11 Janeiro 2017
Orbán, Salvini e Le Pen contra Bergoglio, o pontífice extraeuropeu e filho de expatriados que coloca os refugiados no centro do mundo contemporâneo. Uma análise do choque de civilizações dentro do catolicismo.
A reportagem é de Francesco Peloso, publicada no sítio Lettere 43, 08-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco, “amigo dos migrantes”, está se tornando o principal adversário político e cultural das direitas populistas europeias. Trata-se, de vez em quando, de expoentes da Frente Nacional francesa ou da Liga Norte italiana, dos partidos nacionalistas e xenófobos húngaros ou alemães. Depois, há aqueles que, como o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, embora evitando se chocar abertamente com o papa – ao contrário, ele se encontrou brevemente com ele em agosto de 2016 no Vaticano –, porém, implementou aquela política de arame farpado e muros no centro das críticas da Igreja.
Assim, os ataques contra a Santa Sé, os bispos e as associações católicas cresceram de intensidade. São várias as razões: o alerta pelos atentados terroristas, muitas vezes relacionados com o fenômeno migratório no debate público, a aproximação de importantes eleições na Europa (e, provavelmente, também na Itália), em que o tema migratório tem o seu peso real, a continuidade de uma crise econômica e social na Europa que facilmente é descarregada sobre o “estrangeiro”, a cronicidade dos fluxos de migrantes e refugiados, ainda não dramática numericamente em sentido absoluto, mas que certamente se tornou mais visível e preocupante com a disseminação de conflitos e crises humanitárias no Oriente Médio e na África (embora muitos refugiados na Itália, por exemplo, também vieram de países como o Afeganistão).
Nesse contexto, insere-se o o magistério de Bergoglio, que levanta a questão migratória como um divisor de águas epocal. O papa inverte a suposição leghista-lepenista da invasão e faz dela a base de um catolicismo renovado – precisamente universal – que olha para o povo dos refugiados e dos migrantes como para o coração do mundo contemporâneo em que o anúncio cristão deverá viver.
As afirmações do pontífice, um pouco de cada vez, se tornaram também as palavras das Igrejas locais, de uma boa parte dos bispos, da França à Itália, o que põe em alerta a liderança dos movimentos políticos hoje mais ativos na cena europeia. Certamente, a defesa dos migrantes por parte da Igreja não é uma novidade, mas, com Bergoglio, está em curso um salto de qualidade, e é aqui que emerge a diferença feita pela Igreja de Roma no conclave de 2013, com uma inversão de prioridades que tem muito a ensinar à política.
Francisco, o argentino, proveniente do hemisfério Sul do mundo, filho de emigrantes italianos que voltou a Roma como papa, ilumina a a humanidade dos “descartados”, afirma a sua centralidade e também a sua prioridade cristã em âmbito humanitário e da político. Por isso, Matteo Salvini [da Liga Norte italiana] contestou ao papa até mesmo a cerimônia do lava-pés de 2016, celebrada no centro de acolhimento de Castelnuovo di Porto, perto de Roma. “Francisco escolhe os clandestinos”, foi a candente acusação; um reconhecimento, provavelmente, para o papa.
Recentemente, diversos expoentes da Frente Nacional francesa atacaram Bergoglio. “A Igreja Católica está desconectada da realidade. Em nome da acolhida aos outros, nos rejeita. Hoje, ela é representada por bispos políticos, que são adversários da fé”, disse Gilbert Collard, intelectual e parlamentar lepenista, enquanto a cúpula do partido acusa o episcopado de fazer política e de querer se substituir aos partidos.
Salvini, em setembro de 2016, repreendeu o Santo Padre por ter lotado a Igreja de imãs e acrescentou: “Bento XVI é o meu papa”. No entanto, as palavras de Ratzinger sobre a imigração eram igualmente claras quanto as de Francisco.
Dentre as coisas que não agradaram aos partidos populistas, estava a reação da Santa Sé ao assassinato do padre Jacques Hamel, perto de Rouen, em julho de 2016. “O fundamentalismo islâmico atingiu a Igreja”, foi o grito de protesto. Mas precisamente o padre Hamel era realmente um mártir incômodo: amigo das comunidades muçulmanas e homem do diálogo, e por isso também lembrado e de modo sensacional, público, pelos muçulmanos da França. Causou frisson a sua participação maciça no funeral na catedral de Rouen (com os imãs na Igreja), uma rejeição sem precedentes do extremismo.
Certamente, se o jogo da religião-identidade ou da ideologia política, da fé como cola nacional, é jogado em várias frentes e em diversas margens do Mediterrâneo, a Igreja de Roma – desde que João Paulo II deu à luz ao primeiro encontro inter-religioso de Assis, em 1986 – sempre se opôs a essa opção. E um caminho semelhante se intensifica ainda mais com o Papa Francisco.
A radicalidade do Evangelho é a linha que o pontífice segue, e ao longo desse leito encontra muito adversários, mas que têm o limite de querer acreditar mais na instituição do que na Revelação.
A estes, o papa, em outubro de 2016, respondeu de modo claro: “Se alguém se diz cristão e depois expulsa o refugiado, o faminto, o sedento, aqueles que precisam, então é um hipócrita. Há uma contradição naqueles que querem defender o cristianismo no Ocidente e, depois, são contra os refugiados e as outras religiões”. As distâncias não poderiam ser maiores.
O conflito, portanto, é evidente e está destinado a alimentar tanto uma polêmica feita de slogans e acusações superficiais, no fim das contas, quanto uma discussão mais real sobre temas-chave: sociedades cosmopolitas, direitos e deveres, identidades e nacionalismos. A essa mistura já tão densa, Francisco acrescenta outro elemento: a ênfase nas razões sociais e políticas da imigração.
O papa do Sul do mundo, de fato, pede que a comunidade internacional olhe para as guerras, para os sofrimentos das populações, para os barcos afundados mais do que para as rejeições. Ou, melhor, que coloque a mão nas causas para remover os efeitos e, portanto, as consequências na “nossa casa”.
Por isso, as suas palavras, assim como as que foram pronunciadas por ocasião da missa de Natal, são tão pungentes: “Deixemo-nos interpelar pelo Menino na manjedoura”, afirmou Francisco, “mas deixemo-nos interpelar também pelos meninos que, hoje, não estão deitados em um berço e não são acariciados pelo afeto de uma mãe e de um pai, mas jazem nas esquálidas ‘manjedouras de dignidade’: no refúgio subterrâneo para escapar dos bombardeios, nas calçadas de uma grande cidade, no fundo de um barco sobrecarregado de migrantes”.
Certamente, o conjunto de problemas levantados pelo papa não diz respeito apenas a uma reforma mais geral da Igreja ou, melhor, a uma retomada do Concílio Vaticano II, mas toca feridas abertas do mundo contemporâneo, intervindo no debate público deste período e dos próximos anos.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Francisco, o papa dos migrantes, na mira das direitas populistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU