12 Abril 2019
As divisões da nossa Igreja podem dificultar, às vezes, ouvir os papas sem filtragem – mesmo quando eles estão aposentados. As três partes da reflexão de Bento XVI sobre o abuso sexual clerical têm sido variadamente saudadas como um tiro de alerta à estratégia antiabusos do Papa Francisco, como uma vindicação do ataque do arcebispo Carlo Maria Viganò contra Francisco no verão passado e como uma intervenção desajeitada que alimentará a nostalgia da Igreja antes do Concílio Vaticano II.
O comentário é do escritor e jornalista britânico Austen Ivereigh, publicado em America, 11-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A ótica da publicação reforçou essas ideias: por que apenas os meios de comunicação que têm sido altamente críticos em relação ao Papa Francisco receberam o texto traduzido antes de quaisquer outros, cada um afirmando que se trata de um conteúdo exclusivo?
Mas eu acho que a intenção e a natureza do seu texto são aquilo que Bento XVI diz que ele é: é uma contribuição útil. A recente cúpula convocada pelo Papa Francisco em Roma para combater o abuso sexual clerical fez com que ele pensasse em como poderia ajudar “nesta hora difícil”, escreve ele.
“Eu tive que me perguntar – mesmo que, como emérito, eu não seja mais diretamente responsável – sobre o que eu poderia contribuir para um novo começo”, escreve ele no artigo. Então, ele chegou a alguns pensamentos, perguntou ao Papa Francisco se poderia publicá-los e enviou as 6.000 palavras para um periódico do clero bávaro.
As reflexões, na maioria das vezes, não são surpreendentes para alguém familiarizado com o pensamento de Bento, mas há algumas pepitas intrigantes junto com algumas generalizações brutas, e, na sua terceira parte, eu vejo um apoio significativo à abordagem de Francisco.
A primeira parte, buscando as origens da crise dos abusos, reafirma o conhecido horror de Bento XVI às “revoluções” culturais e sexuais no Ocidente nos anos 1960 e seus efeitos sobre a Igreja. Ao vincular esse surto de permissividade ao abuso sexual, ele está em terreno firme: os relatórios de 2004 e 2011 da Faculdade John Jay de Justiça Criminal, encomendados pelos bispos dos Estados Unidos, localizam a maior frequência de abusos nos anos 1970, diminuindo gradualmente nos anos 1980. Praticamente todos os outros grandes estudos realizados desde então mostram o mesmo.
Qual é a conexão? Bento XVI culpa o colapso da teologia moral católica que deixou a Igreja “indefesa” contra essas mudanças na sociedade mais ampla. Não se trata de um ataque à teologia do Vaticano II. Bento observa, com razão, que o Concílio procurou enraizar a teologia moral nas Escrituras em vez da lei natural, mas diz que os teólogos nunca tiveram sucesso (pelo menos na época) em expressar uma moral “sistemática” capaz de substituir o antigo edifício da lei natural, e, assim, a Igreja acabou em uma casa de recuperação da moral, que precisava ser determinada pelos “propósitos da ação humana”.
Essa explicação é discutível, mas, novamente, ela se encaixa bem com a acusação do estudo da John Jay de que a formação pré-conciliar deixou o clero mal preparado para lidar com a repentina e aberta erotização das relações entre eles. Parte dessa erotização, como diz Bento XVI, foi para desestigmatizar a pedofilia. Novamente, ele está certo: é bastante surpreendente olhar para os programas de televisão dos anos 1970 e encontrar discussões abertas sobre a legalização do sexo com menores.
É claro que Bento acredita apaixonadamente na missão de enraizar a moral no Evangelho, ao invés de em qualquer código de lei, porque ele conclui essa primeira seção argumentando que “a imagem de Deus e a moral pertencem uma à outra e, assim, resultam na mudança particular da atitude cristã em relação ao mundo e à vida humana”.
A saída do abuso sexual, em outras palavras, não é um retorno restauracionista aos códigos morais da lei natural, mas sim uma relação profunda com Deus. Essa é uma questão à qual Bento retorna na terceira parte de seu artigo, quando fala do risco de os teólogos serem “mestres da fé” ao invés de serem “renovados pela fé” – isto é, considerando Deus como uma ideia abstrata em vez de “apresentar” Deus ou convidar as pessoas a conhecerem a Deus.
A segunda parte do artigo, sobre a evolução da resposta legal da Igreja ao abuso, também é interessante. Ao invés de culpar a falta de vontade de fazer uso do direito canônico no período pós-conciliar, como ele já fez muitas vezes no passado, ele critica um desequilíbrio na própria lei, que ele chama de “garantismo”. Ele argumenta que o “garantismo” fez com que o direito canônico garantisse os direitos do acusado de tal modo que as condenações canônicas eram praticamente impossíveis (o que pode ser uma das razões pelas quais os bispos tinham muita fé nele).
Ao explicar por que ele persuadiu São João Paulo II a permitir que a sua Congregação para a Doutrina da Fé assumisse o tratamento dos casos de abuso sexual, ele argumenta que o direito canônico deve não apenas proteger os direitos do acusado, mas também “proteger a Fé, que também é um bem legal importante”. Em outras palavras, os direitos do acusado não são o único “bem” a ser sopesado em um caso; existe também a fé da Igreja que é posta em perigo pelo abuso. Ele expressa frustração que as pessoas (os canonistas? Os Bispos? Ele não diz) não compreendam prontamente esse ponto.
No entanto, claramente, isso fazia parte do pensamento jurisprudencial que entrou no motu proprio Sacramentorum sanctitatis tutela (2001), que estabeleceu as reformas no direito canônico que o então cardeal Ratzinger criou com o procurador-chefe do Vaticano, o arcebispo Charles Scicluna. Isso levou muitas centenas de padres a serem julgados e punidos na década seguinte. Bento vê o mesmo regime ainda em vigor hoje e saúda as reformas de Francisco para reforçar o processo com mais funcionários e procedimentos mais rápidos.
A terceira parte do texto de Bento contém para mim as suas sugestões mais importantes – e úteis. Observando como a crise levou alguns a verem a Igreja “como algo quase inaceitável, que agora devemos tomar nas nossas próprias mãos e redesenhar”, ele adverte que “uma Igreja feita por si mesma não pode dar esperança”.
Parece óbvio que se trata de uma resposta a muitas das respostas da direita ao fracasso institucional que tratam a Igreja como uma espécie de corporação renegada que precisa de um expurgo dos maus funcionários sob nova direção. Esse era o tipo de coisa pedido em outubro último pelo Instituto Napa e pelo “Red Hat Report”, inspirado no ataque contra Francisco pelo arcebispo Viganò.
Bento não usa a palavra, mas Francisco o fez recentemente quando voltou do Marrocos, quando advertiu sobre “o perigo da Igreja hoje de se tornar donatista, fazendo prescrições humanas, que devem ser feitas, mas se limitando a elas e esquecendo as outras dimensões espirituais, a oração, a penitência, a acusação de si mesma”. Francisco advertiu de modo semelhante os bispos dos Estados Unidos, na véspera do seu retiro de Ano Novo, que “muitas ações podem ser úteis, boas e necessárias, e podem até parecer corretas, mas nem todas têm o ‘sabor’ do Evangelho”.
Tanto o papa quanto o papa emérito estão unidos na defesa da liberdade da Igreja de ser redimida pela misericórdia de Deus e de na oposição a toda tentativa de reforma neodonatista.
Não seria esse o ponto de Bento quando ele segue seu mestre, Santo Agostinho – que lutou contra os donatistas da sua época –, ao referir as descrições de Jesus da Igreja como uma rede de pesca contendo tanto o bem quanto o mal, ou como um campo no qual crescem tanto o trigo quanto a erva daninha?
É essencialmente uma tentação donatista – à qual muitos seguidores do arcebispo Viganò sucumbem – querer criar uma Igreja de puros, ver a Igreja como irremediavelmente má e que precisa ser substituída por “uma Igreja melhor, criada por nós mesmos”, nas palavras de Bento XVI. Ele descreve essa ideia como, “de fato, uma proposta do diabo, com a qual ele quer nos afastar do Deus vivo, através de uma lógica fraudulenta pela qual somos facilmente enganados”.
Em vez disso, escreve ele, “a Igreja de Deus também existe hoje, e hoje ela é o próprio instrumento pelo qual Deus nos salva.” Ela persiste nas “muitas pessoas que humildemente acreditam, sofrem e amam, nas quais o Deus real e amoroso se mostra a nós”.
Quando eu li isso, não pude deixar de pensar no longo discurso de Francisco ao clero de Roma no início da Quaresma, quando ele disse a eles para não se desencorajarem pelos escândalos, pois “o Senhor está purificando a sua Esposa e está nos convertendo todos para si (...) Ele está nos salvando da hipocrisia, da espiritualidade das aparências. Ele está soprando o seu Espírito para restaurar a beleza da sua Esposa, surpreendida em flagrante adultério”.
Eles são homens muito diferentes e papas muito diferentes. Mas, nos fundamentos, parece haver pouca distância entre eles. É por isso que não é apenas uma questão de cortesia quando Bento se despede agradecendo Francisco “por tudo o que ele faz para nos mostrar, mais uma vez, a luz de Deus, que não desapareceu, nem mesmo hoje”.
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Carta de Bento XVI sobre os abusos sexuais não é um ataque a Francisco (ou ao Vaticano II) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU