10 Março 2019
Falamos com Eduardo Viveiros de Castro, o antropólogo brasileiro que estudou o povo Araweté e que agora tem as suas fotografias na exposição Resgatar a Diversidade: Pensamento Ameríndio, em Guimarães [Portugal].
A entrevista é de Bruno Horta, publicada por Observador, 07-03-2019.
O ataque aos povos indígenas do Brasil representa um ataque ao ecossistema global e por isso não deve preocupar apenas os brasileiros, sustenta o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro, de 67 anos, que passou longos períodos no interior do estado do Pará a estudar os Araweté, povo quase desconhecido até à década de 80.
Pioneiro do Pensamento Ameríndio, uma forma de “pensar a partir dos indígenas e não sobre os indígenas”, esteve a 23 de fevereiro em Guimarães para inaugurar uma exposição documental com fotografias que captou nos anos 70 e 80. E naquele dia deu uma conferência na Sociedade Martins Sarmento, organizada pelo Centro Internacional das Artes José de Guimarães, que até 9 de junho apresenta quatro exposições sob o mote “Resgatar a Diversidade: Pensamento Ameríndio”, incluindo a de Viveiros de Castro. O Observador conversou com ele.
Viveiros de Castro (Foto: Bruno Fuji | UFMG)
Quem são em 2019 os índios da Amazônia brasileira?
A realidade dos índios brasileiros é muito variada. Talvez seja um fato pouco conhecido: a maioria da população indígena brasileira não está na Amazônia, mas no sudeste, no sul e no nordeste. A maioria das terras indígenas, terras públicas das quais os índios têm direito exclusivo de usufruto, a maioria dessas terras, sim, fica na Amazônia. Não a maioria da população. Diz-se que as terras indígenas são muito extensas, que 13% do território nacional seria de terras indígenas.
Podemos chamar-lhes reservas?
O termo não é esse, são terras indígenas, parte de terras públicas, destinadas ao uso exclusivo dos povos que ali habitavam imemorialmente. Cerca de 13% do território. Ora, a população indígena é cerca de 1% da população brasileira. Comparativamente, 46% do nosso território está nas mãos de proprietários privados, que não são 1% da população. São bem menos que os indígenas e são proprietários de quase metade do território.
Imagem da exposição Resgatar a Diversidade: Pensamento Ameríndio (Foto: Paulo Pacheco | Observador)
Fala-se quase sempre da Amazônia quando se fala de índios. Pelo que acaba de dizer, os problemas destes povos não estarão aí, porque a maior parte vive fora da Amazônia.
Os problemas enfrentados pelos povos indígenas são muitos e variados, dependendo do lugar onde eles estão. Até certo ponto, a maior parte do problemas está na Amazônia, porque essas terras são hoje objeto da cobiça das grandes empresas agro-industriais e de extração, cujo objetivo político é o de privatizar o máximo possível de terras públicas brasileiras, incluindo terras indígenas, reservas ecológicas e áreas protegidas. As terras indígenas estão fora do mercado fundiário, capitalista, e por isso são consideradas um entrave ao progresso.
Essas atividades econômicas são a plantação de soja…
Sim e a criação de gado e extração de minério.
Por parte de empresas brasileiras ou multinacionais?
A soja e o gado são na maioria de proprietários brasileiros, mas nesta fase do mundo saber o que é nacional ou não nacional é extremamente difícil. O modelo econômico que sustenta este interesse pelas terras públicas é um modelo de exportação para grandes centros capitalistas, como China, Europa e EUA. O Brasil está-se convertendo novamente num país de exportação de produtos primários, como foi no tempo da cana do açúcar, no ciclo do ouro e do café. Ou seja, uma colônia de produtos para transformação. Claro, agora é uma colônia “high tech”, não há escravatura explícita, nem tanta mão de obra humana.
Essa realidade estava a surgir no fim da década de 70, quando iniciou os seus primeiros trabalhos de campo como etnólogo?
Houve uma desindustrialização importante nos últimos 20 ou 30 anos, uma opção pelos recursos naturais do Brasil, mais do que pelos recursos industriais. Não houve propriamente montagem ou reforço de um parque industrial robusto. Isso levou a uma aceleração da devastação da natureza. Exportação de madeira, desmatamento para produção de monocultura de soja, de cana, de laranja. Há quem ache que ainda há muito mato para derrubar, muita terra para gastar. Acontece, que tudo tem um limite. O Brasil é grande, mas não é infinito. O Brasil é grande, mas o mundo é pequeno, como se diz. Por este andar da carruagem, não demorará muito até que a floresta amazônica e o Cerrado Brasileiro, que é o Brasil central, uma savana que perdeu quase 70% da vegetação original, sejam tomados pelo negócio da soja e do gado, com uso intensivo de pesticidas proibidos na Europa e nos EUA, mas permitidos no Brasil. É o paraíso para grandes companhias como a Monsanto. Só este ano, com o novo governo, foram autorizados 29 pesticidas que eram proibidos no Brasil para uso na agricultura industrial.
Acha que os problemas dos indígenas do Brasil dizem respeito a todo o país e ao ecossistema global?
Sem dúvida. Os índios são hoje, juntamente com outras populações tradicionais – pescadores, camponeses, populações ribeirinhas –, aqueles cujo modo de vida protege o que ainda resta da conformação original da natureza no Brasil. Esses índios, 60% dos quais não moram na Amazônia, vivem em terras minúsculas e é aí que ainda existe alguma integridade ambiental. No caso da Amazônia, há imagens impressionantes que podemos ver no Google Earth: o parque indígena do Xingu, que fica em Mato Grosso, uma região hoje tomada pelos negócios agrários, está completamente devastado, inundado de pesticidas e fertilizantes químicos. O país está muito devastado.
O seu discurso, mais do que o de um cientista social, é o de um ecologista?
Diria que hoje não é possível ser cientista social apenas, porque a intervenção humana na natureza é de tal monta que a natureza e a cultura já não são departamentos estanques. A ação humana está acabando com as abelhas, com os recursos hídricos, está destruindo a Amazônia, que tem um papel na regulação do clima no mundo. Sabemos, por exemplo, que a floresta amazônica está perdendo umidade e se continuar ao ritmo atual vai começar a secar, ou seja, a tornar-se inflamável, ou seja, a poder ter incêndios de dimensão planetária. Um incêndio na floresta amazônica não é controlável. Temos visto incêndios nos EUA, em Portugal, na Grécia, na Austrália. São incêndios incontroláveis. Imagine na Amazônia.
Kuyawmá com a filmadora super-8, fotografado pelo antropólogo Viveiros de Castro
Disse na conferência em Guimarães que o governo de Bolsonaro declarou guerra aos indígenas, embora não tenha existido realmente qualquer declaração de guerra.
Se tivesse havido uma declaração oficial de guerra, Bolsonaro seria levado ao Tribunal Penal Internacional. Usei uma metáfora, no sentido em que o presidente em exercício declarou repetidas vezes, durante a campanha eleitoral, que não iria autorizar nem mais um centímetro de terra para os índios, que que iria rever as demarcações existentes, que os índios eram como animais num zoológico.
Ele disse: “E por que temos que mantê-los reclusos em reservas como se fossem animais em zoológico? O índio é um ser humano igualzinho a nós.”
Sim, mas isso é falso, porque as terras indígenas não impedem os índios de sair, impedem, sim, os brancos de entrar.
Bolsonaro também disse que os indígenas são alvo de manipulação de organizações não-governamentais. Como comenta?
São alvo de manipulação de organizações evangélicas fundamentalistas, que hoje estão no governo.
Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros.
— Jair M. Bolsonaro (@jairbolsonaro) 2 de janeiro de 2019
Para os leitores portugueses: áreas demarcadas são aquelas que os índios podem habitar, por determinação do governo federal, é isto?
São terras não alienáveis, indisponíveis, das quais os índios têm usufruto exclusivo, salvo para obras de relevante interesse nacional ou por questões de defesa nacional. São terras do Estado, de todos, os brancos não podem estabelecer-se com fazendas ou plantações, ainda que o façam ilegalmente. Os índios têm o usufruto, mas não as podem vender, retalhar, partilhar. Funcionam como uma reserva, não uma reserva indígena, mas uma reserva para o futuro, protegidas de transformação radical.
Que opinião tem sobre essas áreas demarcadas? É que, em rigor, até à chegada dos portugueses todo o território era dos índios.
Há uma componente importante de reparação histórica. Desde o primeiro alvará régio do Brasil, os índios foram reconhecidos como senhores originários da terra, o que não impediu que fossem pressionados para o interior do Brasil, exterminados na costa, deliberadamente por massacres ou por epidemias. Os que restaram, e não foram poucos – hoje, aliás, a população indígena está em crescimento – ficaram em terras que hoje não são propriamente concedidas pelo Estado, mas sim reconhecidas. O Estado reconhece um direito prévio dessas populações ao território que ocupam. É um modelo mais desejável do que termos um governo que de um momento para o outro declarasse arbitrariamente que as terras indígenas não existem ou que se tornariam terras devolutas.
A Constituição brasileira de 1988 não permitiria essa alteração.
Não, por vida do artigo 231. Este artigo, e outros, que estenderam direitos a vários segmentos da população, enfrenta o desagrado da direita no Brasil, dos grandes proprietários, que o veem como um entrave ao desenvolvimento livre das forças do mercado e do capital.
A esquerda brasileira também tem sido acusada ao longo dos anos de insensibilidade para com os indígenas. O governo Dilma foi particularmente criticado.
Os governos do PT [Partidos dos Trabalhadores] mostravam-se certamente menos ferozes no processo de agressão aos direitos indígenas, mas governaram sempre em coligação com forças da direita e sempre compartilharam com o grande capital uma certa concessão de desenvolvimento econômico que em certo sentido não era diferente dessa que hoje está a ser projetada de maneira mais violenta e grotesca. Os governos PT não foram bons para os índios, mas comparados com o atual, com o que este promete ser, foram incomparavelmente melhores.
Uma sondagem publicada em janeiro indicava que 60% dos inquiridos eram contra a redução de áreas demarcadas. A população parece não concordar com as intenções do atual governo.
Se se fizer uma sondagem sobre se os brasileiros são racistas, talvez 99% respondam que não são. Tendo a pensar que essa sondagem reflete o sentimento dessa parte da população, dois terços, porque os índios têm no Brasil uma imagem positiva, exceto junto daqueles que estão interessados na exploração das terras.
Quem defende os interesses dos indígenas junto dos poderes públicos?
O Estado tem a Fundação Nacional do Índio (Funai), que é responsável por defender os direitos, tanto contra particulares como contra o próprio Estado. É como um Ministério Público. Originalmente, a Funai fazia a demarcação de terras, tomava conta da saúde e da educação indígena, mas foi perdendo ao longo de vários governos as atribuições e responsabilidades. Agora, com este governo, está a perder a responsabilidade principal, que era o estudo e a demarcação de territórios indígenas. A Funai tem sido desmantelada, passou para o Ministério da Agricultura, que está alinhado com os interesses dos agronegócios. Foi castrada, desmantelada. Agora está também dependente de um ministério bizarro, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Visitante da exposição de Viveiros de Castro (Foto: Paulo Pacheco | Observador)
A titular dessa pasta, Damares Regina Alves, foi acusada de ter raptado uma criança indígena.
Terá sido uma adoção informal, mas é muito difícil provar o rapto, se existiu. O que se dá é que esta ministra pertence a uma igreja evangélica fundamentalista, que tem associação com missionários evangélicos que querem “desindianizar” os índios e convertê-los ao cristianismo. Não apenas ao conteúdo espiritual cristão, mas ao modo de vida ocidental. Isso passa pela demonização dos costumes tradicionais, a tentativa de proibir o xamanismo e os rituais. Esses missionários têm uma origem norte-americana, do sul, de origem batista. De acordo com informações de várias fontes, eles retiram crianças indígenas e entregam-nas para adoção, para depois as treinarem como futuras missionárias.
Qual tem sido o papel da Igreja Católica?
A Igreja Católica mudou radicalmente a sua atitude. Chegou ao Brasil com o objetivo de converter os índios e isso mudou com o tempo. Hoje, claramente, já não faz esse tipo de missão proselitista. E na verdade, com o papa Francisco, a Igreja Católica está hoje na oposição a Bolsonaro. O papa tem feito declarações sobre a defesa do meio ambiente e dos povos indígenas, na encíclica Laudato Si'. A Igreja Católica é hoje certamente uma força positiva e está do lado dos indígenas.
Fale-nos brevemente da exposição fotográfica que está agora em Guimarães. Os etnólogos fazem muitas vezes registr
os fotográficos, mas neste caso parecem imagens mais artísticas.
Há muitos que usam a fotografia como auxiliar do trabalho etnográfico, sim; no meu caso, foi puro prazer estético. O meu trabalho não passava por uma análise visual da cultura deles, era muito mais ligado à palavra. As fotos foram tiradas nas horas vagas, nas minhas e nas deles, para meu prazer, e nunca tencionei mostrá-las. Foram os curadores [Eduardo Sterzi e Veronica Stigger] que ao verem algumas fotos nos livros que escrevi – colocava apenas algumas, a título de ilustração –, os curadores, que não me conheciam antes, propuseram fazer uma exposição. Hesitei, achei que não era fotógrafo, que não era artista, mas quando mexeram no material havia partes a que eu próprio não tinha prestado atenção. Aceitei. Disse: “Podem fazer, mas não vou interferir, tratem-me como um artista morto, tratem as imagens como quiserem.”
O que é que estas imagens nos mostram?
É inevitável que os povos indígenas absorvam elementos da cultura material e espiritual da sociedade envolvente e dominante. Isso está lá. É uma contingência à qual todos estamos submetidos. Os brasileiros e os portugueses também usam calças americanas e iPhones e nem por isso deixam de ser brasileiros e portugueses. O mundo está transformado num grande aeroporto. Isso afeta os índios, claro, mas enquanto tiverem garantida a relação com a terra, terão uma capacidade de decidir o que absorvem ou rejeitam, o que não aconteceria se fossem desterritorializados e atirados para as periferias das cidades, para serem mão de obra informal e não qualificada.
Essa relação com a terra parece hoje quase inexistente para os ocidentais.
Eles sentem que pertencem à terra e não que a terra lhes pertence. O proprietário tem uma relação extrínseca com a terra, usa e abusa, tem ali uma mercadoria. Para os índios, a terra é um lugar de pertença e acho que muita gente se sente assim em relação ao seu país.
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“A Igreja Católica está do lado dos indígenas”. Entrevista com Eduardo Viveiros de Castro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU