14 Abril 2018
Um balão de HQ na camiseta de Marcus du Sautoy (Londres, 1965) diz: “Não sei nada”. Não é verdade: Du Sautoy é professor titular de matemática na Universidade de Oxford (Reino Unido) e ocupa a Cátedra Simonyi para o Entendimento Público da Ciência, um cargo no qual substituiu o etólogo Richard Dawkins em 2008. O matemático, escritor e divulgador científico foi a Madri para apresentar a edição em castelhano do seu novo livro, What We Cannot Know (O que não podemos saber, inédito no Brasil).
A camiseta não é um mero acaso. Embora o balão saia da boca do personagem fictício Jon Snow, de Game of Thrones, Du Sautoy a escolheu para chamar a atenção para a sua própria ignorância. Apesar dos seus imensos conhecimentos, este é um cientista que não tem medo de admitir o desconhecido, e muito menos de confrontá-lo. O paradoxal enunciado recorda uma frase do físico John Archibald Wheeler: “Vivemos numa ilha em um mar desconhecido. Conforme a ilha do conhecimento cresce, também cresce o litoral da ignorância”.
A entrevista é de Bruno Martín, publicada por El País, 12-04-2018.
Quanto mais se sabe, mais se questiona. O mesmo vale também para o conhecimento coletivo? Ou o que não sabemos diminui à medida que a ciência avança?
Tudo depende da imagem que se use. Há uma sensação de que o conhecimento é como uma hidra grega: você corta uma cabeça e outras duas aparecem. Esta imagem do conhecimento é um círculo: à medida que o círculo cresce, a borda, que representa a fronteira com o que desconhecemos, também parece aumentar. Mas há outra imagem, que é uma esfera: quanto mais você explora a superfície de uma esfera, menor é a área que desconhece. Eu acredito que a física esteja nos dando a sensação de que estamos cartografando a esfera e convergindo para o que chamamos uma teoria de tudo. Há uma sensação de que talvez cheguemos ao ponto em que, coletivamente, nosso conhecimento seja suficiente para termos a história de como o universo funciona. Mas não sabemos.
Você fala em cartografar o conhecimento como se fosse algo que já existe, esperando ser descoberto. Se os extraterrestres fizessem ciência, chegariam às mesmas leis físicas, teriam a mesma matemática?
Acredito que a matemática é única. Eu no fundo sou um platônico, suponho que porque sou matemático. Como humanos, pode ser que estejamos limitados nas disciplinas que podemos explorar, estudar e entender; temos limitações por nossa cultura, nossa anatomia. Mas acredito em um mundo platônico subjacente que todos observamos por um olho mágico, e um extraterrestre terá outro olho mágico.
Em seu livro você menciona conhecimentos que nunca poderemos alcançar, por sua própria natureza. São perguntas que os humanos não podem responder, ou elas não têm resposta?
R. Não é que não tenham resposta, mas a resposta não pode ser alcançada por processos finitos. Uma pergunta que não tem resposta não é interessante. Para dar um exemplo tangível: o universo é finito ou infinito? Isso tem resposta. Assumimos que é infinito, mas há um limite para o que conhecemos, porque a informação viaja à velocidade da luz, e o universo nasceu há 13,8 bilhões de anos. Estamos numa bolha, tanto faz a nossa inteligência, a nossa complexidade, ou quantos computadores usemos, não há forma de obtermos informação de além dos limites da bolha. Acho que esse é um bom exemplo de uma limitação intrínseca sobre o conhecimento que o universo físico impõe a qualquer ser que queira conhecê-lo.
Aí é onde entra a religião para muita gente, incluídos os cientistas. Você acredita que ciência e religião são compatíveis?
Um dos problemas da religião é linguístico, a incapacidade de definir a que nos referimos com determinados termos. Por isso no livro me guio pelo teólogo Herbet McCabe e digo: “Definamos Deus como tudo aquilo que não podemos conhecer.” Nesse sentido, enquanto houver limites para o conhecimento, ciência e religião são compatíveis. Acredito que a isso se referem muitos cientistas religiosos; eles dizem: “Não sei de onde saiu isto, vou chamar de Deus, de criador, mas quem cria segue leis que posso estudar como cientista”. É o que chamamos ser deísta. Acredito que o verdadeiro problema de compatibilidade é para os teístas: eles acreditam que seu deus está atuando no mundo. Acredito que essa seja uma tensão interessante que vale a pena explorar, e por isso quis dar mais matizes que os que Richard Dawkins oferecia neste debate.
Você se distancia da postura de Dawkins com relação à religião. Acha que ele ultrapassou algum limite quando ocupava a cátedra para o Entendimento Público da Ciência?
Não. Richard [Dawkins] sempre tomou o cuidado de usar a ciência como sua ferramenta de argumentação. Dessa forma centrou a atenção das pessoas nos motivos pelos quais elas acreditam na evolução, por que sabemos que é uma teoria robusta que sobrevive à crítica. Acho que teve seu momento e seu lugar, mas a postura de Richard polarizou o debate, e eu gostaria de ter um debate mais sutil, com mais matizes, passado aquele momento importante da publicação de Deus, Um Delírio [Companhia das Letras].
Que papel você tem como catedrático para o Entendimento Público da Ciência de Oxford?
Eu me considero um embaixador. A ciência é como um superpoder: tem tanto impacto no resto da sociedade... é como um enorme continente. E, entretanto, muitas crises políticas da ciência, como a polêmica sobre os organismos geneticamente modificados e sobre a pesquisa com células-tronco, surgiram porque o público não as entendia. Por isso acredito que é muito importante que os cientistas entrem em cena e envolvam a sociedade. O que quero fazer é estender pontes e criar diálogo, para entender por que as pessoas se preocupam com os organismos geneticamente modificados. Se os cientistas forem proativos, podemos resolver os medos desnecessários que possam surgir com relação ao impacto da ciência.
Você fala em diálogo e em envolver a sociedade, não no “entendimento público da ciência” de que se falava há alguns anos. É uma frase antiquada e condescendente?
Sim, acho que é. Ela me parece muito da velha guarda. Mas a cátedra foi criada na década de 1990, quando se tinha a visão de que “nós, os cientistas, damos as respostas, e vocês nos escutam”. Estou tentando implementar uma versão moderna para o meu papel, mas o título soa antiquado.
De todas as ciências, as pessoas sentem um especial fascínio por sua disciplina, a matemática, apesar de ser uma das matérias mais odiadas nas escolas. Por quê?
Acho que é porque reiteradamente percebemos que a matemática subjaz a todo o resto. Para entender qualquer ciência é necessária a matemática: ela é o melhor idioma, a linguagem da natureza. E acho que as pessoas entendem, quando leem sobre a matemática, que ela é um idioma muito poderoso, e que os que a entendem controlam o mundo. Se você perguntar “quais são as potências deste mundo atualmente?”, não são os chefes das nações, são os chefes de empresas como o Google, o Facebook e a Apple. São gente que sabe matemática. Os criadores do Google, Sergey Brin e Larry Page, são dois geeks que entenderam que a matemática nos permite navegar numa rede muito complexa. Acredito que as pessoas percebam que os numerati, os que detêm a matemática, têm poder.
A tragédia é que parece que a educação nos engana. E é um problema de todos os sistemas educativos. Quando chegamos ao ensino secundário, as disciplinas se tornam estanques. Há aula de matemática, depois de música, depois de história, mas não fazemos as conexões entre elas. Quando fazemos matemática não entendemos que ela é a base da música. As pessoas não notam que a matemática tem uma história. Houve um momento em que não tínhamos o zero, e alguém teve a ideia do conceito de zero. A forma de abordar o problema educativo é contextualizar a matemática.
Você descreveu a matemática como “a linguagem da natureza”. Considera que ela existe fora da mente humana?
Sim. E não é só isso. Eu diria que o motivo pelo qual vemos matemática em todas as partes é porque somos uma manifestação física da matemática. O universo é uma peça matemática. Frequentemente as pessoas querem uma resposta à pergunta sobre quem criou tudo isto. Chamam o criador de Deus, porque não sabem como chamá-lo. Einstein usa o termo assim. Meus filhos sempre me dizem: “Tem um problema: quem criou o criador?”. Necessitamos de algo que exista fora do tempo e que não precise de criação: a matemática é o deus que todos procuramos. Mas é normal que eu diga isso, afinal sou matemático.
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"Quem entende a matemática controla o mundo". Entrevista com Marcus du Sautoy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU