11 Abril 2019
Em um encontro na Universidade Nacional Tres de Febrero, na Argentina, Judith Butler respondeu a perguntas que dizem respeito ao movimento feminista, antes de uma conversa pública com os membros do Ni Una Menos.
A entrevista é de Marta Dillon, Mariana Carbajal e Laura Rosso, publicada por Página/12, 10-04-2019. A tradução é de André Langer.
“A questão do aborto é chave, porque levanta a pergunta sobre quem tem o poder sobre os corpos”, afirmou a filósofa norte-americana pós-estruturalista Judith Butler, em um encontro com jornalistas na Universidade Nacional Tres de Febrero, durante uma nova visita ao país. Butler fez importantes contribuições para a teoria queer e para o campo dos feminismos. É autora dos livros O gênero em disputa, Feminismo e a subversão da identidade e Corpos que importam, entre outras publicações.
A entrevista coletiva foi o único contato que Butler teve com a imprensa, um pouco antes da conversa pública com algumas integrantes do Coletivo Ni Una Menos, convocadas sob o título “Ativismo e Pensamento”. Na porta, centenas de pessoas fizeram fila desde a manhã para entrar no microestádio da UNTREF, onde aconteceu o encontro, no qual se colocou o eixo em um desejo igualmente coletivo da teoria feminista que acompanha as massivas ações de rua que são uma maré, especialmente na Argentina.
Quatro eixos foram tocados na conversa com Ni Una Menos: o poder transnacional da ferramenta da greve feminista; a composição do movimento feminista e sua possibilidade de narrar conflitos que cruzam identidades, territórios e línguas; a contraofensiva dos fundamentalismos religiosos em sua aliança com o capitalismo, e o avanço conservador que também surge dentro dos movimentos feministas com os grupos de biologicistas e o punitivismo. Na conversa com um pequeno grupo de jornalistas, o aborto, as denúncias sobre violência sexual e o punitivismo também foram temas fundamentais.
A jornada de ontem foi uma prévia do II Colóquio Internacional “Os mil pequenos sexos”, que começa hoje e se estende até amanhã, no qual serão abordados os debates que dão forma ao campo dos Estudos de Gênero e as Sexualidades e serão estudadas criticamente as políticas implantadas por instituições e ativismos.
“Estou contente por estar aqui, e a América Latina não é a mesma coisa; todo o resto do mundo está observando o que estão fazendo. Em São Paulo, era a bruxa, mas também era trans”, saudou Butler.
O que você prefere? – foi a primeira pergunta.
Eu não sou binária – respondeu.
Outro gatilho para Butler:
Você disse que o futuro não são as mulheres, mas o feminismo...
Controvertido, você quer que eu fale do feminismo sem as mulheres? Há trans que vêm e me dizem: ‘mulher é uma ficção’, e eu lhes digo que não é verdade. É verdade na medida em que você acredita, é seu direito também ser assim. Você pode se chamar mulher, é uma categoria histórica, que mudou com o tempo. Existem muitas maneiras de ser mulher. Mas eu também disse que o feminismo não pode ser separatista. As mulheres precisam estar juntas, sobretudo quando falam de violência ou de planos específicos de sua vida íntima. Quando você se pergunta o que é ser uma mulher, há um grande debate, porque mesmo que você tenha sido designada como mulher (no nascimento), isso não significa que seja uma mulher.
Na Argentina, um homem pode mudar de sexo e o Estado assume os custos, mas uma mulher não pode fazer um aborto porque está criminalizado...
Você aponta na sua pergunta o que o Estado permite e financia. Fazemos a mesma pergunta com todas as técnicas de reprodução assistida: para todas as pessoas ou para as casadas? Penso que existem formas patriarcais de poder para entender por que o aborto é criminalizado. É porque o corpo das mulheres é do Estado, da Igreja ou da Igreja dentro do Estado, porque são amigos muito próximos. Em geral, financiam-se (as técnicas pessoas de reprodução humana assistida) de casais heterossexuais ou casadas. A proibição do aborto é uma penalização da sexualidade livre das mulheres.
Butler prosseguiu fazendo menção ao problema da criminalização do aborto. “A questão do aborto é chave, porque levanta a pergunta sobre quem tem o poder sobre o corpo da mulher, quem tem poder sobre os corpos”. E acrescentou: “Isso também leva a pensar como o Estado colocou entre as suas leis uma moralidade cristã. Uma mulher que decide ignorar a lei e decide com sua própria autonomia acaba sendo criminalizada. De quem é o poder que obriga uma mulher a ter um filho quando não o tem? É o Estado e a Igreja que forçam as mulheres a um ato reprodutivo. Então, essa lei é uma violação, é um crime”, concluiu.
Uma jornalista também apresentou a forma de pensar sobre o recente suicídio de um músico mexicano após ser denunciado por abuso sexual no âmbito do movimento MeToo naquele país. Para Butler, é um assunto “muito complicado”. E prosseguiu: “O #MeToo foi muito importante para nos mostrar o quanto a violência, os abusos e a discriminação aconteciam em diferentes lugares – trabalho, casa, rua –, eram generalizados. Era necessário saber, para mostrá-lo, essa é uma contribuição”, disse a filósofa. Mas acrescentou que as feministas devem pensar no que buscam com as denúncias. “Vamos fazer justiça? Porque a justiça formal protege os poderosos, (nos casos de abuso ou assédio sexual) não há testemunhas, porque os fatos acontecem em uma sala fechada onde há duas pessoas, e os julgamentos não têm provas. Busca-se denunciar o ato ou arruinar a vida de outra pessoa? Isto precisa ser perguntado”.
E na sequência argumentou que este tipo de movimento deveria contribuir com suas denúncias para a mudança cultural. “As negras têm uma ideia de justiça restaurativa, que não têm nada a ver com a prisão, porque é mais opressão para os homens negros”. Em vez disso, a justiça restaurativa “refere-se a um trabalho de toda a comunidade reconhecendo o dano a fim de repará-lo”.
O que os homens têm a fazer nas lutas feministas? – foi lhe perguntado.
A violência contra as mulheres e trans é porque eles se acobertam entre si, não objetam quando a noiva é assassinada, há esta irmandade, mas deveriam tomar as ruas, gritar aos quatro ventos e dizer que não podemos violar ou matar as mulheres. Essa é uma grande coisa a se fazer.
Butler voltou ao problema da criminalização do aborto e ressaltou que “deve haver recursos para todas as pessoas, tenham acesso (à interrupção voluntária de uma gravidez) não importa quão ricas sejam”. Mas “o compromisso é com a saúde das mulheres”, deve haver “centros de saúde acessíveis financiados por fundos públicos, deve haver investimentos para poder exercer os direitos. E essa é a diferença entre os direitos pessoais e o direito social que implica que todas as pessoas tenham acesso”.
Perto do final da entrevista coletiva, Butler distinguiu o impacto do movimento Ni Una Menos do Me Too: “Aqui é um movimento, é coletivo, que foi fundado para produzir uma mudança cultural, para dizer em voz alta: ‘isto já não é aceitável’. Mas é diferente de visar a eliminação de um indivíduo, porque estaríamos nos tornando juízes e verdugos de uma pessoa e não estaríamos condenando o ato. Os atos fazem parte de uma prática que está arraigada na sociedade, e é isso que queremos mudar”.
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“Proibir o aborto é penalizar a sexualidade livre”. Entrevista com Judith Butler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU