23 Abril 2019
O mundo seria um lugar melhor se as mulheres tivessem mais a dizer sobre a economia global?
A reportagem é de Chris Herlinger, publicada por National Catholic Reporter, 22-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
É uma questão levantada regularmente quando religiosas e representantes de organizações não governamentais se reúnem nas Nações Unidas e discutem o melhor modo de enfrentar os desafios da pobreza global e da desigualdade de gênero, como nas recentes reuniões da Comissão para o Desenvolvimento Social e da Comissão sobre o Status da Mulher, da ONU.
Durante essas reuniões, realizadas em fevereiro e em março, respectivamente, a discussão sobre uma possível “economia feminista” circulou em torno da crença de que proteções sociais básicas como educação e saúde são direitos humanos básicos e precisam ser acessíveis a todas as pessoas, independentemente de quanto elas ganhem.
Outra preocupação: a atenção ao ambiente e um realinhamento urgente dos valores econômicos e sociais baseados no respeito à Terra e atentos à realidade das mudanças climáticas.
“Desde os tempos antigos, a Terra tem sido considerada uma realidade feminina”, disse a Ir. Ana Martinez de Luco, membro das Irmãs da Comunidade Cristã, uma ativista ambiental e representante na ONU da organização de reciclagem Sure We Can, do Brooklyn, em Nova York.
“O cuidado é um atributo que, na maioria das espécies, incluindo entre os humanos, está relacionado com as fêmeas”, disse. “Uma economia feminista nunca colocará o lucro acima do cuidado dos recursos, acima do cuidado da Terra, nossa casa comum.”
Infelizmente, uma característica comum encontrada em toda a “casa comum” é que “tanto as mulheres quanto a Terra estão no lado receptor do patriarcado, usadas e exploradas para o lucro”, disse a Ir. Elsa Muttathu, representante da International Presentation Association nas Nações Unidas. “Quando a Terra é afetada ou superexplorada, as mulheres e as meninas são afetadas primeiro.”
Em zonas rurais pobres, por exemplo, elas fazem grande parte do trabalho “perto da Terra”, incluindo a agricultura ou a busca de água, e conhecem a Terra intimamente, disse a irmã maryknoll Marvie Misolas, representante do Escritório Maryknoll para Preocupações Globais na ONU.
“O grito dos pobres é o grito da Terra”, disse ela. “O grito das mulheres é o grito da Terra. Uma economia feminista examinaria como integrar as necessidades básicas ao mesmo tempo em que se respeita a Terra. Precisamos de uma economia verde de verdade, uma economia que respeite a vida acima do lucro.”
Essa necessidade, disse Martinez de Luco, se deve ao fato de que “o que é bom para o lucro, mas ruim para a Terra, é desastroso, e eu sinto que agora é um momento em que as mulheres não vão mais se calar”, disse. “Eu realmente espero que o século XXI seja o século da liderança das mulheres, que é muito necessária.”
Isso não significa que uma economia feminista se concentre apenas nas mulheres e nas meninas: “Para ser sustentável, toda economia precisa trabalhar para todos nós, atender as necessidades sociais das pessoas”, disse Martinez de Luco.
Dito de outra forma: um marco seria a preocupação com uma economia que trabalhe pelo bem comum para todos os gêneros, disse a Ir. Winifred Doherty, representante na ONU da Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor, em um evento no dia 19 de fevereiro, durante a Comissão para o Desenvolvimento Social da ONU.
“Certamente, os cuidados de saúde, os cuidados infantis e as pensões para os idosos e os cuidados para os mais vulneráveis são todas ‘abordagens feministas’, que servem para todos, independentemente do sexo”, disse.
Mesmo assim, tal economia buscaria alterar a discriminação embutida contra as mulheres.
“Ela seria tangível: fazer o mundo trabalhar pelas mulheres”, por meio do fornecimento de cuidados infantis universais, disse Bhumika Muchhala, analista de economia do desenvolvimento, governança global e questões de economia política internacional, que, como Doherty, falou no evento do dia 19 de fevereiro, copromovido pela Congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor e pelo Instituto da Bem-Aventurada Virgem Maria – Generalato de Loreto.
“Já é um senso comum”, disse Muchhala.
A Ir. Janet Kinney, das Irmãs de São José de Brentwood, Nova York, e diretora executiva do Partnership for Global Justice, grupo com sede na ONU, concordou.
“Uma economia feminista é uma tentativa de formular um sistema no qual haja igualdade de gênero para as mulheres, incluindo mulheres em cargos de cuidado”, disse.
Tanto ela quanto Muchhala disseram que a “economia feminista” não é nova. Ela já tem décadas de idade e é uma subdisciplina acadêmica que analisa a economia através das lentes de como as economias afetam as mulheres (a Associação Internacional para a Economia Feminista [www.iaffe.org] publica a revista Feminist Economics e realizará sua 28ª reunião anual ainda este ano).
Este é o momento de considerar como seria uma economia feminista, disse Muchhala, e Kinney observou que a necessidade dela é quase óbvia: “Há tantas áreas em que as mulheres ainda têm muito a avançar, especialmente em muitos lugares do mundo”, disse.
Para as irmãs que trabalham nas Nações Unidas, os recentes debates sobre a necessidade de proteção social, como serviços públicos e infraestrutura sustentável, oferecem um caminho para a discussão sobre a economia feminista.
“A proteção social é um investimento no futuro de uma sociedade, pois pessoas mais saudáveis e com melhor nível educacional podem contribuir melhor não apenas para a economia, mas também para o bem-estar geral de uma sociedade”, disse Muttathu.
Misolas concordou: “Os sistemas de proteção social criam confiança e estabilidade para os pobres e lhes dão equidade para terem uma vida de qualidade quando os meios de vida ou a renda não podem fornecer isso”.
Em muitas partes do mundo, a renda apenas não é adequada, disse a Ir. Cynthia Mathew, que representa a Congregação de Jesus nas Nações Unidas.
As pessoas mais desfavorecidas nesse quesito são as mulheres, especialmente as mulheres que vivem na pobreza, disse ela no evento do dia 19 de fevereiro.
“As pessoas que vivem na pobreza não podem ter acesso à justiça”, disse Mathew.
Por exemplo, as lutas das mulheres Dalit e tribais na Índia para superar os obstáculos e a discriminação com base no “gênero, casta e pobreza extrema” são consideráveis, disse Mathew, falando de sua própria experiência ao trabalhar no Estado de Bihar, no nordeste da Índia.
Mesmo assim, as mulheres perseveram e demonstram uma resiliência real, como mostra um vídeo sobre o trabalho das Irmãs do Bom Pastor, exibido no evento de fevereiro (assista abaixo).
Mathew disse que as mulheres que se envolvem em grupos de autoajuda de base, organizados pelas irmãs na Índia, por exemplo, “criaram postos de trabalho para si mesmas e para os membros de suas famílias, como a instalação de uma pequena oficina de bicicletas, a venda de vegetais, a fabricação de velas e de detergente em pó, a agricultura, a criação de animais e assim por diante”.
Ao não terem que pedir dinheiro emprestado de agiotas dispendiosos, Mathew disse que as mulheres estão cada vez mais empoderadas. Algumas venceram eleições e se tornaram lideranças dos vilarejos.
Por outro lado, os governos em todo o mundo, predominantemente dominados por homens, estão se arrastando em termos de proteções básicas, como escolas e assistência médica, alegando que não podem pagar por elas, disse a analista política Muchhala.
Em seu trabalho, as irmãs nas Nações Unidas dizem que os governos podem decidir fazer as mudanças necessárias para uma economia mais justa.
“Eu não acho que essa seja uma questão sobre se um governo pode ou não pode arcar com isso”, disse Muttathu. “Trata-se de quem perde e de quem ganha se houver uma maior distribuição de riqueza e recursos e se os governos querem ou não fazer isso.”
Um lugar lógico para mudar os orçamentos seria cortar os gastos militares, disseram as irmãs.
“Enfrentar a quantia de gastos militares e reinvestir isso em proteção, saúde e desenvolvimento ao invés de destruição e morte” seria uma maneira essencial de financiar a proteção social, disse Doherty.
“A maioria dos governos aloca muito em armamentos de ‘segurança’”, disse Martinez de Luco. “A melhor ‘segurança’ seria ter sistemas de proteção social. Então, eles deveriam mudar seus orçamentos para fornecer isso.”
Parte do debate sobre as proteções sociais que as irmãs e outros defendem se deve às lacunas reais de gênero no mundo, como o trabalho não remunerado. Como observa a ONU Mulheres, o principal órgão das Nações Unidas dedicado ao empoderamento das mulheres, “as mulheres realizam pelo menos duas vezes e meia mais trabalhos domésticos e de cuidado do que os homens”, incluindo “cozinhar e limpar... buscar água e lenha, ou cuidar de crianças e idosos”.
O resultado é um prejuízo real para as mulheres, diz a ONU, observando que as mulheres “têm menos tempo para se dedicar ao trabalho remunerado ou trabalham mais horas, combinando trabalho remunerado e não remunerado. O trabalho não remunerado das mulheres subsidia o custo do cuidado que sustenta as famílias e as economias e, muitas vezes, preenche a falta de serviços sociais.”
O custo é enorme, diz a ONU Mulheres, observando que, globalmente, os trabalhos de cuidado e domésticos não remunerados “são estimados entre 10% e 39% do Produto Interno Bruto e podem contribuir mais para a economia do que os setores de manufatura, comércio ou transportes”.
Qualquer economia deveria “levar em conta e orçar o valor do trabalho não remunerado e do trabalho doméstico. Ele certamente faz parte da economia”, disse Doherty, observando os apelos atuais dos grupos de defesa para que se reconheçam o trabalho não remunerado e o trabalho doméstico e se forneça remuneração.
“Cuidar e criar leva tempo, demanda atenção, sensibilidade e muita energia física e mental, e recursos”, disse Muttathu. “Eu acho que é por isso que as pessoas são pagas em um trabalho.”
O empoderamento econômico das mulheres, diz a ONU, só acontecerá por meio de políticas “que forneçam serviços, proteção social e infraestrutura básica, promovam o compartilhamento de trabalho doméstico e de cuidado entre homens e mulheres, e criem empregos mais remunerados na economia do cuidado”.
Muchhala disse que as mulheres não remuneradas que vivem na pobreza, muitas delas em zonas rurais, “são guerreiras, carregando sobre seus ombros o peso de grande parte do sistema econômico do mundo”.
O trabalho delas precisa ser reconhecido e de alguma forma compensado, disse ela.
E isso, disse Muttathu, levanta questões relacionadas de participação e igualdade.
“A questão é que as mulheres têm sido a espinha dorsal das economias em muitos lugares, seja em uma fazenda ou em casa, e mesmo assim não têm voz”, disse ela. “E, se você trabalha sem o poder de tomar decisões, você está sendo usada. O feminismo está desafiando esse tipo de sistema.”
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Mulheres e Terra estão ''no lado receptor do patriarcado'' quando se trata de lucros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU