O legado da mística de Thomas Merton, monge trapista que se converteu ao cristianismo em 1938, “é enorme” e “de fundamental importância para o nosso tempo atual, de desgaste da compaixão, de indiferentismo, fundamentalismos e fixações identitárias”, diz o teólogo Faustino Teixeira à IHU On-Line, ao comentar a obra do místico recordando os 50 anos de sua morte no dia de hoje, 10 de dezembro. “Thomas Merton é para mim uma das figuras mais importantes do século XX, que apontou de forma fundamental o perfil de uma mística profundamente ligada ao tempo e desperta para o amor a Deus e ao próximo”, afirma na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Aliás, Thomas Merton foi igualmente recordado pelo Papa Francisco, juntamente com Martin Luther King, Dorothy Day e Abraham Lincoln, como uma das figuras proeminentes dos EUA, no memorável discurso ao Congresso Norte-Americano.
Entre os elementos essenciais da mística de Thomas Merton, Teixeira menciona a contemplação, o diálogo e a compaixão. De um lado, explica, a contemplação era entendida por ele como “experiência compatível e integrável com todas as coisas”, “um dom”, “uma tomada de consciência repentina, um despertar à infinita Realidade que existe dentro de tudo que é real”; de outro, diz, Merton “apreciava muito a ‘nota dominante da solidão’, como expressão essencial de pobreza e humildade, bem como a atenção com o trabalho no campo. Foi ali, no campo, que Merton aprendeu o que há de mais profundo na experiência contemplativa”. Além de um “místico multifacetado”, Teixeira frisa que Thomas Merton foi “sobretudo um monge”, um “itinerante alternativo” que “mudou a forma de olhar, entender e viver a mística nos séculos XX e XXI”, conclui.
Faustino Teixeira (Foto: Arquivo Pessoal)
Faustino Teixeira é professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais - PPCIR-UFJF. É doutor e pós-doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. É autor de Caminhos da mística (São Paulo: Paulinas, 2018), Em que Creio Eu (São Paulo: Terceira Via, 2017), Finitude e Mistério. Mística e Literatura Moderna (Rio de Janeiro: Mauad, 2014). Também organizou, entre outros, Nas teias da delicadeza (São Paulo: Paulinas, 2006), As religiões no Brasil: continuidades e rupturas (Petrópolis: Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes, e As orações da humanidade (Petrópolis: Vozes, 2018), em parceria com Volney Berkenbrock.
IHU On-Line - Quem foi Thomas Merton? Como ocorreu o seu processo de conversão ao cristianismo e seu ingresso na Ordem dos Trapistas?
Faustino Teixeira - Thomas Merton é para mim uma das figuras mais importantes do século XX, que apontou de forma fundamental o perfil de uma mística profundamente ligada ao tempo e desperta para o amor a Deus e ao próximo. Seu processo de conversão está descrito de forma maravilhosa no livro A montanha dos sete patamares, de 1948 [1]. A conversão ocorreu em 1938, mas mesmo antes alguns flertes importantes ocorreram com o cristianismo como em sua viagem a Roma, em 1933, num longo período de férias. Foi uma experiência marcante para ele, sobretudo o encanto com a arte bizantina, o impacto exercido nele pelos mosaicos bizantinos. Relata em sua biografia que foi em Roma que “se formou sua concepção de Cristo” [2]. Foi um período de muita paz interior. Numa passagem de seu diário, belíssima, relata a visão que teve de seu pai, que morrera há pouco mais de um ano. Em determinado momento, sentiu sua presença viva junto a si, como se ele tivesse comunicado uma “luz interior de Deus” em sua alma. Relata na ocasião que deveria ter seguido esta intuição, o que não ocorreu no período sequencial de sua sombria vida em Cambridge. Sobre a experiência relatou: “A única coisa que me parece moralmente certa é que isto foi realmente uma graça, e uma grande graça. Se a tivesse seguido, minha vida teria sido bem diferente e menos miserável nos anos a seguir” [3].
O marco da conversão aconteceu depois, em 1938, precedido de três experiências importantes: a leitura de William Blake – alguém que tinha “algo da graça de Deus” [4]; o impacto do contato com o livro O espírito da filosofia medieval, de Etienne Gilson, e o encontro com o monge hindu Brachamari. A leitura de Gilson possibilitou a Merton um olhar distinto sobre o Deus misericordioso, podendo assim alcançar o largo espectro da experiência religiosa [5]. Ao abrir o livro de Gilson, Merton foi tocado de admiração, para além daquele “medo” que alimentava sobre a igreja católica. O que extraiu daquelas páginas foi algo que revolucionou a sua vida, sobretudo “um conceito inteiramente novo de Deus – um conceito que me mostrou logo que a crença dos católicos não era absolutamente o resíduo vago e um tanto supersticioso de uma época não científica, como eu imaginava” [6]. Com Brachamari recebeu um conselho decisivo: “Existem muitos e belos livros místicos escritos por cristãos. Você deveria ler As confissões, de Santo Agostinho, e a Imitação de Cristo”. E Merton relata: “É um tanto irônico que eu me tenha voltado espontaneamente para o Oriente em minhas leituras sobre o misticismo, como se não houvesse nada ou muito pouco na tradição cristã” [7]. E isto dito por um monge hindu. Aos poucos foi sendo tomado por um impulso novo, de avançar na experiência cristã: resolveu “ir a uma missa pela primeira vez na vida”. Já tinha entrado em igrejas, mas nunca havia assistido uma missa [8]. Ao padre Ford, da igreja de Corpus Domini, na rua 121 na Broadway, expressa o desejo de ser católico, e o batismo veio na sequência.
A decisão pelo sacerdócio aconteceu simultaneamente ao processo de aprofundamento de sua vida religiosa. Depois de tomar conhecimento de várias ordens religiosas, optou pelos franciscanos. Esse projeto não teve continuidade, em razão de um acontecimento de sua vida pregressa, um filho que tivera durante sua moradia em Cambridge [10]. Aos poucos foi amadurecendo a decisão pela Trapa, com a positiva acolhida do Abade de Gethsemani, Dom Frederic, depois que Merton fez um retiro na abadia no tempo do natal. A acolhida ocorreu em 1941. Um ano antes, durante uma visita a Cuba, Merton teve também uma experiência mística bonita, na basílica de Nossa Senhora do Cobre, ao ouvir o brado de crianças no momento nobre da consagração da missa: “Creo en Diós”. E afirmou sobre o episódio: “Então, repentina e definitivamente como o brado das crianças, mil vezes mais radiante, formou-se em minha mente uma certeza, uma compreensão de que havia acontecido sobre o altar a presença de Deus pelas palavras da consagração, de modo a fazê-lo pertencer a mim”. Em seguida veio uma iluminação, que durou um único instante: “O céu está bem presente diante de mim: o céu, o céu” [11] .
IHU On-Line - O que caracteriza a mística de Thomas Merton? Ainda nesse sentido, qual é a diferença da mística dele em relação à mística medieval?
Faustino Teixeira - Merton foi um místico multifacetado. Foi alguém diferente, com uma abertura acadêmica, interdisciplinar e multirreligiosa. Mas foi sobretudo um monge. É a partir desta ocular que ele vê o mundo, que compreende a vida e reforça sua abertura ao canto das coisas. Como bem mostrou Sibélius Pereira em sua tese doutoral [11], que tive o prazer de orientar, Merton foi um monge que resgata o amplo campo da vida monástica, dos padres do deserto e do monaquismo antigo, da ortodoxia católica, da patrística grega e latina, da rica tradição cisterciense e da mística alemã e espanhola. E junto com tudo isto, a bonita leitura da tradição zen-budista, incentivada por D.T. Suzuki. Na obra As águas de Siloé (1949), estimulado pelo abade Dom Frederic, Merton discorre amplamente sobre as raízes dessa tradição monástica que veio ser coroada pelos Cistercienses, dedicando-se em particular à abordagem das características centrais da vida cisterciense.
Em outra obra, A vida silenciosa (1957), Merton busca introduzir o leitor aos traços cotidianos da vida monástica na variedade de suas formas. Discorre sobre os aspectos da vida cenobítica e também da vida eremítica. Destaca o papel de São Bento na raiz dessa experiência espiritual. Abordando-as a Regra de São Bento, indica como ele valorizava as “coisas materiais mais humildes”, tratadas sempre com reverência [12]. Todas as realidades criadas são tratadas com respeito e cuidado, e o são não por causa delas em si, mas por pertencerem a Mistério de Deus [13]. Com respeito aos cistercienses, Merton buscou mostrar o traço da “pura caridade” que marca a sua reforma, bem como a especificidade da vida contemplativa como uma vida no Espírito [14]. E o que o agradava na vida trapista era a marca da solidão, da “solidão sonora”, para utilizar uma expressão cara a João da Cruz [15]. Ele apreciava muito a “nota dominante da solidão”, como expressão essencial de pobreza e humildade, bem como a atenção com o trabalho no campo. Foi ali, no campo, que Merton aprendeu o que há de mais profundo na experiência contemplativa.
Em outra obra, O signo de Jonas, um diário que cobre o período da sua vida entre 1946 e 1952, Merton fala de seu trabalho como “marcador de árvores”, uma experiência singular em sua vida. Dizia no livro sobre sua vida entre as árvores: “Marco-as com tinta, e, em troca, os bosques me educam com seu silêncio” . Dizia ainda que “ser tocado pelas coisas” é algo simplesmente maravilhoso, essa mistura com as coisas, captando sua alegria, que se conjuga com o Mistério de Deus [17]. Na natureza, a transparência de Deus: “Nenhum escrito sobre as dimensões da solidão, de meditação da vida pode dizer algo que já não tenha sido dito melhor pelo vento nos pinheiros” [18]. Em sua vida, marcada pela presença no campo, foi captando a profundidade do silêncio e da solidão: “Agora que eu os conheço melhor (meus irmãos), sou capaz de ver a profundidade da solidão que há em cada pessoa humana” [19]. Como ocorre em muitas de suas obras, Merton expressa seu pensamento como uma oração: “Pensam que eu tenho uma vida espiritual? Não a tenho, sou indigência, sou silêncio, sou pobreza, sou solidão, pois renunciei à espiritualidade para achar Deus, é Ele quem prega em voz alta nas profundezas de minha indigência” [20].
Assim vai tecendo Merton, com as malhas da vida, a sua compreensão de contemplação, de vida mística, sempre pontuada pelo toque da compaixão. A importância nodal em sua vida deste “ponto” onde se concentram todas as solidões, que é a “Palavra única, pronunciada em silêncio”, que congrega “toda a Cidade de Deus” [21]. E a partir deste ponto, o exercício de abertura aos outros. Dizia que é no “ermo profundo” que conseguia encontrar a delicadeza da experiência do amor para com seus irmãos [22]. Revisando uma obra que tinha escrito em março de 1949 sobre a contemplação, Merton escreve um de seus mais preciosos trabalhos: Novas sementes de contemplação (1961). Acrescenta algo de novo no título para marcar a peculiaridade de sua reflexão, e na introdução assinala que agora é um “livro inteiramente novo” [23]. É quando então Merton mostra a diferença de sua visão sobre o tema, a originalidade de sua reflexão com respeito a outros místicos anteriores. No primeiro capítulo já destila a novidade de sua visão:
“A contemplação é a mais alta expressão da vida intelectual e espiritual do homem. É a própria vida do intelecto e do espírito plenamente despertada, plenamente ativa, plenamente consciente de que está viva. É um espanto espiritual, uma admiração. Um temor espontâneo, reverencial, diante do caráter sagrado da vida, do ser” [24].
Em sua nova perspectiva, Merton entende a contemplação como experiência compatível e integrável com todas as coisas. Trata-se, antes de tudo, de um dom, de “uma tomada de consciência repentina, um despertar à infinita Realidade que existe dentro de tudo que é real” [25]. A vida contemplativa é movida por singular “ressonância”, onde todas as coisas reverberam movidas pela Presença irradiadora “daquele que está oculto mas Vivo” [26]. Não é, absolutamente, experiência solipsista, mas profundamente sonora, na medida em que se irradia para os outros e para as espécies companheiras. Envolve, sim, humildade e desapego, no sentido de esvaziar-nos para poder “ver e usar todas as coisas em e para Deus” [27]. Daí a beleza dos santos, diz Merton, aqueles seres ensolarados que, por estarem absortos em Deus, são capazes “de ver e apreciar as coisas criadas” [28].
IHU On-Line - De que modo a busca da interioridade e pelo amor a Deus é expressa na mística de Merton?
Faustino Teixeira - Um dado curioso e instigante na vida de Merton nos ajuda a compreender o caráter ativo de sua contemplação. Poderíamos chamar isso de equilíbrio interior. Merton dizia que “a felicidade não é questão de intensidade, mas de equilíbrio, de ordem, de ritmo e de harmonia” [29]. Na medida em que ele avançava em seu mundo interior, num ritmo de equilibração, ele também dilatava as esferas da caridade, hospitalidade, cuidado e compaixão. Isto ocorria concomitantemente: o avanço no mundo interior e a abertura aos novos horizontes, tanto da experiência da alteridade como da sintonia inter-religiosa.
Livros de Thomas Merton (Foto: Reprodução)
IHU On-Line - Qual é a importância do silêncio e da contemplação na mística de Thomas Merton?
Faustino Teixeira - Merton indica que o passo inicial para qualquer experiência contemplativa é a busca da integração do mundo interior. Aí está o segredo: “A primeira coisa que você deve fazer é tentar recuperar sua unidade natural fundamental, reintegrar seu ser fragmentado em um todo simples e aprender a viver como uma pessoa unificada” [30]. É no silêncio, no cultivo da vida interior, que a experiência de Deus vai se tecendo, pacientemente. É todo um trabalho laborioso de purificação do coração. É o passo do trabalhar-se a si mesmo, de forma a garantir o espaço bonito da experiência da doação. Merton cita o caso dos padres do deserto, que fizeram um tal exercício não “para ganhar alguma coisa, mas para doar-se a si mesmos”. A vida contemplativa, diz Merton, não é algo impossível e destinado a alguns privilegiados, mas está aí diante de nós, disponível. Basta apenas abrir os olhos e estar atentos aos pequenos detalhes do cotidiano, ao ritmo da vida. Abrir-se à contemplação é estar disponível a uma vida de simplicidade e liberdade. Não se busca nada de especial, mas simplesmente estar aí. E os exemplos que ele dá são tirados da dinâmica do dia a dia:
“Andar pela rua, varrer o chão, lavar os pratos, escolher feijões, ler um livro, dar um passeio pela mata – tudo pode ser enriquecido pela contemplação e pelo obscuro sentido da presença de Deus. Essa contemplação é justamente mais pura porque a pessoa não ‘olha’ para ver se ela está lá. Esse ‘caminhar com Deus’ é uma das mais simples e mais completas maneiras de viver uma vida de oração, e uma das mais seguras. Ela nunca chama a atenção de ninguém, muito menos a atenção de quem a vive; e aquele que a vive logo aprende a não querer ver nada de especial em si mesmo. Esse é o preço da liberdade” [31].
A solidão autêntica, diz Merton, é uma experiência integradora, marcada pela liberdade e pela acolhida. Ela “abarca tudo”, nada deixa escapar, e vem delineada pelo toque da delicadeza e do cuidado. Diz Merton em página de seu diário, que nada conta para a solidão senão o amor, uma “total abertura da liberdade”. Indica que “amor e solidão são o solo da verdadeira maturidade e liberdade. A solidão que é apenas solidão e nada mais (i.e, que exclui tudo que não é solidão) não tem valor. A verdadeira solidão é “plenitude do amor que não rejeita nada e ninguém, que se abre para Todos e Tudo” [32]. Merton diz que o seu espaço de vida, contemplação e atuação é “o mundo criado e redimido por Deus” [33]. Mas isto requer, e como, atenção plena. Não se requer apenas concentração, mas sobretudo “estar presente” [34]. Essa foi sua grande lição na vida de eremita, que começou a acontecer em sua vida a partir de julho de 1965. Mas já antes, quando era mestre de noviços, dentre os quais estava Ernesto Cardenal, já captava esse toque zen da contemplação. Dizia que a verdadeira vida espiritual está conectada com tudo e não envolve muita ascese. Basta estar aí. A seu ver, “a vida do contemplativo era simplesmente viver, como o peixe na água” [35].
A vida contemplativa envolve o afinamento dos sentidos para perceber o canto do universo. No caso de Merton, um acontecimento foi essencial para esse despertar. Ocorreu em março de 1958, em Louisville, em pleno centro comercial, quando então se dá conta de que a experiência contemplativa implica o amor a todas as pessoas, e de que sua solidão não é sua. A descrição que faz é belíssima, e está no livro Reflexões de um espectador culpado (1966):
“Aconteceu então, subitamente, como seu eu visse a secreta beleza de seus corações, a profundeza de seus corações onde nem o pecado, nem o desejo, nem o autoconhecimento podem penetrar. Isto é, o cerne da realidade de cada um aos olhos de Deus. Se ao menos todos eles pudessem ver-se como realmente são. Se ao menos pudéssemos ver-nos uns aos outros deste modo, sempre. Não haveria mais guerra, nem ódio, nem crueldade, nem ganância... Suponho que o grande problema é que cairíamos todos de joelhos, adorando-nos uns aos outros” [36].
Foi quando então, por influxo de Louis Massignon e da mística sufi, captou o significado do “ponto virgem” (le point-vierge), aquele pontinho de nada, de pura verdade, aquela faísca que habita o íntimo de cada um, aquele “ponto como vazio, intocado pelo pecado e pela ilusão, um ponto de pura verdade, uma centelha que pertence inteiramente a Deus” [37]. E esse pontinho pode também ser percebido na aurora, quando ocorrem os primeiros pios dos pássaros, quando o céu “ainda está desprovido de luz real”. É o momento nobre do início da manhã, ou melhor, da madrugada, quando o Mistério Maior abre os olhos da criação. Trata-se daquele “momento mais maravilhoso do dia”, quando então “a criação em sua inocência pede licença para 'ser' de novo, como foi na primeira manhã que uma vez existiu”. O ponto virgem é esse “ponto cego e suave”, que habita o “entre”, na divisória de trevas e luz [38].
IHU On-Line - Como a mística de Teresa de Ávila e os Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola influenciaram Thomas Merton? Além desses, quais foram os outros místicos que exerceram influência sobre a mística dele?
Faustino Teixeira - Thomas Merton lembra a presença desses místicos em sua vida. Fala da importância dos exercícios espirituais de Santo Inácio na sua biografia, quando adquiriu o livro pela primeira vez e dedicou-se à sua reflexão e meditação [39]. Outros importantes místicos estiveram na fonte de sua inspiração, como João da Cruz, Jan Ruusbroec, São Bernardo de Claraval e Mestre Eckhart [40]. Dedicou-se a dar um curso aos noviços sobre a mística cristã, que está registrado numa excelente publicação inglesa [41].
Em seu “trabalho de cela”, uma experiência fundamental para Merton, quando busca estar atento ao diversificado som da voz de Deus espraiado em toda criação, a presença dos místicos foi essencial. Destaco aqui o influxo de Mestre Eckhart, cuja presença acompanha a experiência zen de Merton. Vale lembrar a citação que Merton faz de Eckhart numa passagem de seu livro Zen e as aves de rapina (1968), quando aborda o tema do essencial esvaziamento visando a pureza do coração. Menciona uma passagem clássica do Sermão Alemão 52 de Eckhart: “O homem deve ser tão vazio de todas as coisas e de todas as obras, tanto interiores como exteriores, a ponto de ser um lugar próprio onde Deus possa atuar” [42]. Isto para dizer que o verdadeiro esvaziamento que a mística exige implica um desvencilhar-se do lugar mesmo onde Deus possa atuar, pois reservar um “lugar” seria manter acesa a distinção. A vida contemplativa, em sua profundidade, envolveria assim um operar despido da consciência que Deus ali opera [43]. Junto a Eckhart a presença da mística zen, se assim a podemos denominar. Nesse caso, o exercício essencial do VER. O Zen, como diz Merton, “nada ensina, apenas nos possibilita um despertar-nos e tornar-nos conscientes” [44]. O zen nada explica, continua Merton, ele “apenas vê” [45].
Não se pode deixar de mencionar aqui a presença viva de Rainer Maria Rilke na vida e na reflexão de Merton. Penso aqui em particular naquele precioso convite que faz Rilke em sua sétima elegia de Duíno do adentrar-se no mundo interior, condição ímpar para que o mundo exista [46]. Em página de seu diário, de novembro de 1965, Merton expressa esse seu amor a Rilke: “As Elegias de Duino e os Quatro Quartetos falam de minha própria vida, meu próprio ser, meu destino, meu cristianismo, minha vocação, minha relação com o mundo do meu tempo, meu lugar nele etc.” [47].
IHU On-Line - Entre as orações escritas por Thomas Merton, quais delas melhor expressam a sua mística?
Faustino Teixeira - No meu livro que acaba de sair publicado pela Vozes, As orações da humanidade (2018), em parceria com Volney Berkenbrock, escolhemos dez orações de Thomas Merton, mas uma em especial gostaria de destacar, que expressa de forma singular o traço de buscador de Merton [48]:
Senhor, meu Deus
Não tenho ideia de aonde estou indo.
Não vejo o caminho adiante de mim.
Não posso saber com certeza onde terminará.
Nem sequer, em verdade, me conheço.
E o fato de eu pensar que estou seguindo tua vontade,
Não significa que realmente o esteja.
Mas acredito que o desejo de te agradar te agrada, de fato.
E espero ter esse desejo em tudo que estiver fazendo.
Espero jamais vir a fazer alguma coisa
Distante desse desejo.
E sei, que se agir assim,
Tu hás de me levar pelo caminho certo,
Embora eu nada possa saber sobre o mesmo.
Portanto, hei de confiar sempre em ti,
Ainda que eu possa parecer
Estar perdido e sob a sombra da morte.
Não hei de temer,
Pois tu sempre estás comigo,
E nunca hás de deixar
Que eu enfrente meus perigos sozinho.
IHU On-Line - Como as obras de Etienne Gilson e Jacques Maritain influenciaram o pensamento teológico de Thomas Merton?
Faustino Teixeira - Sobre o influxo de Etienne Gilson já falamos antes. Foi a partir da leitura de um de seus livros, O espírito da filosofia medieval, que Merton toma contato com uma visão positiva do cristianismo, ainda que antes ele tenha tido a vontade de jogar o livro pela janela do trem, pois não se tinha dado conta de que era um livro de filosofia católica. Da repugnância inicial, ele foi tomado de impacto pela leitura do livro, e dele conseguiu encontrar elementos que revolucionaram sua vida, sobretudo o conceito de Deus [49]. Sobre Jacques Maritain, a relação foi de grande amizade. Maritain chegou a visitar Merton em Gethsêmani no ano de 1966. Há uma larga correspondência entre os dois, que cobre o período de 1949 a 1967, e está registrada num dos tomos de suas cartas [50].
Com Maritain, Merton abre o seu coração a respeito das restrições e censuras que vinha sofrendo com suas publicações na Trapa, sobretudo as que se relacionavam com a mística zen. Dizia em passagem de uma carta a Maritain, de junho de 1960: “Desejo ardentemente a solidão nos bosques do mosteiro. Paradoxalmente a consigo encontrar no meu diálogo com os não católicos” [51]. Ele se abre com o amigo, falando da riqueza das outras tradições religiosas: “Existem tantas pessoas sérias, de boa vontade, interessadas na mística não cristã, e justamente para serem mais profundamente si mesmas”. Mais adiante vai citar o exemplo de Louis Massignon [52]. E menciona o zen-budismo: “Eu mesmo estou interessado no zen, e consigo compreender o quanto ele se aproxima do que há de verdade na vida espiritual, mas também na arte e na vida mesma” [53]. Merton fala também de sua alegria na leitura do diário de Raissa, mulher de Maritain. Não consegue expressar com palavras o bem que essa leitura lhe proporcionou: “Eu leio na solidão dos bosques. Cada frase escancara o nosso coração para Deus” [54].
IHU On-Line - Como e por que Merton aderiu ao movimento pacifista da década de 1960 e qual foi sua contribuição nas críticas à guerra do Vietnã? Como foi sua participação no movimento?
Faustino Teixeira - Gosto de falar em três apelos interiores que marcaram a trajetória de Thomas Merton: a contemplação, o diálogo e a compaixão [55] . Merton foi um dos principais artífices de uma “ecumene da compaixão” um apaixonado pela Paz entre os povos. Um de seus livros mais representativos a respeito foi Paz na era pós-cristã. O livro não conseguiu ser publicado enquanto Merton vivia, em razão das censuras impostas por seus superiores na Trapa. O livro era para ser publicado em 1962, mas isto não ocorreu. Como assinala Jim Forrest no prefácio da obra, a palavra “Paz” era uma palavra suspeita na ocasião, e quem a utilizava era visto como “vermelho” ou “simpatizante” [56]. O livro foi proibido de ser publicado pelo abade Dom Gabriel Sortais. Os estudiosos de Merton sublinham o influxo dessa obra no Concílio Vaticano II [57]. No livro há duros ataques às armas nucleares, entendidas como contrárias à moralidade cristã. E Merton não poupa suas críticas: “Toda guerra nuclear, e de fato toda destruição em massa de cidades, populações, nações e culturas, seja por quais meios isso acontecer, é um crime da maior gravidade, proibido a nós não só pela ética cristã, mas por todo código moral sério e são” [58].
Quanto à guerra do Vietnã, suas críticas também foram muito duras. Recebeu em Gethsêmani o monge vietnamita Thich Nhat Hanh, no final de maio de 1967, que tinha sido expulso de seu país em razão de seu posicionamento crítico. Em torno dessa amizade foi publicado um belo livro [59].
IHU On-Line - Nos últimos anos de sua vida, Merton se dedicou às religiões asiáticas, com destaque para o Zen-Budismo. Que tipo de diálogo ele propunha entre as religiões e a mística asiática e o cristianismo?
Faustino Teixeira - Podemos, de fato, sinalizar esse grande interesse de Merton pelo Oriente. Dizia ele num artigo, cujo trecho que nos interessa foi publicado em livro: “Nossa abertura ao budismo, ao hinduísmo e às grandes tradições da Ásia oferece-nos , creio, uma chance única de aprender um pouco mais sobre as potencialidades de nossas próprias tradições ocidentais” [60]. O interesse de Merton pelo budismo vem de agosto de 1938, embora uma reflexão mais sistematizada só ocorreu depois de 1957. Para isso foi de fundamental importância a sua relação com Suzuki, que foi duradoura, tendo os dois se encontrado em 1964. Merton chegou a convidar o monge zen para escrever um prefácio ao seu livro sobre os padres do deserto, mas isso foi recusado por seus superiores, que argumentaram que uma tal coisa poderia favorecer uma communicatio cum infideli (comunicação com um infiel). E Merton reclama disto com Maritain [61]. Em torno à relação de Merton com o budismo, há uma obra preciosa: Merton y Buddhism, de 2007 [62]. Há também alguns outros clássicos livros de Merton envolvendo o budismo e o taoísmo
IHU On-Line -Como se dá a recepção do legado de Merton hoje e qual a sua importância para os nossos dias?
Faustino Teixeira - Estamos comemorando no dia 10 de dezembro os 50 anos da morte de Thomas Merton, ocorrida em 1968, em razão de um acidente com um ventilador elétrico, quando estava em viagem pela Ásia. Foi uma comovente surpresa para todos, num momento de grande abertura do mestre trapista. Em janeiro de 2015, celebrou-se também o centenário de seu nascimento, com inúmeras publicações celebrativas. Aqui no Brasil saiu publicado um livro dedicado ao acontecimento [64]. O legado de Merton é enorme, sendo de fundamental importância para o nosso tempo atual, de desgaste da compaixão, de indiferentismo, fundamentalismos e fixações identitárias. Merton é símbolo de abertura e liberdade, de kenosis e compaixão. Seu convite à viagem ao mundo interior e à abertura aos outros é fantástico e provoca as raízes mais profundas do coração. Merton é um impulso aberto para novos estudos e trabalhos, dissertações e teses, com temas inusitados e essenciais para lidar com os desafios de nosso tempo. Em princípios de 1949 ele alimentava um sonho de ser “vagabundo”. Em carta de 1967 a uma jovem – Suzanne Burovich -, descreveu a si mesmo como um “monge hippie”. E olha que esse itinerante alternativo mudou a forma de olhar, entender e viver a mística nos séculos XX e XXI.
Notas:
[1] Há três edições brasileiras do livro: Thomas Merton. A montanha dos sete patamares. São Paulo/Rio de Janeiro: Mérito, 1958 (sexta edição), seguida da edição da Vozes, em 2005 e depois da Petra, em 2018. As citações aqui utilizadas seguem a edição da Vozes, com a sigla MSP. (Nota do entrevistado)
[2] MSP, p. 102. (Nota do entrevistado)
[3] MSP, p. 104. (Nota do entrevistado)
[4] MSP, p. 81 e 173. (Nota do entrevistado)
[5] MSP, p. 186. (Nota do entrevistado)
[6] MSP, p. 157-158. (Nota do entrevistado)
[7] MSP, p. 180-181. (Nota do entrevistado)
[8] MSP, p. 188. (Nota do entrevistado)
[9] Jim Foreste. Thomas Merton. Scrittore e monaco, uomo di pace e di dialogo. Roma: Città Nuova, 1995, p. 46. Em torno da decisão dos franciscanos cf. MSP, p. 268-270. Ver também: William H. Shannon & Christine M. Bochen & Patrick F, O´Connell. Diccionario de Thomas Merton. Mensajero: Bilbao, 2015, p. 358 (utilizaremos a sigla DTM). (Nota do entrevistado)
[10] MSP, p. 257-258. (Nota do entrevistado)
[11] Sibélius Cefas Pereira. Thomas Merton. Contemplação no tempo e na história. São Paulo: Paulus, 2014, p. 25 (utilizaremos a sigla CTH). (Nota do entrevistado)
[12] Thomas Merton. A vida silenciosa. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 39. (Nota do entrevistado)
[13] Ibidem, p. 40. (Nota do entrevistado)
[14] Ibidem, p. 96. (Nota do entrevistado)
[15] Ibidem, p. 97. (Nota do entrevistado)
[16] Thomas Merton. O signo de Jonas. São Paulo/Rio de Janeiro: Mérito, 1954, p. 381. (Nota do entrevistado)
[17] Ibidem, p. 391. Dizia em seu diário: “Eu sou um franciscano. Minha espécie de espiritualidade é estar nos bosques, sob as árvores”: MSP, p. 300. (Nota do entrevistado)
[18] Thomas Merton. Amor e vida. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 17. (Nota do entrevistado)
[19] Thomas Merton. O signo de Jonas, p. 380. (Nota do entrevistado)
[20] Ibidem, p. 377. (Nota do entrevistado)
[21] Ibidem, p. 303. (Nota do entrevistado)
[22] Ibidem, p. 304. (Nota do entrevistado)
[23] Thomas Merton. Novas sementes de contemplação. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 1. (Nota do entrevistado)
[24] Ibidem, p. 9. (Nota do entrevistado)
[25] Ibidem, p. 10. (Nota do entrevistado)
[26] Ibidem, p. 11. (Nota do entrevistado)
[27] Ibidem, p. 29. (Nota do entrevistado)
[28] Ibidem, p. 30. (Nota do entrevistado)
[29] Thomas Merton. Nenhum homem é uma ilha. Campinas: Verus, 2003, p. 117. (Nota do entrevistado)
[30] Thomas Merton. A experiência interior. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 7. (Nota do entrevistado)
[31] Ibidem, p. 94. (Nota do entrevistado)
[32] Patrick Hart & Jonathan Montaldo. Merton na intimidade. Sua vida em seus diários. Rio Janeiro: Fisus, 2001, p. 315. (Nota do entrevistado)
[33] Ibidem, p. 296. (Nota do entrevistado)
[34] Ibidem, p. 291. (Nota do entrevistado)
[35] Ernesto Cardenal. Vida perdida. Memórias 1. Madrid: Trotta, 2005, p. 144. (Nota do entrevistado)
[36] Thomas Merton. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 183. (Nota do entrevistado)
[37] Ibidem, p. 183. (Nota do entrevistado)
[38] Ibidem, p. 151. (Nota do entrevistado)
[39] MSP, p. 243-247. (Nota do entrevistado)
[40] Veja: Thomas Merton. L'esperienza interiore. Note sulla contemplazione. Cinisello Balsamo: San Paolo, 2005, p. 142-153. (Nota do entrevistado)
[41] Thomas Merton. An Introduction to Christian Mysticism. Initiation into the Monastic Tradition 3. Michigan: Cistercian Publications, 2008 (edited with Introduction by Patrick F. O'Connel). (Nota do entrevistado)
[42] Mestre Eckhart. Sermões Alemães 1. Bragança Paulista/Petrópolis: São Francisco/Vozes, 2006, p. 290. (Nota do entrevistado)
[43] Thomas Merton. Zen e as aves de rapina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 14. (Nota do entrevistado)
[44] Ibidem, p. 49. (Nota do entrevistado)
[45] Ibidem, p. 53. (Nota do entrevistado)
[46] Rainer Maria Rilke. Elegias de Duíno. 6 ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013, p. 63. (Nota do entrevistado)
[47] Patrick Hart & Jonathan Montaldo. Merton na intimidade, p. 302. (Nota do entrevistado)
[48] A oração também foi publicada na seção de espiritualidade do IHU, nas Orações Inter-Religiosas, com ilustração de Pulika. Originalmente esta oração foi publicada no livro de Thomas Merton: Na liberdade da solidão. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 66. A versão utilizada aqui foi da tradução do Mosteiro da Virgem, em Petrópolis. (Nota do entrevistado)
[49] MSP, p. 157-158. (Nota do entrevistado)
[50] Veja o livro: Thomas Merton. Il coraggio della verità. Casale Monferrato: Piemme, 1997, p. 65-129. (Nota do entrevistado)
[51] Ibidem, p. 86. (Nota do entrevistado)
[52] Ibidem, p. 112. (Nota do entrevistado)
[53] Ibidem, p. 77. (Nota do entrevistado)
[54] Ibidem, p. 88. (Nota do entrevistado)
[55] Faustino Teixeira. Buscadores de diálogo. Itinerários inter-religiosos. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 29-41. (Nota do entrevistado)
[56] Thomas Merton. Paz na era pós cristã. Aparecida: São Paulo, 2007, p. 8. (Nota do entrevistado)
[57] Ibidem, p. 20 e22. (Nota do entrevistado)
[58] Ibidem, p. 76 e 94. (Nota do entrevistado)
[59] Robert H. King. Ed. Thomas Merton and Thich Nhat Hanh. (Nota do entrevistado)
[60] Gilles Farcet. Thomas Merton, un trappiste face à l'Orient. Paris: Albin Michel, 1990, p. 19. Ver também: Thomas Merton. Reflexiones sobre Oriente. La filosofia oriental a la luz del misticismo occidental. Barcelona: Oniro, 1997. (Nota do entrevistado)
[61] Thomas Merton. Il coraggio della verità, p. 82. (Nota do entrevistado)
[62] Bonnie Bowman & Thurston. Merton & buddhism. Louisville: Fons Vitae, 2007. (Nota do entrevistado)
[63] O já citado Zen e as aves de rapina (original de 1968); Id. Místicos e mestres zen. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972 (o original é de 1961); Id. A via de Chuang Tzu. 3 ed. Petrópolis: Vozes, 1977. (Nota do entrevistado)
[64] Mertonianum 100. Comemoração do centenário de Thomas Merton. São Paulo: Riemma, 2015. (Nota do entrevistado)