30 Abril 2019
A dicotomia entre ciências exatas e humanas esvazia o debate sobre a construção do saber científico e ofusca a necessidade de integrá-las.
O artigo é de Tatiane Roque, professora do Instituto de Matemática e Instituto de Filosofia e Ciências Sociais e da pós-graduação em filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, publicado por Ciência Hoje, 25-05-2018.
De tão caricatural, a separação entre exatas e humanas está se tornando tóxica. Rende bons memes, mas traz uma imagem errada sobre o papel de cada uma das ciências e da urgente integração entre elas. Exatidão, assim como precisão, rigor ou objetividade, são noções cujos significados mudaram ao longo da história.
Para Descartes, por exemplo, eram exatos procedimentos que permitiam construir curvas por meio de equações algébricas. Ao invés de fazer um círculo geometricamente, usando o compasso, tornou-se possível construir essa figura por meio da equação . Essa noção de “exatidão”, como mostra o historiador da matemática Henk Bos em Redefining Geometrical Exactness: Descartes’ Transformation of the Early Modern Concept of Construction (NY, Springer, 2001), era típica do século 17. Surgiu no contexto de matemáticos-filósofos tentando ampliar os métodos de construção de curvas geométricas, que também serviam à ótica.
Bem mais tarde, em meados do século 19, a ciência viu-se às voltas com a ideia de objetividade. Observar o mundo e enxergar relações implícitas, não observáveis à primeira vista, era tarefa dos “homens de ciência” – a expressão é da época, pois a tarefa era mesmo considerada atribuição dos homens mais do que das mulheres.
Como cientistas são humanos, tendem a projetar valores e afetos em suas observações, o que pode comprometer as conclusões. Para que isso não acontecesse, quem praticava a ciência precisava segurar a onda. Tinha que limitar suas tendências mais íntimas – sua subjetividade – e treinar o corpo e o olhar para garantir a objetividade de suas observações. No livro Objectivity (NY, Zone Books, 2007), Lorraine Daston e Peter Galison, renomados historiadores da ciência, mostram que a objetividade tornou-se, assim, uma virtude científica.
Seria possível dar inúmeros outros exemplos, mas a moral da história é que predicados como exatidão e objetividade, atribuídos hoje a certos ramos do conhecimento, foram inventados para ampliar os procedimentos aceitos ou para limitar traços humanos que pudessem prejudicar a observação científica. Hoje, as ciências ditas exatas são aquelas que usam a matemática. O modelo mais bem acabado é o da física. Esses saberes foram construídos como exatos, em contextos específicos, para lidar com as possibilidades e os limites humanos para conhecer.
Separar as ciências entre exatas e humanas esvazia todo esse debate. Usar a valorização das ciências exatas para fazer bullying com as outras áreas do conhecimento é atestado de ignorância. Pior de tudo, é uma desqualificação para a própria matemática e para os saberes que a usam. Termina-se por reduzi-los a saberes frios e calculistas, sem alma e sem mundo. Só que a história mostra idas e vindas fascinantes no embate entre essas formigas que somos nós, os humanos, e esse mundão de que sabemos tão pouco, que costumamos chamar de natureza, e do qual nos cremos apartados. Será mesmo?
Não vai adiantar a gente se esconder atrás de pretensas verdades absolutas, e também não precisamos cair no relativismo banal de que todos os enunciados se equivalem. Verdades existem, só que elas mudam com o tempo. E está aí algo realmente maior do que o humano: o tempo.
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Não existe ciência exata (e vamos combinar que todas são humanas...) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU