21 Janeiro 2019
Em uma coluna publicada por The Spectator, o sociólogo esloveno critica o filme do diretor mexicano que concorre ao Oscar. "É muito difícil se livrar das correntes nas quais não só nos sentimos cômodos, como também sentimos que estamos fazendo algo bom", escreveu Zizek. A reportagem foi publicada por La Tercera, 19-01-2019. A tradução é de Graziela Wolfart.
“A primeira vez que vi Roma senti um gosto amargo”, escreveu Slavoj Zizek. “Sim, a maioria dos críticos tem razão ao celebrá-lo como um clássico instantâneo, mas não consegui me desfazer da ideia de que esta percepção predominante se apoia em uma aterradora – quase obscena – leitura ruim, e que o filme é célebre pelos motivos errados”.
Roma, filme de Alfonso Cuarón que estreou na Netflix em 2018, foi apoiado pela crítica especializada e premiado no Festival de Cinema de Veneza, pelos Globos de Ouro e pelo Critic’s Choice Awards. Atualmente, é um forte candidato aos Prêmios do Oscar como Melhor Filme em Língua estrangeira.
No entanto, o filósofo, sociólogo e psicanalista esloveno Slavoj Zizek, não concorda. Pelo menos não se baseando nos argumentos levantados até agora nas diversas resenhas. Zizek argumenta que as apreciações publicadas são superficiais e que omitiram as mensagens que seu diretor, Alfonso Cuarón, deixou entre linhas.
“Roma realmente só celebra a bondade de Cleo e a dedicação altruísta à família? Realmente ela pode se reduzir a um objeto precioso de uma família de classe média alta, (quase) aceita como parte da família para ser explorada física e emocionalmente? A trama do filme está cheia de pistas sutis que indicam que a imagem de bondade de Cleo é uma armadilha, objeto de crítica implícita, que denuncia sua dedicação como resultado de sua cegueira ideológica”, escreveu Zizek.
O esloveno exemplifica com a inconsequente expressão de carinho por parte de sua patroa, Sofia, e das crianças, e a mudança repentina, exigindo que cumprisse diversas tarefas na casa. O que mais chocou Zizek é a cena em que Sofia estaciona o grande Ford Galaxy, raspando-o contra as paredes do estreito corredor.
“Mesmo que sua brutalidade possa se justificar pelo seu subjetivo sofrimento (ser abandonada por seu esposo), a lição é que, por sua posição dominante, ela pode se permitir atos como esse (os empregados consertarão a parede), enquanto Cleo, que está em uma posição mais difícil, simplesmente não pode se permitir essas explosões espontâneas, mesmo que seu mundo esteja caindo aos pedaços, o trabalho deve continuar...”.
Parte crucial da história é o nascimento da filha de Cleo, que é tirada de seu ventre sem vida. Ela a toma em seus braços por alguns momentos antes de perdê-la para sempre. “Muitos críticos que viram nesta cena o momento mais traumático do filme, perderam sua ambiguidade: como nos inteiramos mais adiante no filme (mas que podemos suspeitar desde agora), o que realmente a traumatiza é o fato de que não queria a sua filha; assim, um bebê morto em seus braços é uma boa notícia”, interpretou o filósofo.
Mas, mesmo depois desta experiência dolorosa, Zizek argumenta que a família continua explorando-a, já que o convite para ir à praia por parte de Sofia e das crianças é uma mera desculpa para ter uma empregada durante as férias. No entanto, quando Cleo salva as crianças arrastadas pela força do mar – mesmo que ela não soubesse nadar – a família se une em um abraço de agradecimento, no qual Cleo confessa seu sentimento de culpa. “Um momento que simplesmente confirma que Cleo está presa em uma armadilha que a escraviza...”, conclui Zizek.
“Estou sonhando? Minha leitura é muito louca? Penso que Cuarón fornece uma pista sutil nesta direção no âmbito da forma. Toda a cena de Cleo salvando as crianças está em uma única tomada longa, com a câmera se movendo transversalmente, sempre focando Cleo. Quando alguém vê esta cena, não consegue evitar a sensação de uma estranha dissonância entre a forma e o conteúdo: enquanto o conteúdo é um gesto patético de Cleo que, pouco depois de seu traumático parto, arrisca sua vida pelas crianças, a forma ignora totalmente o contexto dramático”.
E é aí que o crítico cultural vê uma falta de “tensão dramática”, sem a perspectiva do que Cleo está vendo ao entrar no mar. “Esta estranha inércia da câmera, sua negação em participar do drama, é crucial no desengate de Cleo do patético papel da empregada disposta a se sacrificar”.
Slavoj Zizek põe ênfase na frase que Cleo disse a Adela em seu retorno para casa: “Tenho muita coisa para te contar”. Uma frase que convida à sua libertação ou mudança de vida, segundo suspeita o esloveno. “É muito difícil se livrar das correntes nas quais não só nos sentimos cômodos, como também sentimos que estamos fazendo algo bom. Como disse T.S. Eliot em seu livro Assassinato na catedral, o maior pecado é fazer o certo pelo motivo errado”, finaliza Zizek sobre Roma em The Spectator.
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Slavoj Zizek sobre Roma, de Alfonso Cuarón: "célebre pelos motivos errados" - Instituto Humanitas Unisinos - IHU