05 Fevereiro 2019
Diálogo e justiça, a liberdade religiosa e a proteção aos locais de culto, dos direitos das mulheres e proteção dos menores e das minorias. Além disso, a condenação do terrorismo, forma "execrável" de instrumentalizar o nome de Deus, que quer a vida e paz. Essas são as mensagens fundamentais do documento sobre a "Fraternidade humana para a paz mundial e a convivência comum" que foi assinado em Abu Dhabi pelo Papa Francisco e o Grão Imam de Al-Azhar, Ahmed al-Tayyb, estabelecendo um marco nas relações presentes e futuras entre o islã e o catolicismo.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por Vatican Insider, 04-02-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Assinado em nome dos muçulmanos e católicos "do Oriente e do Ocidente", para selar o encontro organizado pelo Conselho Muçulmano de Anciãos, que contou com a participação de 700 líderes religiosos de diferentes denominações, o texto - resultado de diversos encontros, incluindo um em Santa Marta, entre Bergoglio e Al-Tayyb, como revelado pelo próprio Grão Imam - foi redigido em três cópias, que serão guardadas no Vaticano, na Universidade de Al-Azhar no Cairo e nos Emirados Árabes Unidos.
Animado pela "esperança em um futuro luminoso para todos os seres humanos, o documento pretende ser um" guia para as novas gerações em direção da cultura do recíproco respeito", e reafirma, principalmente, o princípio fundamental da defesa da vida, dom de Deus que "ninguém tem o direito de tirar, ameaçar ou manipular conforme seu agrado". Todos devem preservar esse dom "desde o seu início até à sua morte natural", afirmam os signatários, condenando "os genocídios, os atos de terrorismo, os deslocamentos forçados, o tráfico de órgãos humanos, o aborto e a eutanásia e as políticas que sustentam tudo isso”.
O mandamento “não matarás” é, portanto, fundamental nas dez páginas de texto, porque – é ressaltado - "quem mata uma pessoa é como se tivesse matado toda a humanidade, e quem salva uma, é como se tivesse salvado toda a humanidade".
Também são centrais as questões mais espinhosas dos Países de maioria islâmica, como os ataques contra locais de culto, o conceito de cidadania para as minorias e o reconhecimento dos direitos das mulheres, muitas vezes exploradas e usadas como mercadoria, abordadas de forma muito clara no documento que justamente por isso deve ser considerado um avanço histórico nas relações mútuas.
É uma "necessidade indispensável reconhecer o direito da mulher à educação, ao trabalho, ao exercício dos seus direitos políticos" pode ser lindo na declaração. "É preciso trabalhar para libertá-la das pressões históricas e sociais contrárias os princípios da própria fé e da própria dignidade" e "é também necessário protegê-la contra a exploração sexual e seu tratamento como mercadoria, meio de prazer ou de ganho econômico", escrevem o Papa e al-Tayyb. "Por isso devem ser interrompidas todas as práticas desumanas e os costumes vulgares que humilham a dignidade da mulher e trabalhar para modificar as leis que impedem às mulheres de desfrutar plenamente de seus direitos."
Sobre a questão da proteção dos locais de culto, templos, igrejas e mesquitas, está claramente explicitado que qualquer tentativa de atacá-los ou ameaçá-los através de ataques terroristas, explosões ou demolição "é um desvio dos ensinamentos das religiões, bem como uma clara violação do direito internacional." No que diz respeito ao conceito de cidadania, o texto - ecoando as palavras de Al-Tayyb em seu discurso - afirma que é preciso "empenhar-se para estabelecer em nossas sociedades o conceito de plena cidadania e renunciar ao uso discriminatório do termo minorias, que traz em si as sementes do sentimento de isolamento e inferioridade; ele prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e subtrai as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos discriminando-os".
Francisco e Al-Tayyb também se comprometem em dar "voz aos pobres, aos miseráveis, aos necessitados e marginalizados em todo o mundo que Deus ordenou de socorrer como um dever exigido a todos os homens e especialmente a cada homem abastado e próspero." E eles se tornam embaixadores "de órfãos, viúvas, refugiados e exilados de suas casas e seus países; bem como de todas as vítimas das guerras, das perseguições e das injustiças; dos fracos, daqueles que vivem com medo, dos prisioneiros de guerra e dos torturados em qualquer lugar do mundo, sem distinção de qualquer espécie."
Muçulmanos e católicos declaram "adotar a cultura do diálogo como um caminho; a colaboração comum como conduta; o conhecimento recíproco como método e critério". E fazem isso "em nome dos povos que perderam a segurança, a paz e a convivência comum, tornando-se vítimas das destruições, das ruínas e das guerras." Eles fazem isso em nome da "fraternidade humana" que parece estar cada vez mais "dilacerada pelas políticas de integralismo e divisão e dos sistemas de ganho exagerado e das tendências ideológicas odiosas, que manipulam as ações e os destino dos homens." Eles fazem isso "em nome da liberdade, que Deus doou a todos os seres humanos".
"Nós, crentes em Deus - dizem os signatários - pedimos a nós mesmos e aos líderes mundiais, aos artífices de política internacional e da economia global, para que se empenhem seriamente em difundir a cultura de tolerância, da convivência e da paz; para que intervenham, o quanto antes, para deter o derramamento de sangue inocente e acabar com as guerras, os conflitos, a degradação ambiental e o declínio cultural e moral que vive o mundo de hoje."
Ao mesmo tempo, são chamados em causa também intelectuais, filósofos, artistas, operadores da mídia e homens de cultura, para que contribuam a fazer redescobrir a todos "os valores da paz, da justiça, do bem, da beleza, da fraternidade humana e da convivência comum”. Eles são dificultados pela "consciência humana anestesiada” e pelo “predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar de princípios supremos e transcendentais."
É verdade, existem também "passos positivos" na civilização moderna, especialmente nas áreas de ciência, tecnologia, medicina, indústria e bem-estar; no entanto, ao lado desses, quase como um contrapeso, assiste-se a "uma deterioração da ética, o que condiciona a ação internacional e um enfraquecimento dos valores espirituais e do senso de responsabilidade."
"Tudo isso – é ressaltado na declaração conjunta - ajuda a difundir um sentimento geral de frustração, de solidão e de desespero, levando muitos a cair na voragem do extremismo ateu e agnóstico, ou no integralismo religioso, no extremismo e no fundamentalismo cego, levando assim outras pessoas a se renderem a formas de dependência e de autodestruição individual e coletiva.”
Justamente o extremismo religioso e nacional junto com a intolerância "produziram no mundo, tanto no Ocidente como no Oriente, o que poderia ser chamado de sinais de uma ‘terceira guerra mundial em pedaços’, declararam o Papa e o Grão Imam, "sinais de que, em várias partes do mundo e em diversas condições trágicas, começaram a mostrar sua face cruel; situações em que não se sabe exatamente quantas vítimas, viúvas e órfãos produziram".
Também não se pode esquecer os focos de tensão prontos a explodir em outras áreas do globo que "se preparam para se tornar o palco de novos conflitos", porque ali se acumulam armas e munições” em uma situação mundial já em equilíbrio precário porque “dominada pela incerteza, pela desilusão e pelo medo do futuro e controlada pelos interesses econômicos míopes".
Nesta lista trágica, também constam "as fortes crises políticas, a injustiça e a falta de distribuição equitativa dos recursos naturais de que se beneficia apenas uma minoria de ricos prejudicando a maioria dos povos da terra", que "geraram, e continuar a fazê-lo, enormes quantidades de doentes, de necessitados e de mortos, causando crises letais das quais são vítimas vários países, apesar das riquezas naturais e recursos da jovens gerações que os caracterizam".
"Diante de tais crises que levam a morrer de fome milhões de crianças, já reduzidos a esqueletos humanos - por causa da pobreza e da desnutrição - reina um silêncio internacional inaceitável", afirma-se em uma passagem do documento em que é possível ler uma referência implícita, mas bastante clara, ao drama do Iêmen.
Em tal contexto, cristãos e muçulmanos identificam na família "o núcleo fundamental da sociedade e da humanidade", única instituição capaz de "dar à luz a filhos, criá-los, educá-los, propiciar-lhes uma sólida moral e a proteção familiar." "Atacar a instituição familiar, desprezando-a ou duvidando da importância de seu papel, representa um dos mais perigosos males da nossa época", pode ser lido.
A esse respeito, os dois líderes reafirmam mais uma vez que jamais as religiões incitam a guerras ou solicitam "sentimentos de ódio, hostilidade ou extremismo", muito menos convidam "à violência ou ao derramamento de sangue." São esses "desastres", fruto do "desvio dos ensinamentos religiosos, o uso político das religiões e também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram - em algumas fases da história -da influência do sentimento religioso sobre os corações dos homens para levá-los a realizar o que não tem nada a ver com a verdade da religião, para alcançar fins políticos e econômicos mundanos e míopes."
O convite é, portanto, "para cessar de instrumentalizar as religiões para incitar ao ódio, à violência, ao extremismo e ao fanatismo cego e parar de usar o nome de Deus para justificar atos de homicídio, de exílio, de terrorismo e de opressão".
Em um comentário anexo à publicação, o diretor interino da Sala de imprensa do Vaticano, Alessandro Gisotti, define o texto como "um poderoso sinal de paz e esperança para o futuro da humanidade", um escrito "corajoso e profético", no qual , "diante de uma humanidade ferida por tantas divisões e fanatismos ideológicos", o Pontífice e o Grão imam de Al-Azhar mostram que "promover a cultura do encontro não é uma utopia, mas a condição necessária para viver em paz e deixar para as futuras gerações um mundo melhor do que aquele em que vivemos".
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Em Abu Dhabi o apelo de cristãos e muçulmanos: "Chega de usar a religião para incitar ao ódio" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU