27 Fevereiro 2019
"Além da dimensão estritamente religiosa, Hélder Câmara foi um intelectual." A certificação vem daqueles que sabem. Lucy Pina Neta é a perita histórica da causa de beatificação do arcebispo de Olinda-Recife, figura não esquecida e inesquecível do "pastor com o cheiro das ovelhas" por seu empenho ao lado dos mais necessitados e em defesa dos pobres no Brasil na segunda metade do século XX. E é justamente Lucy Pina Neta que esboça, em um livro recém-lançado no Brasil, o perfil cultural do bispo das favelas encontrando em sua biblioteca os textos mais consultados e mais amado pelo prelado brasileiro. "Nascemos em uma escola" assim se apresentava Câmara, décimo primeiro filho de João Eduardo Torres Câmara Filho, contador e crítico de teatro, e Adelaide Pessoa, uma professora de escola primária. Já durante os estudos escolares, Hélder manifestava uma sensibilidade marcante para a literatura, em especial aquela brasileira, portuguesa e francesa. Àquele tempo se devem as leituras de autores como Leon Bloy, Charles Péguy e Miguel de Unamuno, como evidencia Lucy Pina Neta em O dom da Leitura. Hélder Câmara e suas bibliotecas (Editoras Paulinas, Rio de Janeiro, 2018).
Reprodução da capa do livro de Lucy Neta
Foto: Ed. Paulinas | Divulgação
A reportagem é de Lorenzo Fazzini, publicada por L'Osservatore Romano, 26 e 27-02-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Uma atitude em relação à cultura que permaneceu mesmo quando Câmara - soube da notícia pela Rádio Vaticano, enquanto estava em Roma para o Concílio Vaticano II - foi nomeado em 14 de março de 1964 à liderança da Arquidiocese de Olinda e Recife. Uma das primeiras tarefas pastorais de Dom Hélder foi o ensino da didática geral, da administração escolar e de psicologia, a que se dedicou desde 1941 na Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Para ele, era fundamental a leitura de Psychometric Methods de Joy Paul Guilford, psicólogo norte-americano conhecido por seus estudos sobre a psicometria da inteligência humana. Câmara leu bem cedo (em 1939) aquele texto, lançado apenas três anos antes. A Sigmund Freud dedicou a leitura da Introdução à Psicanálise em 1941. Enquanto muitos anos antes (1932) teve seu encontro com Friedrich Nietzsche e seu Assim falou Zaratustra.
Na cidade carioca, onde foi nomeado bispo auxiliar em 3 de março de 1952, através de sua amiga Cecy Cruz também começou a frequentar intelectuais conhecidos como o famoso escritor Jorge Amado, autor de Seara Vermelha. O encontro com pessoas dedicadas à cultura o acompanhou durante toda a sua vida: "Ele costumava reunir no episcopado intelectuais, teólogos e artistas para trocar opiniões e encontrar possíveis soluções", escreve Lucy Pina Neta, desmentindo a aura do personagem dedicado apenas ao social que determinada visão inimiga colava em Dom Hélder, como ele amava ser chamado.
E se à amizade entre Câmara e Paulo VI o teólogo brasileiro Ivanir Antônio Rampon já havia dedicado um livro intitulado Paulo VI e Dom Hélder Câmara. Exemplo de Uma amizade espiritual (Paulinas), Lucy Pina Neta tem uma possibilidade, folhando os documentos e a coleção de livro de Câmara, de reconstruir o legado frutífero que o Concílio Vaticano II deixou no pensamento e na ação de Bispinho. Durante o período do Vaticano II dom Câmara se aproximou de alguns teólogos que estavam marcando a assembleia conciliar, como o dominicano Yves Congar e o jesuíta Henri de Lubac. Durante a última sessão do concilio também conversou com Jacques Maitain e Jean Guitton, cujo livro com Montini viria a ser uma das leituras mais constantes do "bispo vermelho". São daqueles anos as leituras de alguns textos significativos: Manifeste pour une civilisation solidaire do dominicano Joseph Lebret, L'unité, espérance de vie do fundador da Comunidade de Taizé, frei Roger, o ensaio de Congar Jalons Pour une théologie du laïcat e Jésus do já mencionado Guitton. Deste último será um ávido leitor dos Diálogos com Paulo VI, que Câmara iria ler (e assinalará com intensidade em 1969).
Hélder Câmara também buscava inspiração na Itália, com as reflexões de Giorgio La Pira, Lazzaro alla tua porta, e de Romano Guardini (lido em francês, L'univers religieux de Dostoïevski). Ele não desdenhava a teologia norte-americana, como evidenciado a leitura de Cristo e Cultura de Richard Niebuhr e Harvey Cox (A festa dos foliões e On not leaving it to the Snake). Naturalmente, os autores nacionais não ficaram de fora: frequentes os textos de Leonardo Boff e Rubem Alves.
A virada internacional no reconhecimento do prelado brasileiro aconteceu em 1970, quando um discurso público em Paris consagra o bispo das favelas como uma das vozes proféticas da Igreja sul-americana, comprometida na luta pelos direitos humanos no difícil contexto político da época, marcado por ditaduras militares. Essa notoriedade muitas vezes tornou-se uma espécie de cruz suplementar para dom Câmara, às vezes rotulado como "bispo vermelho" por suas fortes posições sobre as injustiças (sobre tais acusações, documentou o ensaio de Rampon, costumavam brincar Paulo VI e o próprio dom Hélder).
Para desmentir essa posição Lucy Pina Neta relata uma carta de Câmara, a carta circular nº 33, de 1966: "Nos minutos livres leio O marxismo do padre Conego Juvenal Arduini. Comecei pelo último capítulo: a conclusão fala da superação positiva do marxismo. Muitas pessoas que falam contra o comunismo marxista sem nunca ter lido nada sobre Marx iriam ganhar muito com sua leitura, por exemplo, dos capítulos sobre a alienação e as suas origens, sobre o valor agregado, a dialética real ou o humanismo ateu. O padre Arduini tem o dom de expor de forma objetiva e honesta, tornando compreensíveis noções difíceis".
Também na frente do compromisso pela paz, Câmara buscou recursos em mestres qualificados: leituras intensas nesse caso de Gandhi e de Thomas Merton; visitas frequentes a Hildegard Goss-Mayr, esposa do ativista Jean Goss. Emblemáticas são as palavras de admiração por La force d'aimer, de Martin Luther King: "Eu já tenho uma medida exata da palavra deste homem! Que alma sincera! Eu já confirmo a intenção de convidá-lo a vir aqui!”
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Novos estudos sobre a biografia de dom Hélder Câmara. Os livros do bispo das favelas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU