15 Janeiro 2019
Em seu discurso anual para mais de 180 embaixadores creditados pela Santa Sé, no dia 7 de janeiro, o Papa Francisco alertou os líderes mundiais contra o "ressurgimento de tendências nacionalistas" baseados em "rápido consenso partidário" em vez da "busca paciente pelo bem comum por meio de respostas a longo prazo" para as questões atuais mais complicadas.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 11-01-2019. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Na verdade, ele pediu um regresso ao multinacionalismo, em vez de cada país caminhar sozinho. Se as nações não conseguirem se recompor, previu, a humanidade poderia estar novamente num rumo parecido com o que levou à Segunda Guerra Mundial.
Mas apenas dois dias depois da publicação do manifesto do Papa sobre multinacionalismo, defendendo o fortalecimento da União Europeia e das Nações Unidas, o ministro do interior e figura importante da coalizão que governa a Itália estava em Varsóvia para estabelecer uma aliança contra a União Europeia com a Polônia. Foi outro sinal de que as palavras do Papa continuam sendo ignoradas, até mesmo na Península Itálica, que já foi uma referência do poder político e moral do papado.
O jornalista italiano Iacopo Scaramuzzi, cuja análise afiada da Igreja e do Vaticano muitas vezes não recebe a atenção que merece, escreveu um breve artigo na revista Jesus um pouco antes desses dois eventos. O título do artigo é “La voce di Bergoglio, profezia nel deserto” (A voz de Bergoglio, profecia no deserto - em tradução livre).
Ele observa que, desde a eleição de Francisco, em 2013, líderes ultranacionalistas foram eleitos em vários países (como a Síria, o Egito, a Argentina, os Estados Unidos, o Chile, a Áustria e o Brasil) e mantiveram-se no poder em países como a Rússia, a Hungria e a Turquia.
"E o Papa — que defende a misericórdia, critica as desigualdades e defende os pobres e imigrantes — está cada vez mais solitário", observa Scaramuzzi.
Para ele, assim como Bento XVI (1914-22), as palavras de Francisco têm menos autoridade moral hoje em dia. Sua voz é mais uma "profecia no deserto, uma semente para o futuro e um sinal de contradição".
A voz profética do Papa irrita líderes mundiais como o ministro italiano Matteo Salvini, o presidente dos EUA Donald Trump e o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, entre outros.
Mas Francisco também tem sido uma voz disruptiva na própria Igreja. Seus esforços para mudar radicalmente a mentalidade, o processo decisório e as estruturas eclesiais abalaram os católicos mais tradicionalistas e politicamente conservadores.
E não parece que o Papa de 82 anos, apesar de seu pontificado ser duramente criticado (principalmente em relação aos casos de abuso sexual do clero), vai repensar ou desistir do projeto de reforma.
Dizem que o Papa Francisco deve divulgar em breve duas cartas apostólicas motu proprio (isto é, por sua própria autoridade) modificando ainda mais a atual estrutura da Cúria Romana, antes mesmo de promulgar uma nova Constituição Apostólica nos próximos meses que reorganizarão totalmente a burocracia central da Igreja.
Uma delas vai reduzir o papel e a autoridade da prefeitura da Casa Pontifícia, atualmente liderada pelo arcebispo Georg Gänswein, ex-assistente pessoal e atual companheiro de casa do Papa aposentado Bento XVI.
De acordo com o jornalista Marco Tosatti, que teve um papel fundamental na escrita e na organização da denúncia do arcebispo Carlo Maria Viganò a Francisco e dos pedidos de renúncia do antigo núncio papal, a prefeitura será uma filial da Secretaria de Estado do Vaticano.
Marco Tosatti afirmou que Gänswein, que tem 62 anos, voltaria a ocupar o cargo de Secretário da Congregação para as Causas dos Santos, substituindo o arcebispo Marcello Bartolucci, que faz 75 anos em abril, idade normal para aposentadoria.
Claro, são apenas boatos. Mas faz muito sentido e, se for verdade, deve ser recebido positivamente por quem apoia o Papa e suas propostas de reformas.
A mudança de liderança e status (e, provavelmente, competências) da prefeitura pode ser uma boa notícia por pelo menos duas razões: uma histórico-organizacional e a outra pessoal-estratégica.
Em primeiro lugar, simplificaria ainda mais a burocracia do Vaticano e retiraria outra camada que resta da antiga corte papal. Atualmente, a prefeitura é responsável pela “organização interna da Casa Pontifícia e supervisiona tudo o que se refere à conduta e ao serviço prestado por todos os clérigos e leigos que compõem a família e a capela papal".
Era chamada Corte Papal até 1968, quando sofreu uma reforma no papado de Paulo VI. Hoje, é responsável por organizar a agenda do Papa e as audiências com figuras civis e religiosas, mas ainda mantém elementos cerimoniais do período do Renascimento, como a presença de "senhores papais", que são como atendentes judiciais.
Não se sabe exatamente até onde Francisco vai chegar para reduzir as semelhanças com os tribunais.
Além disso, seria bom do ponto de vista pessoal. Faz todo o sentido que a prefeitura da Casa Pontifícia seja parte da Secretaria de Estado, desde a secretaria seja o principal órgão de administração da Santa Sé, principalmente nas relações com os poderes políticos e os poderes civis estrangeiros.
Quanto ao arcebispo Gänswein, a transferência para uma Congregação do Vaticano poderia mantê-lo em Roma e permitir a continuidade de seu trabalho com Bento XVI, que tem 91 anos. O arcebispo é secretário do antigo Papa desde seus últimos anos como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
O outro motu proprio que dizem que o Papa Francisco está preparando, entre outras coisas, extinguiria o escritório do Camerlengo da Câmara Apostólica, que está vago desde julho do ano passado, após a morte do cardeal Jean-Louis Tauran. Este escritório, criado no século XI, supervisiona os negócios entre a Santa Sé e a Cúria Romana a morte de um papa e a eleição do sucessor.
Se forem concretizadas, as duas mudanças vão causar ainda mais consternação entre os católicos que têm criticado o Papa Francisco e suas tentativas de desmitificar o papado e extinguir suas características monárquicas.
Sem dúvidas, Francisco não tem medo de ser "um sinal de contradição", mesmo entre os católicos que ficaram confusos com suas tentativas de mudar o status quo da Santa Sé e de suas instituições.
Eles aproveitaram sua conduta questionável em relação aos abusos sexuais dentro da Igreja, como o ponto fraco de uma atuação brilhante, numa tentativa frenética de diminuir sua autoridade e legitimidade como líder do catolicismo mundial.
Tem sido essencial para o Papa recompor sua equipe de comunicação, especialmente no período que antecede a cúpula de fevereiro com os presidentes das conferências dos bispos do mundo todo para planejar os próximos passos para lidar com os casos de abuso.
A maioria dos observadores negligenciou o fato de que o Papa se voltou para as pessoas da Rádio Vaticano, hoje reduzida, para assumir um papel de liderança no que pode rapidamente se tornar uma equipe renovada e proativa de comunicadores com a função de explicar e defender suas palavras e ações.
O primeiro sinal de reabilitação da Rádio Vaticano aconteceu no dia 28 de dezembro, quando o Dicastério para a Comunicação lançou uma nova programação para a Rádio Vaticana Itália, o único segmento de radiodifusão da antiga operação em 47 línguas criada em 1931 que permaneceu no ar.
Nos dois anos seguintes à extinção da Rádio Vaticano como uma agência independente da Santa Sé, em que ficou sob o controle do Dicastério, houve apenas programas italianos nas ondas da rádio. Mas na nova programação, que entrou em vigor no dia 7 de janeiro, voltaram os noticiários em inglês e francês.
No dia 31 de dezembro, um jornalista antigo da Rádio Vaticano, Alessandro Gisotti, foi nomeado diretor interino da Sala de Imprensa da Santa Sé. E sinalizando que planeja utilizar ainda mais a equipe da rádio antiga, principalmente de programas em outras línguas, o Dicastério para a Comunicação começou a fazer outras mudanças.
Só nos últimos dias, quatro entraram na equipe de assessoria de imprensa - falantes nativos de francês, espanhol e inglês. Thaddeus Jones, que é natural da Indiana e foi jornalista da Rádio Vaticano e trabalhou no extinto Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais, foi nomeado gerente ou coordenador do gabinete de imprensa.
Entre os outros novos funcionários estão Romilda Ferrauto, ex-coordenadora do programa em francês da Rádio Vaticano, que será conselheira sênior de Gisotti. Além disso, o jornalista Raul Cabrera Perez, do Peru, que já trabalhou no programa latino-americano da rádio, e a irmã estadunidense Bernadette Reis, membro das Filhas de São Paulo, serão assistentes especiais de Gisotti.
O que está acontecendo na Sala de Imprensa da Santa Sé é um pouco irônico historicamente.
Joaquin Navarro-Valls, que foi diretor do gabinete de imprensa entre 1984 e 2006, tinha pouco tempo para a Rádio Vaticano - ou não tinha tanto gosto. O numerário da Opus Dei, que ficou conhecido por ser o especialista em assessoria de imprensa do Vaticano e criar as estratégias de imagem e da mensagem de João Paulo II, raramente permitia o acesso de repórteres da rádio à sala de imprensa. Na verdade, nem os considerava jornalistas de verdade.
Quando se aposentou, em 2006, o padre jesuíta Federico Lombardi, que foi diretor da Rádio Vaticano por muito tempo, tornou-se diretor da Sala de Imprensa. Com isso, houve grandes progressos na imagem da rádio e em seu lugar no âmbito do setor de comunicações do Vaticano. Mas isso só durou até 2015, quando a rádio foi amplamente dizimada. Cerca de um ano depois, Lombardi foi substituído por Greg Burke, outro membro da Opus Dei.
Agora, há algumas semanas, a Rádio Vaticano começou a dar sinais claros de um retorno. E parece que o ressurgimento está apenas começando.
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Papa Francisco: uma voz profética e disruptiva. Mesmo com o pontificado na corda bamba, o Papa continua desafiando a Igreja e o mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU