25 Outubro 2018
Não são fáceis de achar, mas existem policiais no Rio de Janeiro que não votam em Jair Bolsonaro (PSL). Dentre outras razões, eles discordarem das propostas bélicas para a segurança pública do candidato. Aos olhos da maioria, são a banda podre da corporação.
A reportagem é de Guilherme Castellar, publicada por CartaCapital, 25-10-2018.
Segundo agentes ouvidos por CartaCapital, o discurso do capitão da reserva de armar a população, implantar leis mais duras e dar licença para policial matar reverbera hegemônico dentro das instituições de segurança pública. E, se não piorou com a intervenção militar na Secretaria de Segurança Pública do Estado, no mínimo escancarou o que antes era velado.
Há quem calcule que oito em cada dez policiais votem no capitão da reserva. Índice superior ao apoio da população fluminense a esse ideário. No primeiro turno, considerando a totalidade do eleitorado no estado, quatro em cada dez pessoas aptas a votar escolheram o candidato do PSL.
Esses opositores tendem a ser discretos nos batalhões e delegacias. Preferem não se expor para evitar achaques no cotidiano. “Hoje em dia está muito difícil nas instituições policiais você declarar voto que não seja no Bolsonaro”, comentou o inspetor Hildebrando Saraiva, ainda no primeiro turno. “Na melhor das hipóteses, vão achar que você é ingênuo. Mas, se o clima esquentar, vão te acusar de defensor de bandido, entre outros bordões.”
A reportagem conseguiu localizar quatro policiais - três civis e um militar - que toparam conversar sobre as ideias do capitão da reserva e sobre o clima nas corporações na eleição. Os policiais civis possuem um pouco mais de liberdade para se expor. Até se organizam em movimentos políticos, como o Policiais Antifascismo, que neste ano lançou o delegado e cientista político Orlando Zaccone (PSOL) ao legislativo fluminense – ele teve 15.859 votos e não foi eleito.
Já na Polícia Militar do Rio de Janeiro, regrada pela disciplina militar, o silêncio é mais profundo. PMs são proibidos de se manifestar politicamente. O único policial que aceitou falar com a reportagem, pediu anonimato. É tratado aqui com o nome fictício de Joaquim.
Os agentes ouvidos acreditam que o recrudescimento da política de enfrentamento é improdutivo e, pior, tende a prejudicar a população e favorecer as organizações criminosas. Essa estratégia já está em voga. Foi retomada com a morte não-anunciada das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e fortalecida com a intervenção federal na segurança pública do Estado. Em oito meses da presença do Exército no Rio, foram 535 operações em comunidades, com mais de 600 armas apreendidas e 172 mortos nos conflitos.
A preferência pelo uso da força já tem rendido os resultados que os policiais progressistas temem. Houve o aumento de conflitos armados. Foram 6.655 de fevereiro a outubro, bem mais que os 4.186 do mesmo período de 2017, segundo o aplicativo Fogo Cruzado. E foram 1.024 homicídios em intervenção policial (novo nome para os autos de resistência), escalada de 42% frente ao mesmo período do ano passado. O número de suspeitos mortos pelas forças militares neste ano (até setembro) já superou os casos de todo o ano de 2017 (1.181 contra 1.127). Esses são os dados mais recentes divulgados pelo Instituto de Segurança Públicos do Estado.
E é justamente para esse tipo de morte provocada por policiais que Bolsonaro propõe que a Justiça faça vista grossa, ampliando os excludentes de ilicitude do Código Penal. O artigo 23 já libera que os agentes de segurança do Estado matem em casos de legítima defesa, mas esta deve ser comprovada por inquérito investigativo. Bolsonaro quer dar garantias de que o policial não pague por uma morte em serviço, mesmo quando a vítima é um inocente – como o jovem garçom morto recentemente por ‘portar’ um guarda-chuva confundido com um fuzil.
“Isso é muito perigoso. Se já acontece tendo uma lei impedindo, imagina com uma política pública liberando? Vai virar um faroeste”, critica o PM Joaquim. “Ainda que hoje aconteça, em algum momento o policial sabe que uma hora vai ter que lidar com a Justiça.”
A inspetora Bianca Braga, há 16 anos na polícia, é mais franca: os policiais querem licença para matar. “O que a gente ouve, nas entrelinhas, no meio policial é: ‘Com o Bolsonaro, agora a gente vai poder matar à vontade.’” E ela se preocupa com a seletividade. “Essa medida é para a favela, né? Não é para Zona Sul do Rio”, aposta.
Ela critica também o viés punitivo das propostas de Bolsonaro para a segurança. “Prender e deixar preso! Acabar com a progressão de penas e as saídas temporárias!”, é assim, com exclamações, que consta no programa de governo do candidato. “Não faz sentido algum. Isso já vem sendo feito no Brasil, que tem mais de 600.000 presos. Se isso resolvesse o problema, estaríamos vivendo no paraíso. Além de tudo é inconstitucional, ele fala isso pra ganhar voto”, critica Bianca.
Se nas delegacias e batalhões a opinião desses policiais é minoritária, na academia é o oposto. O antropólogo Lenin dos Santos Pires, diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense, alerta sobre o perigo de soluções simples para problemas complexos. “Como as UPPs não deram certo, some com elas a estratégia de diminuir as taxas de homicídios evitando conflitos e a posse de armamento pesado”, explica.
Agora, volta o senso comum de que bandido bom é bandido morto. “O que a pessoa que pensa isso não sabe é que a violência é que funda esse cenário que vivemos hoje.” Para Pires, a violência é a moeda que faz girar um negócio lucrativo para traficantes, que vendem drogas, e para milícias e grupos paramilitares, que vendem “proteção” em regiões dominadas.
O que está em disputa são territórios: de consumidores, para o tráfico, e clientes, para os serviços das milícias. “O uso da força policial, essa lógica de eliminação do inimigo, é que alimenta essa territorialização”, explica o antropólogo. “Há forças obscurantistas [na área de segurança pública] que veem no combate ao tráfico uma oportunidade de negócio, a venda da ‘não violência’ fica mais cara.”
E o mercado das armas também se aquece. “A polícia vai, toca o terror na comunidade e os criminosos se armam. Alguém vende para eles essa M50 [metralhadora recentemente apreendida pela polícia]. Certamente há pessoas ligadas às organizações estatais envolvidas, para, por exemplo, obter facilidade para a entrada no país e o transporte desse armamento.”
O antropólogo e os policiais ouvidos são unânimes sobre a proposta de armamento da população, uma das promessas mais repetidas pelo capitão da reserva. “Essa mudança da Lei do Desarmamento só interessa à indústria armamentista, que vai vender mais, e aos bandidos, que vão conseguir subtrair essas armas do cidadão comum e jogar para dentro do crime.”, aposta Saraiva.
O próprio Bolsonaro, quando era deputado federal, teve sua Glock calibre 38 levada junto com sua moto num assalto, em 1995 – à época, o traficante da área mandou devolver tudo, temendo represálias da polícia.
O policial civil lembra que a maior parte dos policiais que são assassinados, morrem nas suas folgas e em assaltos. Dados do Observatório da Intervenção, mostram que 74 policiais foram assassinados nos oito meses de intervenção federal no Rio. Desses, 40,5% morreram em latrocínios. Morte em serviço são 27% e, em brigas, 16%. “Os policiais são vitimados. Ter e saber usar uma arma não impediu a morte desses agentes. Agora, imagina se o cidadão passa a acreditar que com uma arma na cintura ela vai pode proteger um bem, como o carro?”, indaga, retoricamente.
Segundo o militar Joaquim, essa é a proposta de Bolsonaro vista com mais reservas na PMRJ. “Muitos colegas discordam, pois acham que a população vai ficar mais valente. Vão pensar: ‘Olha, a autoridade sou eu.’” O que gera até um conflito de ego, já que, na opinião do cabo, os policiais tendem a se ver como superiores do policiado, a população.
Para o cabo, essa é uma questão cultural no DNA da Polícia Militar e que torna a corporação um terreno fértil para propostas conservadoras como a do candidato do PSL. “Somos treinados dentro de um conceito de guerra urbana. A cultura militar representa o policiado como um inimigo.”
Para piorar, há uma questão hierárquica muito forte na caserna. “O policial acaba transferindo essa relação para o policiado e se acha superior ao cara da esquina”, analisa Joaquim. Tudo isso valoriza o clima bélico. “Tem policial que tem prazer em andar como fuzil para fora do carro e trocar tiro. É comum você ver o cara querendo combate. Como um policial desses vai entrar numa área urbana?”
O ex-candidato Zaccone faz uma análise sociológica da questão: “Há uma forte alienação do trabalhador de segurança pública, na qual o policial se identifica como sendo a própria instituição. E se fecha à discussão. Críticas à política de segurança pública tornam-se crítica pessoais a ele.” No caso da militarização do setor, fica pior, afirma o delegado. “Se constrói nessa abordagem militarista o discurso do herói. Quando morre um policial, eu vejo nas redes sociais: ‘morreu um herói’. Isso não existe, um trabalhador não pode morrer em serviço.”
Após essa análise marxista do trabalho, Zaccone reconhece que a esquerda ainda não conseguiu construir um bom contraponto ao ideário defendido por Bolsonaro e seus correligionários. O cabo Joaquim acredita que isso contribui, inclusive, para deixar as corporações policiais um terreno descampado para as forças conservadoras conquistarem. “A esquerda sempre foi avessa e crítica às forças de segurança. Nunca criaram um discurso mais brando e construtivo com os policiais”, concluiu.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Policiais contra Bolsonaro, uma minoria silenciosa no Rio de Janeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU