, não só de facto mas também de iure (ou por princípio)". Agora convocando "a sábia vontade de Deus" como origem da pluralidade de religiões a Declaração justifica de iure a diversidade e multiplicidade de religião por este ser um bem, embora imperfeito, e não algo ruim. Na perspectiva evolutiva, podemos dizer que a variedade de religiões não é devida ao pecado ou à ignorância do homem, mas à Sabedoria divina.
Sobre esse ponto, o Concílio Vaticano II já tinha recordado as razões da fraternidade universal. Na Declaração sobre as relações da Igreja com as religiões não-cristãs, afirma: "Desde os tempos mais remotos até aos nossos dias encontra-se nos diversos povos certa percepção daquela força oculta presente no curso das coisas e acontecimentos humanos; encontra-se por vezes até o conhecimento da divindade suprema ou mesmo de Deus Pai; tal percepção e conhecimento permeiam sua vida com um profundo sentido religioso" (Declaração Nostra Aetate - 28/10/1965 - nº 2 das diferentes religiões não-cristãs, EV 1 No. 856). O texto conciliar especifica: "A Igreja católica não rejeita nada do que é verdadeiro e sagrado nessas religiões. Com sincero respeito, ela considera aquelas formas de agir e viver, aqueles preceitos e doutrinas que, embora difiram em muitos pontos daquilo que ela acredita e propõe, no entanto não raramente refletem um raio daquela Verdade que ilumina todos os homens" (ibid.n. 857).
O mesmo número conclui: "Portanto, ela exorta seus filhos para que, com prudência através de diálogos e de colaboração com os seguidores de outras religiões, testemunhando a fé e a vida cristã, reconheçam, preservem e promovam os bens espirituais e morais, bem como aqueles valores socioculturais encontrados entre eles" (ibid. 858). O n. 5 da Declaração Conciliar é intitulado A Fraternidade Universal e inicia assim: "Não podemos, porém, invocar Deus como o Pai de todos, se nos recusarmos a nos comportar como irmãos em relação a alguns homens criados à imagem de Deus" (ibid. 869). Além disso, a constituição pastoral declara: "deve superar-se e eliminar-se, como contrária à vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por razão do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião.” (Gaudium et spes n. 29, EV 1, 1410). "De resto, todos os crentes, de qualquer religião, sempre souberam ouvir a voz e manifestação de Deus na linguagem das criaturas" (ibid n. 36, EV 1, 1432). O texto assinado em Abu Dhabi segue o espírito do Concílio.
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A fraternidade universal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU